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O homem que desbravou o cerrado

CB, Cidades, p.27
05 de Abr de 2005

O homem que desbravou o cerrado
O centenário de nascimento de Ezechias Heringer será lembrado com uma exposição no Jardim Botânico. Pesquisador catalogou 22 mil plantas e fez descobertas importantes, como 168 espécies de orquídeas
Rovênia Amorim
Da equipe do Correio
Uma exposição no Jardim Botânico de Brasília será a principal comemoração para lembrar neste mês o centenário de nascimento de Ezechias Heringer. Desconhecido da maioria dos brasilienses, o botânico que se maravilhava com a flora do cerrado foi criador das mais importantes reservas ambientais do Distrito Federal, como o Parque Nacional e a Estação Ecológica de Águas Emendadas. Mineiro de Manhuaçu, o funcionário do Ministério da Agricultura chegou a Brasília na época da construção da nova capital para desenvolver o plantio de arborização. E acabou apaixonado pela natureza de árvores tortas e secas que renasciam da terra castigada pelas queimadas.
Ezechias se encantava, por exemplo, com a canela-de-ema. A flor efêmera, branca ou lilás, não dura mais que uma semana e, de tão bela, lembra uma orquídea. Foi uma das plantas típicas do cerrado que ele indicou a Burle Marx para o paisagismo de Brasília. O paisagista a utilizou nos jardins internos do Teatro Nacional. Ezechias se entristecia ao ver o desaparecimento das canelas-de-emas ao longo da rodovia, em direção a Sobradinho. Ele tinha uma relação afetuosa com a natureza do cerrado, conta a diretora do Jardim Botânico, Ana Júlia Heringer, filha do pesquisador.
Ela tinha seis anos quando a família se mudou para o cerrado do Planalto Central. Foram morar no acampamento do Guarazinho, hoje o Setor de Chácaras do Guará. Para mim, o Distrito Federal era uma grande fazenda. Cresci comento cagaita, cajuí, jatobá.” Em 1963, Ezechias começou a dar aulas na Universidade de Brasília. Foi um dos fundadores dos cursos de Agronomia e Biologia e defendeu a criação da Fazenda Água Limpa e da Estação Ecológica da UnB.
Criou a rotina de embrenhar-se pelo cerrado todos os sábados. A mulher preparava a matula. Colocava arroz, tutu, farofa com frango e ovo cozido na marmita. Com chapéu de palha, vestia sempre camisa de manga comprida, abraçava a garrafa com café e seguia para o mato. Fez das andanças entre os anos de 1938 a 1980 um trabalho que lhe rendia prazer e conhecimento. Levava sempre lápis e papel sem linhas para o registro das plantas que encontrava. Desenhava sem perfeccionismo caule, flores, folhas e colocava a data e o local onde a espécie foi encontrada.
Catalogou 22 mil plantas e fez descobertas importantes para a botânica brasileira, como espécies raras de orquídeas. Algumas levam o seu nome, como a habenaria heringeri, que ele encontrou em 31 de dezembro de 1963 no brejo da vila operária próximo ao zoológico. Rara, a espécie só é encontrada em áreas de cerrado preservado, como a Estação Ecológica do Guará. Sé de orquídeas, Ezechias estudou e catalogou 168 espécies. Para se ter dimensão do trabalho do pesquisador, existem 254 espécies de orquídeas no DF, das quais 154 são exemplares raros. Desenhos originais e fotografias das flores estudadas pelo botânico poderão ser vistas na exposição sobre sua vida e obra, aberta ao público em 20 de abril no Jardim Botânico. Depois, a mostra segue para o Parque Nacional, primeira reserva ambiental do DF defendida por ele.
Ezechias completaria cem anos hoje, 5 de abril. Morreu em 15 de janeiro de 1987, aos 82 anos. Foi um pesquisador incansável. Era sempre um botânico muito dinâmico, preocupado com novas frentes de pesquisa e sempre surgia com idéias novas, lembra o biólogo Mauro Ribeiro, que trabalhou com ele na Reserva Ecológica do IBGE. Ezechias foi o primeiro chefe da reserva, que tem 1.360 hectares e faz divisa com a Fazenda Água Limpa, da UnB, e o Jardim Botânico.
No início da década de 80, quando ainda se planejava a construção do Lago São Bartolomeu, orientou os botânicos a estudar a região que seria inundada. Ele tinha uma visão ampla da importância do cerrado numa época em que poucas pessoas davam bola para o bioma.
Expedições
Além de defender a criação de unidades de conservação, o botânico, que traz no currículo mais de uma centena de trabalhos científicos publicados no Brasil e em outros países, era um crítico da destruição do cerrado. Para relembrar o seu trabalho, três expedições foram organizadas às cidades de Minas Gerais onde o botânico iniciou seus estudos. Entre elas, Paraopeba, onde ele implantou em 1953 o Horto Florestal, uma reserva que pela sua importância foi declarada Floresta Nacional pelo Ibama. A primeira foi em novembro do ano passado e outras duas estão programadas, em períodos diferentes de floração das plantas. Uma será feita ainda este ano.
O objetivo dos pesquisadores é coletar plantas e orquídeas para o herbário que leva seu nome e para a coleção viva do Jardim Botânico. Cerca de 80 mil espécies coletadas por Ezechias foram doadas por ele, em 1964, à UnB. A maioria das orquídeas do cerrado (70%) é terrestre, não cresce grudada em árvores. São geralmente flores que duram três dias e de difícil cultivo. Os botânicos do Jardim Botânico têm projeto para tentar reproduzir in vitro algumas dessas espécies raras, ameaçadas de desaparecer com a devastação do cerrado.

Descobertas
Fotos: Ana Júlia Heringer/Divulgação

Plechtrophora edwalli
Espécie rara , foi coletada pela primeira vez na região do Rio Preto, em Planaltina, em 1963.

Maxillaria canaridii
Ocorre só em matas ciliares preservadas. Foi coletada pela primeira vez, em 1963, em Planaltina.

Habenaria heringeri
Primeira espécie de orquídea descoberta por Ezechias no DF, em 1963, próximo ao Zoológico.

Galeandra Montana
Espécie comum no DF. Foi encontrada, pela primeira vez, em 1964 na mata onde é hoje o Jardim Botânico.

Parque degradado
Ana Júlia Heringer/Reprodução/Divulgação

Esboço de orquídea feito por Ezechias
O desmatamento do cerrado no Guará onde o botânico Ezechias Heringer encontrou espécies raras de orquídeas é um exemplo de desrespeito ao meio ambiente. Em meio à vegetação típica, limoeiros, pés de mamona e bananeiras contrastam com as árvores nativas do cerrado. Plantas que os invasores levaram para o fundo do quintal das casas de madeira e de alvenaria escondidas no meio das árvores altas da mata de galeria que protegem o córrego do Guará. O parque de 310 hectares, na QE 23 do Guará 2, foi criado em 16 de agosto de 1984, mas passou a ser chamado Parque Ecológico Ezechias Heringer em 8 de setembro de 1994.
Embora esteja aberto ao público, das 6 às 19h, a falta de estrutura afasta os visitantes. O mato está alto, as duas quadras de esporte precisam de reforma e os bancos de madeira estão sempre vazios. O secretário de Administração dos Parques e Unidades de Conservações do DF (Comparques), Ênio Dutra, garante que o governo retirará os 81 chacareiros que ainda moram na reserva e que o parque será cercado e reestruturado. Estamos em dívida com o Ezechias, reconhece.
No lugar, já foram encontradas 72 espécies de orquídeas, o que equivale a mais de 30% da flora de orquídeas do DF. O parque leva o seu nome porque nessa região ele fez várias coletas, inclusive de orquídeas, diz Ana Júlia Heringer, diretora do Jardim Botânico.
A retirada dos invasores começou. De junho a novembro de 2004, 157 famílias saíram do parque. A maioria dos chacareiros que resistem está na área há mais de dez anos. João Gabriel de Assis, 75 anos vive num barraco de madeira há dois anos, mas admite que mora no cerrado há uns 14 anos.
Para homenagear o centenário do nascimento do botânico, o Ezechias Heringer foi incluído no circuito ecológico dos parques. O evento esportivo, promovido pela Comparques, está programado para o próximo domingo. Outra iniciativa será o plantio de espécies estudadas por Ezechias. As plantas coletadas pela equipe do Jardim Botânico pelas trilhas de Minas Gerais por onde passou o botânico serão reproduzidas em laboratório e reintroduzidas no parque. No próximo período chuvoso, cem mil mudas, inclusive de orquídeas, estarão prontas para o plantio, acredita Ana Júlia. (R.A.)

Seu legado
Parque Nacional de Brasília
Foi uma das primeiras áreas estudadas e defendidas por Ezechias Heringer. Os 30 mil hectares do cerrado protegem as bacias dos rios Torto e Bananal que, por meio da barragem de Santa Maria, ajudam a abastecer Brasília. Criado em 29 de novembro de 1961, o parque preserva mamíferos ameaçados de extinção, como o lobo-guará, veado-campeiro, tatu-canastra, tatu-bola e tamanduá-bandeira. Hoje, uma audiência pública decide se o parque ganhará mais 16 mil hectares. Distante 9 quilômetros do centro de Brasília, o parque é uma das principais atrações turísticas da cidade.
Águas Emendadas
São 10.547 hectares na região de Planaltina. Em 1966, Ezechias propôs a criação da reserva que só foi consolidada em agosto de 1968. A Reserva Biológica de Águas Emendadas teve no início cinco mil hectares. Com a necessidade de proteger a vegetação do cerrado, a área dobrou de tamanho. Mais tarde passou a ser chamada de Estação Ecológica de Águas Emendadas. É uma unidade de conservação de proteção integral, com entrada restrita a pesquisadores. Pela excelente conservação, foi declarada em 1992 pela Unesco como uma das áreas que compõem a área nuclear da Reserva da Biosfera do Cerrado.
Reserva Ecológica do IBGE
Ezechias Heringer foi o primeiro chefe da unidade de conservação, que fica na estrada de acesso a Unaí (MG). A reserva tem 1.350 hectares e faz divisa com a Fazenda Água Limpa da UnB e com o Jardim Botânico. Em 1984, ele pediu aos botânicos da unidade de conservação que estudassem as espécies do cerrado ao longo do Rio Descoberto. Na época, planejava-se um segundo lago, que seria formada com a inundação do vale. Na área, encontra-se os vários tipos de vegetação do cerrado, como campo sujo, mata de galeria, vereda e cerrado propriamente dito. A fauna é rica e diversificada.
Jardim Botânico
Teve a criação defendida por Ezechias. No início, tinha apenas 500 hectares e era chamado de Estação Florestal Cabeça-de-Veado. Por conta do tamanho, o biólogo temia que o crescimento da cidade acabasse por invadir a área protegida. Por conta disso, defendia que o Jardim Botânico fosse transferido para Águas Emendadas. Em 1992, depois da sua morte, o Jardim Botânico conquistou mais 4.500 hectares. É o maior Jardim Botânico do Brasil, ao lado do de Manaus (AM).

CB, 05/04/2005, p. 27

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