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O garimpo no poder: as cidades em que ser alvo de um órgão ambiental é visto como trunfo eleitoral

O Globo - https://oglobo.globo.com/
23 de Set de 2024

O garimpo no poder: as cidades em que ser alvo de um órgão ambiental é visto como trunfo eleitoral
Segunda reportagem especial aborda o aumento de candidatos ligados a extração mineral no interior do Pará; postulantes realizam obras em áreas de proteção

Eduardo Gonçalves e Cristiano Mariz

23/09/2024

"Esse o povo aprovou, a voz dos garimpeiros", anunciava o jingle na entrada da sede de uma das maiores cooperativas de exploradores de ouro de Itaituba (PA), a 1.200 quilômetros de Belém. O local, decorado com bandeira do PT e bexigas vermelhas, foi escolhido por um candidato a vereador ligado à categoria para fazer campanha e pedir votos para o sucessor do atual prefeito, Valmir Climaco (MDB), dono de minas na região. "Quero ser parceiro de vocês", discursou o emedebista em 5 de setembro.

Do outro lado do município, no dia seguinte, um telão improvisado na principal rua de compra e venda do metal precioso exibia imagens de obras numa comunidade instalada numa área de extração do minério. As melhorias eram reivindicadas pelo postulante a prefeito Wescley Tomaz (Avante), filho de comerciantes do garimpo. "Esse governo abandonou os garimpeiros. O resultado disso é que estão passando fome", falou em cima do palanque.

Embora em lados opostos das eleições, os dois estão unidos pelo mesmo propósito que vai além da coloração partidária: chegar ao poder municipal e expandir a influência do garimpo numa das áreas mais devastadas da região amazônica. Quem ganhar as eleições em Itaituba poderá conceder licenças para explorar ouro na região. Essa autorização é de responsabilidade da Agência Nacional de Mineração (ANM), mas no Pará depende de permissão prévia emitida pelas prefeituras - nas demais federações, é o governo estadual quem dá esse aval prévio.

Líder do ranking de alertas de garimpo, Itaituba virou um retrato de como candidatos ligados à exploração de minérios continuam avançando nas eleições. Segundo levantamento do GLOBO com base em dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e da agência de mineração, 101 nomes vão tentar se eleger prefeito, vice ou vereador em outubro.

A quantidade supera até mesmo 2020, quando, impulsionados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, um defensor do garimpo em áreas de proteção ambiental, 93 nomes ligados à atividade concorreram. Um quinto das candidaturas deste ano se concentra em três cidades no Sudoeste do Pará: Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso. Todas elas figuram na lista dos dez municípios com mais alertas de garimpo registrados no ano passado.

Nessas cidades do ouro da região, ser alvo de um órgão ambiental também é visto como trunfo eleitoral por políticos ligados ao garimpo. O prefeito de Novo Progresso, Gelson Dill (MDB), por exemplo, atribui a sua eleição em 2020, em parte, a uma multa ambiental que recebeu do Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade (ICMBio) na campanha.

Empresário do ramo de madeira, o emedebista foi autuado por ter supostamente desmatado uma área de 174,5 hectares. A multa aplicada na época era de R$ 4 milhões.

- Se chegar alguém aqui batendo: "O prefeito é um desmatador", ganha voto. Tomou uma multa do Ibama, já ganha voto - disse Dill, que busca a reeleição neste ano. - Foi uma grande cartada para mim, mas eu não fiz o fato. Foi uma dessas multas que eu acabei recorrendo e ganhando na Justiça. Estou colocando isso como o pessoal daqui da sociedade pensa - acrescentou.

Vizinha de Itaituba, Novo Progresso tem 33 mil habitantes e sintetiza os problemas atuais da Amazônia: desenvolveu-se a partir da descoberta do ouro no Rio Tapajós e ficou nacionalmente conhecido a partir do "Dia do Fogo", quando fazendeiros se organizaram para abrir pasto com incêndios florestais. Hoje, o município enfrenta um impasse na Justiça para desalojar centenas de grileiros da Floresta Nacional do Jamanxim - a unidade de conservação mais desmatada da Amazônia.

Em busca de agradar aos garimpeiros, prefeitos e candidatos ainda realizam obras em áreas de proteção. Em São Félix do Xingu, cidade de 65,4 mil habitantes a 985 quilômetros de Belém, o prefeito João Cléber (MDB), candidato à reeleição, foi alvo de uma ação civil pública do Ministério Público Federal no ano passado por usar recursos públicos para reformar uma estrada clandestina dentro da Terra Indígena Apyterewa - uma das mais desmatadas da Amazônia.

As obras, segundo a investigação, tinham o objetivo de dar apoio a invasores que abriram áreas de garimpo na área de preservação e criam gado na reserva.

O prefeito afirmou ter recebido autorização da Fundação Nacional do Índio (Funai) para realizar a obra sob o pretexto que também atenderia os indígenas. O Ministério Público Federal, contudo, argumenta que a via levava à fazenda de um dos invasores. Além do prefeito, o diretor da autarquia federal que deu aval à obra foi denunciado na ação.

- Tem vários distritos e vilas ali dentro. Todo ano era feito o patrolamento (o nivelamento da estrada de terra com máquina de terraplanagem, tornando-a própria para a circulação de veículos), porque ali tinha muitas famílias e precisava de uma estrutura da saúde e educação - afirmou Cleber.

Áreas preservadas
Nestas eleições municipais, também está em jogo nas cidades do ouro uma disputa pela exploração do metal precioso em áreas de proteção ambiental. Em Jacareacanga, município de 24 mil habitantes, a 1.640 quilômetros de Belém, o comando da prefeitura é cobiçado por duas candidaturas integradas por indígenas mundurukus, etnia cujo território cerca o município.

O povo munduruku, que domina a cidade, está dividido entre os que apoiam a extração de ouro nas suas terras e os que são contra. Na hora de escolher o prefeito, no entanto, não há divergência no tema.

O atual prefeito, Sebastião Aurivaldo Pereira Silva (MDB), o Valdo do Posto, tem como principal cabo eleitoral o seu vice, o indígena Valmar Kaba, filiado ao PT. A chapa também conta com o apoio da Rede, da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.

Na época, ele chegou a ser preso e afastado do cargo temporariamente. Depois, retomou o posto e agora disputa a reeleição. Procurado, ele não quis se pronunciar sobre a condenação.

Em 2022, Kaba foi condenado a quatro anos de prisão em regime semiaberto por liderar um protesto violento contra agentes da Polícia Federal que faziam uma operação, a Mundurukânia, contra o garimpo ilegal na região - dois policiais foram feridos com o lançamento de pedras, rojões e pedaços de pau.

O outro candidato é o presidente da Câmara Municipal, Giovani Kaba Munduruku (União Brasil), que antes de se tornar vereador era garimpeiro. A exemplo do seu adversário na disputa, a promessa é atuar para que a exploração do ouro nas áreas indígenas, hoje proibidas, sejam autorizadas.

A lógica do ilegal que pode vir a se tornar legal domina o discurso político na Amazônia e se relaciona com a forma de ocupação pela qual passou a região.

O professor Maurício Torres, da Universidade Federal do Pará, explica que o uso das terras públicas na linha do "dono é quem desmata" foi a marca de políticas a partir da segunda metade do século passado. Essa prática continua a gerar efeitos. Nesses locais, a exploração avança sobre as instituições.

- O garimpo se tornou tão hegemônico na região que ele virou praticamente sinônimo do poder político e econômico. É difícil achar um político que não tenha algum tipo de ligação a isso por lá - afirmou ele. - Há um sistema de exploração no país em que a ilegalidade produz a lei e a própria lei produz um novo ciclo de ilegalidade.

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