VOLTAR

O inacreditável acordo de Alcântara

O Globo-Rio de Janeiro-RJ
Autor: Hélio Jaguaribe
16 de Nov de 2001

Está para ser apreciado, pela Câmara dos Deputados, o acordo firmado pelo Brasil com os Estados Unidos, assegurando àquele país "salvaguardas tecnológicas" para o uso exclusivo e privativo de determinadas facilidades na base de lançamentos espaciais de Alcântara, no Maranhão, em troca de uns poucos milhões de dólares. Esse acordo, que já recebeu em boa hora parecer contrário do relator, deputado Waldir Pires, é um dos mais inacreditáveis projetos de convênio jamais considerados pelo Brasil. A análise da matéria requer, por isso, que se atente às circunstâncias e às motivações que levaram à sua assinatura.
Do lado americano, o acordo resulta da constatação de que a base de Alcântara, praticamente na linha do equador, está na melhor situação geográfica possível para lançamento de veículos espaciais. As cláusulas regulatórias do acordo, exigidas pelos Estados Unidos, decorrem da legislação americana de proteção de tecnologias estratégicas, visando, por um lado, a preservar, o mais estritamente possível, o monopólio americano de tecnologias espaciais e, por outro lado, evitar concorrências no rendoso negócio de lançamento de satélites.
Do lado brasileiro, a idéia de ceder facilidades especiais na base de Alcântara resultou do reconhecimento, por nossas autoridades, de que os atrasos na montagem, com tecnologia brasileira, de foguetes lançadores de satélites, para os quais aquela base foi construída, iriam condená-la a uma longa ociosidade, no curso da qual o Brasil teria de arcar com os ônus da boa manutenção de seus equipamentos, sem dela auferir qualquer rendimento. Daí o projeto de ceder o uso dessa base aos EUA. O que certamente não estava no prévio conhecimento de nossas autoridades era o fato de que as normas e as práticas americanas, nessa matéria, exigiriam uma regulamentação do acordo semelhante ao do arrendamento de uma parcela do território nacional para a instalação de bases militares dos Estados Unidos. Uma Guantánamo brasileira.
Colocados diante das exigências de extraterritorialidade do poder americano sobre importantes áreas e facilidades daquela base, as autoridades brasileiras, a meu ver, entenderam, por um lado, que ajustes informais permitiriam contornar os aspectos menos palatáveis de tais exigências. Por outro lado, suponho que decidiram, a exemplo do que freqüentemente fazem os Estados Unidos, anuir, diplomaticamente, a concessões por parte do Poder Executivo, na expectativa de que o Poder Legislativo corrigiria as inconveniências do acordo, com o que se somariam, a favor do Brasil, as demonstrações de boa vontade do Executivo, com as apropriadas correções do Congresso.
Sejam estas ou não as razões que levaram o governo a assinar o acordo de Alcântara, é absolutamente, é imperiosamente, é incontornavelmente necessário que o Congresso rejeite, na sua totalidade, esse inacreditável acordo. A esse respeito, creio, bastaria aduzir, muito simplesmente, três ordens de considerações: (1) o acordo, como redigido, é frontalmente inconstitucional e totalmente violador da soberania brasileira, transferindo a outra potência poderes e direitos extraterritoriais sobre instalações brasileiras e áreas do território nacional; (2) dificilmente se poderá corrigir esse acordo, de sorte a compatibilizá-lo com nossa soberania, uma vez que o princípio da extraterritorialidade é imposto pela legislação americana para matérias desse tipo; (3) quando, hipoteticamente, o acordo fosse completamente ajustado às conveniências brasileiras, inclusive com apropriada elevação do modesto pagamento (US$ 40 milhões) do uso daquela base, ainda assim o acordo deveria ser rejeitado. Não por hostilidade aos Estados Unidos, país amigo com o qual mantemos múltiplas e frutíferas relações de cooperação. Nem por pruridos de um nacionalismo simplista. Mas, sim, em virtude do elementar princípio de que não se deve ceder o uso de nenhuma instalação para um inquilino que não seja despejável. A manutenção da base de Guantánamo, pelos Estados Unidos, contra a vontade de Cuba, país com o qual nem têm relações diplomáticas, é uma boa ilustração dessa indespejabilidade.
Extravasaria as dimensões de um artigo como este a enumeração das várias cláusulas inaceitáveis desse acordo. Limitar-me-ei a mencionar, entre as obrigações unilaterais assumidas pelo Brasil, a de ceder o uso de amplas áreas e facilidades da base de forma exclusiva e privativa (Art. VI, item 2), transferindo para os Estados Unidos a autoridade para a adoção de qualquer ação relacionada com o licenciamento de exportações da base de Alcântara, o direito de suspender ou revogar qualquer licença de exportação (Art. III, item 3) relacionada com os lançamentos, a prerrogativa de inspeções sem aviso prévio (Art. VI, item 3) e submetendo apenas à autoridade americana a inspeção de materiais que se destinem à base.
Entre as proibições unilateralmente impostas ao Brasil, mencione-se a de autoridades brasileiras ingressarem em determinadas áreas da base sem prévia autorização dos Estados Unidos (Art. IV, item 2, Art. VI, itens 2 e 5 e Art. VII, item 1) e, entre muitas outras, a extraordinária interdição ao Brasil de usar fundos provenientes do acordo (item 1, § E, do Art. III) ou para aplicá-los em seus próprios projetos espaciais.
Como muito bem disse, recentemente em Paris, o presidente Fernando Henrique Cardoso, "soberania não se negocia, se exerce". Está na hora de se aplicar esse correto princípio ao caso de Alcântara. Um país que tem o oitavo maior PIB do mundo pode, certamente, arcar com os custos de manutenção daquela base, enquanto não ultimar sua técnica de foguetes. O que não pode é recuperar parcelas de soberania alienadas a uma superpotência.
Hélio Jaguaribe é pesquisador do Instituto de Estudos Políticos e Sociais.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.