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O fim de uma expedição longa e arriscada

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: LEONÊNCIO NOSSA
10 de Set de 2002

Durante três meses, indigenistas buscaram vestígios de grupos isolados na Amazônia

Foi uma das mais longas e arriscadas expedições amazônicas das últimas duas décadas. Depois de três meses de trabalho e emoção, terminou no fim de semana a viagem de indigenistas federais em busca de vestígios de povos desconhecidos, nas cabeceiras dos Rios Itaquaí e Jutaí, extremo oeste do Amazonas, na fronteira com a Colômbia e o Peru. O grupo, chefiado pelo sertanista Sydney Possuelo, chefe do Departamento de Índios Isolados da Fundação Nacional do Índio (Funai), percorreu 3.743 km, quase mil além do previsto. Ao desviar de um trajeto com declives acentuados, os 35 homens acabaram entrando no território dos chamados "flecheiros" e foram obrigados a andar por até oito horas na selva, muitas vezes sem comida, para sair da zona de perigo.

Com os dados coletados, os indigenistas têm agora a dimensão da terra ocupada por pelo menos seis povos de etnia, língua e população desconhecidas, que ainda vivem como os brasileiros encontrados pelos colonizadores portugueses. A finalidade é conter o avanço da "civilização" no território de um povo sem relações com a sociedade, que, no entanto, está na mira de madeireiros, ONGs, religiosos estrangeiros, traficantes de drogas e índios aculturados decididos a "amansar" os "parentes".

Indigenistas, mateiros e índios intérpretes andaram 267 km em 22 dias seguidos na mata, acompanhados pela reportagem da Agência Estado. Foram 39 acampamentos, dez rios navegados, 3.105 km em barcos motorizados e 371 km no braço, em uma jangada de palmeira e duas canoas a remo de 15 metros, construídas em 12 dias. A história surpreendeu os barqueiros e pescadores de Jutaí, a primeira cidade depois da travessia da floresta.

No meio da mata, toda vez que se ouviam gritos ou se avistavam vultos de índios isolados, os integrantes da expedição mudavam de rota. Nem sempre foi assim. Até os anos 80, a política do governo brasileiro era fazer contato e transformar índios em "caboclos bons". O Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão federal que deu origem à Funai, chegou a ser usado na "limpeza" de grandes extensões de florestas usadas pelos produtores de látex. Quem adquiria título de terras, geralmente devolutas, financiava os profissionais do SPI para "pacificar" os índios.

Confrontos - As marcas desses confrontos entre seringueiros, caçadores, madeireiros e índios desconhecidos ainda permanecem vivas no interior da selva amazônica. Depois de semanas sem ver o sol, encoberto por copas de grandes árvores e cipoais, na floresta, a expedição indigenista encontrou uma série de vestígios que podem ajudar a contar a história de brancos e índios, na região das cabeceiras dos rios do Alto Solimões.

Os especialistas acharam, por exemplo, um caldeirão de alumínio de 40 centímetros de diâmetro, muito comum nos ranchos de seringueiros na mata.

Com um furo provocado pelo uso, a panela estava abandonada num acampamento improvisado de índios "flecheiros", que possivelmente estavam a caminho das praias de rios e lagos da região.

Uma hora antes, a expedição deparou com uma plantação, também abandonada, de mandioca, ananás, banana, cana e pupunha. O cacho de uma bananeira tinha sido cortado. O tipo de corte indicava o uso de facão. Uma árvore também fora derrubada com machado, concluíram os mateiros. O uso desse instrumento foi uma das causas dos choques entre índios e não-índios. Tribos não hesitam em declarar guerra a brancos por causa de objetos como machados e facões.

Drama real - "A humanidade perde parte de sua face toda vez que um povo desconhecido entra em contato com o nosso mundo", afirma o sertanista Sydney Possuelo. "Muitos defendem negros, mulheres e até índios aculturados, mas ninguém fala nos direitos humanos dos povos isolados." A Amazônia é um drama real para esse filho de ator de teatro e circo que tomou gosto pela aventura antes de se entregar à causa indígena, na adolescência, quando acompanhou o pai em uma viagem pelo Nordeste.

Aos 17 anos, Possuelo resolveu bater à porta do sertanista Orlando Villas-Bôas, que ele via em fotos sensacionais estampadas na revista O Cruzeiro. Um dia foi atendido. Após passar pelo Exército e por vários empregos em São Paulo, passou a viajar com Villas-Bôas. Ganhou o apelido de "Xingu" e não largou mais o indigenismo. Agora, aos 62 anos, ele teve de usar a experiência de mais de três décadas no mato para conseguir a proeza de atravessar o grupo das cabeceiras do Itaquaí às águas do Jutaí.

Homem exigente e de temperamento tenso, muitas vezes suas orientações não eram entendidas pelos índios e mateiros experientes. Foi o que ocorreu, por exemplo, quando os homens chegaram ao local em que o Jutaí apresentava condições de navegação e ele não quis que continuassem o trajeto de barco, mas a pé. Após 20 dias seguidos de caminhada, o líder não dava ordens para os homens montarem estaleiros e descerem o rio de canoas. Eles só foram entender a necessidade de continuar andando ao ver, mais à frente, sinais da presença de índios isolados.

Possuelo não andava tanto desde o contato com os araras, no Pará, entre os anos 70 e 80 e sabe que vai ser difícil evitar novas tentativas. "O problema é que o coração não envelhece como as pernas."

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