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O grito do artista

O Globo, Segundo Caderno, p. 1
06 de Out de 2015

O grito do artista
Coerente com sua trajetória engajada, o escultor Frans Krajcberg lidera no Rio e em Paris evento que antecipa questões da Conferência do Clima da ONU

NANI RUBIN
nani@oglobo.com.br

Aos 94 anos, escultor lidera evento sobre meio ambiente, clima e arte em Paris e no Rio. Numa época em que a prática artística se encontra tão dissociada da militância política, Frans Krajcberg é uma figura rara. O artista poderia, aos 94 anos, continuar produzindo suas esculturas a partir de troncos e raízes calcinadas pelos incêndios que derrubam densas áreas verdes para transformá-las em pastos, e já estaria fazendo bastante, ao chamar atenção para a destruição das florestas. Ele vai além, com um discurso que ultrapassa o da arte engajada para se constituir puro engajamento. Às vésperas da 21ª Conferência do Clima (COP21), que será realizada de 30 de novembro a 11 de dezembro, em Paris, com chefes de Estado e de governo dos 196 países membros da ONU, ele esteve no Rio, em setembro, para acertar a programação do Grito para o Planeta, plataforma de colaboração internacional preparatória do evento.
O Grito para o Planeta acontecerá aqui e em Paris. No Rio, a programação, organizada com parceiros como o Instituto Paula Saldanha e o governo federal, terá um dia inteiro de encontros, em 19 de novembro, no Jardim Botânico, com participação da ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro e de líderes indígenas como Francisco Pianko Ashaninka, entre outros. Uma das mesas versará sobre perspectivas internacionais de engajamento entre arte e ação - para ela foram convidados artistas como Ernesto Neto, Tunga, Cildo Meireles e Oskar Metsvahat.
Na capital francesa, O Grito para o Planeta acontecerá no Museu do Quai Branly, com a Segunda Quinzena Amazônica, a partir de 1o de dezembro. A vasta programação inclui mostra de filmes de realizadores indígenas e debates.
- É preciso falar sobre a destruição do planeta. E é preciso falar sobre cultura - diz ele. - Estamos passando por momentos difíceis, tem um vazio de arte, não se pronuncia mais a palavra cultura. É uma crise mundial, mas no Brasil parece estar mais profunda. Porque aqui, também se trata de uma crise moral.
A FLORESTA COMO REFÚGIO
O Brasil é o país que importa a Krajcberg. Brasileiro desde 1957 ("A imprensa insiste em dizer que sou polonês naturalizado brasileiro; não sou. Sou brasileiro", observa), ele nasceu em Kozienice, Polônia, em 11 de abril de 1921. Chegou aqui em 1948, depois de lutar na Segunda Guerra, onde toda a sua família, de origem judia, foi dizimada no Holocausto.
- Perdi toda a minha família de modo bárbaro. Sabe o que é isso? Fazer um buraco enorme, jogar eles vivos, jogar terra em cima? Não suportava mais viver. Fiquei sozinho, quis fugir de tudo, principalmente do homem.
A exuberante natureza do novo país lhe deu o refúgio que buscava. Em 1972, fixou residência em Nova Viçosa, no Sul da Bahia, onde vive até hoje, no Sítio Natura, cercado pela única porção de Mata Atlântica remanescente na região, e que tomou para si a tarefa de manter intacta. É lá que vem dedicadamente construindo um museu para abrigar suas obras, que calcula serem em torno de 300. O assunto lhe traz ressentimento.
- Lá no Sul da Bahia não me dão nem bom dia. Não sei o que vou fazer. Venho trabalhando sozinho, não sei se tenho mais forças - diz, com a mágoa ampliada pelos cinco assaltos que sofreu: num deles, levaram o cordão, que era a única lembrança que guardava de sua mãe (depois do último roubo, três policiais militares revezam-se na segurança da propriedade e do artista).
Quem mais se interessa pela sua obra, diz ele, é a França. Instado por um câncer de pele que inviabiliza sua permanência nos trópicos durante o verão, o artista passa alguns meses por ano em Paris, onde a prefeitura lhe ofertou um espaço no qual suas obras doadas para a cidade estão expostas em caráter permamente. É o Espace Krajcberg, presidido pelo francês Claude Mollard, fotógrafo e conceituado gestor cultural, que está também à frente das iniciativas ambientais nas quais o escultor se empenha.
- Ele sempre me dizia que não fazia arte, que expressava a sua revolta. Acho que o que quer dizer é que não faz arte pela arte. Não é um ato gratuito. Tem uma implicação maior - diz Marcia Barrozo do Amaral, galerista e amiga.
Como os sulcos no tronco revelam a história de uma árvore, o rosto de Krajcberg guarda em cada ruga e no olhar assombrado os horrores vistos em vida. A idade avançada já lhe tomou grande parte da audição; a visão também está prejudicada. E o caminhar, evidente, já não é firme. Se o corpo demonstra sinais de enfraquecimento, as ideias são defendidas com energia visceral.
- Vocês não sabem o que está acontecendo na Amazônia. É um massacre. É uma floresta única no planeta, e está sendo destruída. Precisamos interromper esse ciclo - fala ele, com fervor revolucionário, que combina bem com o boné à moda "guevariana" que portava no dia desta conversa, no Jardim Botânico, seu local preferido no Rio..
ARTISTA PREPARA LIVROS-OBJETOS
Se não tem mais agilidade para viajar à Amazônia e ao Pantanal para recolher material, hoje ele busca matéria-prima onde mora, no Rio Peruíbe. De lá retira troncos e raízes desgastados pela água e pela ação de peixes, construindo relevos de parede. Também vem retrabalhando antigos desenhos dos anos 1950 a 70, que devem compor uma tiragem especial de livros-objetos da editora Aprazível, cada um com uma capa-escultura.
- Eu me acho cada vez mais jovem, não penso na velhice - diz ele. -Fugi de tudo o que é cruel, mesquinho, porque não dá alegria.

O Globo, 06/10/2015, Segundo Caderno, p. 1

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