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O governo deve conceder terras na Amazônia para exploração florestal?

FSP, Tendência/Debates, p. A3
Autor: LEITE, Rogério Cezar de Cerqueira; CAPOBIANCO, João Paulo R.; AZEVEDO, Tasso Rezende de
07 de Ago de 2004

O governo deve conceder terras na Amazônia para exploração florestal?

Não
Clima e cataclismo

Rogério Cezar de Cerqueira Leite

O alerta vem da competente equipe de pesquisadores especializados em mudanças climáticas, membros do Cptec (Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos), vinculado ao Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). Em resumo, concluem eles, de observações realizadas em pelo menos duas décadas, que, a continuar o desmatamento da Amazônia no ritmo atual e, simultaneamente, persistir a humanidade no consumo desenfreado de combustíveis fósseis e conseqüente aumento da temperatura média da biosfera, ocorrerá em algumas décadas a "savanização" de cerca de 60% da mata amazônica. Savanização é um eufemismo para desertificação.
A queima de combustíveis fósseis e as queimadas emitem gás carbônico e outros gases que são os principais responsáveis pelo já comprovado, lento porém inexorável, aquecimento global, cujas conseqüências para a vida na Terra são imprevisíveis. Estudos realizados também no Inpe já revelam uma macabra correlação entre as flutuações da densidade de dióxido de carbono na atmosfera e o daninho fenômeno denominado El Niño. Anomalias, como a onda de calor que assolou a Europa no ano passado e que só na França sacrificou 2.000 pessoas, são atribuíveis, em última análise, ao efeito estufa devido ao uso abusivo de combustíveis fósseis.
Não bastassem essas ameaças, a equipe do Inpe vem nos alertar para mais uma perspectiva lúgubre, a formação de aerossóis como conseqüência de queimadas -essas partículas interferem na formação de nuvens, reduzindo localmente as chuvas e a solaridade, com o que a fitomassa é aniquilada, podendo mesmo ocorrer queimadas espontâneas, fechando-se assim um ciclo vicioso catastrófico.
Por outro lado, 60% da Amazônia corresponde a uma quantidade imensa de fitomassa e, conseqüentemente, a um aumento adicional de dióxido de carbono na atmosfera que poderá vir a se tornar uma calamidade universal. Senão, vejamos. De acordo com H. Klinge e outros ("Tropical Ecological Systems", Springer, Nova York), a densidade média da fitomassa na floresta amazônica é de 740 toneladas por hectare na parte aérea, acrescidas de 255 toneladas de raízes. Portanto a parcela da Amazônia que desaparecerá por queimas ou decaimento (apodrecimento) será de 300 bilhões de toneladas de fitomassa, ou seja, o equivalente, quanto à emissão de gases de efeito estufa, a tudo o que a humanidade já consumiu, desde o início da Revolução Industrial, de petróleo e gás natural.
Essa emissão poderá resultar em um acréscimo de gases de efeito estufa na atmosfera igual ao dobro daquele resultante das queimas de petróleo e gás natural até o presente, pois os oceanos, que vêm absorvendo generosamente cerca da metade do gás carbônico emitido, poderão deixar de fazê-lo. Há fortes indícios de que esse processo está se saturando rapidamente. Podemos, pois, esperar que, com a continuação das queimadas na Amazônia, haja um acréscimo de dióxido de carbono na atmosfera igual ao ocorrido desde meados do século 19 devido à queima de todos os combustíveis fósseis, inclusive o carvão. Teremos 10%, 20%, talvez mais da superfície da Terra inundada, o fim da fauna marítima, incêndios urbanos, verões insuportáveis, supressão de safras etc.
Quando, há um quarto de século, este autor aqui no Brasil e alguns outros no exterior, principalmente nos EUA, alertaram a opinião pública quanto ao efeito estufa, o descrédito foi total. E isso é compreensível. Um certo grau de ceticismo é saudável e mesmo obrigatório para o cientista. Todavia o que se observou, mesmo quando já não havia dúvidas, foi uma atitude de rejeição irracional em relação a uma realidade crescentemente adversa.
Foi assim que, insatisfeita com nossa própria capacidade de depredação da floresta, a administração FHC, assistida por vorazes governadores, facultou a instalação de madeireiras estrangeiras que haviam exterminado a floresta em seu país de origem, a Indonésia.
Mas parece que as madeireiras indonésias e brasileiras não estão sendo suficientemente devastadoras, posto que o Ministério (da devastação) do Meio Ambiente resolveu alugar a Amazônia para madeireiras "sustentáveis". Há, é verdade, uma vestimenta ecológica perfumada. Mas, como diz o Mefistófeles de Goethe, "embora vestida com brocados e lantejoulas, uma pulga ainda é uma pulga".
O pensamento predominante era, até recentemente, o de que, consumindo menos que 1% do combustível fóssil do planeta, nada de muito efetivo poderia o Brasil fazer. Mas agora o desmatamento da Amazônia é problema exclusivamente nosso, a menos que concedamos a internacionalização da área. Se não o fizermos, temos de assumir essa responsabilidade. Agora que o Sivam já realizou o objetivo para o qual foi criado -socorrer uma empresa americana especializada em espionagem e guerra-, poderia se dedicar principalmente ao monitoramento de queimadas.
Se a floresta amazônica já foi um generoso e benevolente patrimônio nacional, ela hoje encerra, antes de tudo, uma ameaça de amplo extermínio de vida vegetal e animal, inclusive humana, que se estende por todo o globo. Talvez seja necessário criar um Ministério de Proteção do Meio Ambiente.
Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 72, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.

Sim

Uso sustentável, com soberania

João Paulo R. Capobianco e Tasso Rezende de Azevedo

O projeto de lei para a gestão de florestas públicas deve ser implementado e será importante para o Brasil. Primeiro, por uma questão de proteção ambiental e de respeito à legalidade. Segundo, pela forma democrática e respeitosa com que esse projeto de lei tem sido construído. E, acima de tudo, pelo que representará para milhões de brasileiros que dependem diretamente da floresta e de toda a sua biodiversidade.
A falta de um marco legal que permita a utilização em bases sustentáveis das florestas que recobrem extensas áreas sob o domínio do poder público tem levado o Brasil a privatizar suas terras públicas, passando esse patrimônio ao setor privado a partir da emissão de títulos e documentos de posse. Esse procedimento alimenta o processo de grilagem e ocupação ilegal, sempre associado à violência contra populações locais, especulação imobiliária, desmatamento e exploração predatória e ilegal da madeira e outros produtos florestais.
Para enfrentar esse problema, que tem gerado enormes prejuízos à sociedade brasileira, o governo federal decidiu elaborar o projeto de lei, em fase de ajustes finais pelos ministérios relacionados com o tema, sob a coordenação da Casa Civil da Presidência da República. Seu objetivo é estabelecer uma alternativa ao uso sustentável da floresta, sem que o poder público transfira o domínio que possui sobre as mesmas.
Haverá três modalidades de gestão de florestas públicas. A primeira é a criação e gestão de unidades de conservação de usos sustentáveis, como as Florestas Nacionais. A segunda é a destinação para uso comunitário de forma não onerosa e utilizando instrumentos como a criação de assentamentos florestais, quilombolas e reservas extrativistas. A destinação para comunidades não implicará pagamento pelo uso da floresta. E, por fim, a terceira modalidade é a concessão para manejo florestal através de concorrência pública com pagamento pelo uso da floresta. Isso será feito por meio de planos anuais de outorga, com ampla consulta pública, para definir as áreas passíveis de concessão.
É fundamental destacar que o manejo florestal que está sendo preconizado nessas áreas, no caso da produção de madeira, significa a extração de 5 a 6 árvores por hectare (ou seja, menos de 3% dos indivíduos) a cada 30 anos, o que é bem diferente do desmatamento que implica a retirada total da floresta, com perda de biodiversidade. As concessões não serão apenas para a produção de madeira, mas também de produtos não-madeireiros (como óleos, resinas e frutos) e de serviços, como o turismo.
O Brasil tem excelentes experiências na área de manejo florestal, fruto de trabalhos científicos de instituições como Embrapa, Inpa, Ibama, entre outras. Recentemente, o país ultrapassou a marca de 1 milhão de hectares de florestas tropicais certificadas pelo FSC (Conselho Mundial de Manejo Florestal), que requer altos padrões socioambientais para a extração de produtos florestais. Ao atingir essa marca, o Brasil passou a ter a maior área de floresta tropical certificada do mundo. É esse modelo que o governo pretende adotar para a gestão de suas florestas públicas.
O projeto de lei é uma iniciativa que foi amplamente discutida por todos os segmentos representativos da Amazônia e do setor florestal brasileiro, incluindo movimentos sociais, ambientalistas, trabalhadores, pesquisadores, governos estaduais e o setor privado. O projeto foi redigido com o apoio de representes desses segmentos, debatido em dezenas de reuniões regionais e setoriais. Além disso, ele foi discutido e aprovado na Conaflor (Comissão Coordenadora do Programa Nacional de Florestas), que reúne representantes de todos os setores envolvidos com o tema florestal no Brasil.
Finalmente, é importante destacar que praticamente todos os países com florestas do mundo possuem uma lei para regular o acesso e o uso dos seus recursos florestais. No caso da Amazônia, onde mais de 45% das terras são devolutas, a regulamentação proposta nesse projeto de lei é essencial para assegurar o controle e a soberania sobre o enorme patrimônio florestal público do Brasil.

João Paulo Ribeiro Capobianco, 41, biólogo, é o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente. Tasso Rezende de Azevedo, 32, engenheiro florestal, é o diretor de Florestas do Ministério do Meio Ambiente.

FSP, 07/08/2004, Tendência/Debates, p. A3

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