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O fator humano

Veja Especial, p. 8, 10, 16-17, 20-81
30 de Set de 2009

Com a palavra, o homem da Amazônia

Empenhado em interpretar o caráter singular da Região Norte, o grande Euclides da Cunha expressou seu assombro no livro Um Paraíso Perdido: "A Amazônia é a última página, ainda a escrever-se, do Gênesis". Passou-se um século e ainda não se sabe como essa página será preenchida. Há consenso entre os brasileiros de que a preservação da Floresta Amazônica é vital para o Brasil e para o planeta e de que ainda dá tempo de salvá-la. Fora isso, governo, ambientalistas, madeireiros, pecuaristas têm propostas conflitantes e vivem aos gritos uns com os outros. Estranhamente, o único elemento mantido à margem dessa equação é o protagonista da saga amazônica: o homem que vive na região. A ausência prejudica o debate, pois o destino da Amazônia depende de seus 25 milhões de habitantes, e não de papelórios feitos em Brasília ou da boa vontade das ONGs.
Para produzir esta edição especial, VEJA enviou seis equipes de repórteres e fotógrafos para percorrer a Amazônia, ouvir e entender seus habitantes. Durante três meses, eles passaram por seis estados, estiveram em 52 cidades, rodaram 11 000 quilômetros de estradas (o suficiente para fazer três vezes o percurso entre o Oiapoque e o Chuí), voaram 47 351 quilômetros (seria possível dar a volta ao mundo) e navegaram mais de 500 quilômetros pelos rios da região. Os repórteres conversaram com centenas de pessoas que compõem esse novo tipo de brasileiro - o homem da Amazônia. Esta edição mostra que é preciso dar a ele condições de vida dignas e uma economia que não dependa do desmatamento. Só assim ele preservará a floresta, em vez de destruí-la, porque terá orgulho de sua riqueza natural única no mundo.

O fator humano
Moram na Amazônia 25 milhões de pessoas, a grande maioria em áreas urbanas. É dessa gente que depende o futuro da maior floresta tropical do planeta. Veja quem são e como vivem os atuais desbravadores do norte do Brasil

Nos anos 70, durante o auge dos grandes projetos de infraestrutura implantados pelos governos militares, a Amazônia era conhecida como o inferno verde. Uma mata fechada e insalubre, empestea-da de mosquitos e animais peçonhentos, que deveria ser derrubada a todo custo - sempre com incentivo público - pelos colonos, operários e garimpeiros que se aventuravam pela região. Essa visão mudou bastante nas últimas duas décadas, à medida que os brasileiros perceberam que a região é um patrimônio nacional que não pode ser dilacerado sem comprometer o futuro do próprio país. Com seus 5 milhões de quilômetros quadrados, a Amazônia representa mais da metade do território brasileiro, 3,6% da superfície seca do planeta, área equivalente a nove vezes o território da França. O Rio Amazonas, o maior do mundo em extensão e volume, despeja no mar em um único dia a mesma quantidade de água que o Tâmisa, que atravessa Londres, demora um ano para lançar. O vapor de água que a Amazônia produz por meio da evaporação responde por 60% das chuvas que caem nas regiões Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil.
Mesmo agora, com o reconhecimento de sua grandeza, a Floresta Amazônica permanece um domínio da natureza no qual o homem não é bem-vindo. No entanto, vivem lá 25 milhões de brasileiros, pessoas que enfrentaram o desafio do ambiente hostil e fincaram raízes na porção norte do Brasil. Assusta observar que, no intenso debate que se trava sobre a melhor forma de preservar (ou, na maior parte das vezes, ocupar) a floresta, esteja praticamente ausente o maior protagonista da saga amazônica: o homem. É uma forma atravessada de ver a situação, pois o destino da região depende muito mais de seus habitantes do que de papelórios produzidos em Brasília ou da boa vontade de ONGs. A prioridade de todas as iniciativas deveria ser melhorar a qualidade de vida e criar condições econômicas para que seus habitantes tenham alternativas à exploração predatória. Só assim eles vão preservar a floresta em vez de destruí-la, porque terão orgulho de sua riqueza natural única no mundo.
A exuberância da natureza contrasta com a qualidade de vida dos amazônidas. A imagem idílica do caboclo que vive no paraíso tropical e nele quer permanecer só tem correspondência com o mundo real na imaginação de quem vive longe dali. Mesmo aquele que mora em pontos distantes, só acessíveis por barcos, assiste às novelas em televisores com antenas parabólicas e energia elétrica proveniente de geradores a óleo diesel. É natural que queira viver com os confortos modernos presentes no Sudeste, e não como uma relíquia viva do século passado. O ribeirinho, assim como o índio em sua aldeia, prefere cozinhar em fogão a gás, nem que para isso precise pagar por esse conforto com bens retirados da floresta. Em áreas rurais, a ausência de comércio e de dinheiro faz do escambo uma forma corriqueira de abastecimento da população. Um gerador, para manter a TV ligada por duas horas, consome 1 litro de diesel, que no mercado local pode ser trocado por um "bicho de casco" - em geral o tracajá, tartaruga que pode alcançar 8 quilos e é um petisco tradicional. Como explicar a essas pessoas que caçar animais que há gerações são parte da dieta local é agora um crime ambiental?
Depois do período colonial, a primeira grande onda migratória para a Amazônia ocorreu na virada do século XIX para o XX. Hordas de flagelados por três secas sucessivas no Nordeste foram enviadas para extrair o látex. Estima-se que entre 300 000 e 500 000 tenham se instalado na floresta. O fim do ciclo da borracha não apenas deixou os seringueiros abandonados, mas também arruinou a elite bem-educada, europeizada, de Manaus e Belém. Durante a II Guerra, para aproveitar uma curta crise no fornecimento de borracha, mais 150 000 pessoas foram despachadas para o Acre, Amazonas e Pará. A terceira e mais importante onda migratória foi incentivada pelos militares nos anos 70. A Zona Franca de Manaus, o avanço da agricultura e da pecuária e os assentamentos do Incra são agora os atrativos para a transferência de tantos brasileiros para a região.
Esses migrantes, somados aos indígenas e moradores antigos, mesclaram-se para formar um "Homo amazonius", o brasileiro adaptado à região. O país não o entende muito bem. As políticas para a Amazônia geralmente focam a população rural, o chamado povo da floresta. Esse modo de pensar podia fazer sentido no início dos anos 70, quando apenas 3,5% dos habitantes da região viviam em áreas urbanas. Nas últimas três décadas, o perfil demográfico se transformou em ritmo acelerado. Hoje, 73% da população vive nas cidades - e seus problemas são similares aos dos habitantes de qualquer cidade do Sul ou do Sudeste, só que agravados pela falta de serviços básicos de infraestrutura.
As soluções que propõem manter o homem no mato, sem possibilidade de progresso pessoal, mostram resultados pífios. O exemplo mais flagrante é o das reservas extrativistas de subsistência, uma receita criada pelo líder seringueiro Chico Mendes nos anos 80. Há hoje 86 dessas reservas, habitadas por 300 000 pessoas. Visto que colher látex e castanhas se mostrou insuficiente para garantir uma vida digna, ocorre por lá uma volta a atividades mais lucrativas: derrubar as árvores, vender a madeira, abrir campos de pasto para o gado. Estima-se que algumas dessas reservas extrativistas já tenham perdido 20% da cobertura vegetal e abriguem 40 000 reses. O bom exemplo de sucesso está na outra ponta - aquela que prospera de costas para a floresta. A Zona Franca de Manaus, criada em 1967, concentra 550 indústrias modernas, que, no ano passado, alcançaram um faturamento de 60 bilhões de reais. Uma riqueza produzida sem que seja necessário derrubar uma única árvore. A instalação da Zona Franca de Manaus é apontada como uma das principais causas de o estado do Amazonas ser o menos desmatado da Amazônia. Seu exemplo poderia ser replicado na região com a criação de outras indústrias limpas, como as ligadas aos setores farmacêutico e de biotecnologia.
Qualquer projeto que pressuponha o desenvolvimento com sustentabilidade da Amazônia precisa incluir o desmonte de uma parcela considerável das termelétricas alimentadas a óleo diesel que fornecem a maior parte da energia para a região. Embora a Amazônia seja classificada como o pulmão do mundo, suas termelétricas despejam anualmente na atmosfera 6 milhões de toneladas de dió-xido de carbono (CO2), o principal gás do efeito estufa. Isso equivale ao dobro do que despeja no ar todo ano a frota de veículos da cidade de São Paulo. Numa região com tantos rios caudalosos, é preciso que as hidrelétricas respondam pela maior parte da energia. A principal vítima da hegemonia das termelétricas na Amazônia é, mais uma vez, a população. Há escolas que são obrigadas as transferir os alunos do turno da noite para o da manhã porque não há óleo diesel suficiente para mover o gerador e iluminar as salas de aula.
Vivem na Amazônia 400 000 índios de quase 200 etnias e em diferentes níveis de contato com a sociedade brasileira. As setenta tribos que permanecem isoladas em pontos remotos representam menos de 1% desse universo. Setenta e cinco por cento dos indígenas vivem na floresta. Mesmo assim, os índios também não querem saber de permanecer na pré-história. "Os que continuam na aldeia querem trazer a cidade para dentro dela", diz Almir, cacique da etnia suruí, de Rondônia. Os computadores e a internet estão presentes em muitas aldeias. Em toda a Amazônia, índios usam a rede mundial para vender artesanato, estudar e reivindicar direitos. "Para ter influência política, a internet é melhor que o arco e flecha", diz Almir, que no ano passado fechou um acordo com o Google para mapear as terras de sua tribo. Vinte e cinco por cento dos índios da Amazônia vivem nas cidades e muitos vão parar nas favelas e palafitas. A população indígena de Manaus já é mais numerosa do que a da maioria das reservas, com mais de 12 000 índios.

Um dos principais entraves ao desenvolvimento da Amazônia é que parte significativa dela é um território sem lei. Apenas 4% das terras da Amazônia têm títulos de propriedade. Numa imensidão que corresponde a 59% do território brasileiro, ninguém sabe quem é o dono da terra e quem a ocupa. "Não há exemplo no mundo de região que tenha se desenvolvido economicamente sem segurança jurídica", diz o filósofo Denis Rosenfield, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. "Em um ambiente de insegurança, as pessoas deixam de fazer investimentos a longo prazo para buscar apenas o benefício imediato", ele completa. Sem eliminar a anarquia legal e jurídica, fica difícil garantir a preservação da floresta ou preparar o terreno para melhorar a qualidade de vida do povo da Amazônia.

Em busca do sonhoO gaúcho Alceu Santos de Almeida, de 35 anos, é um exemplo de brasileiro que vê a Amazônia como um eldorado. Há cinco anos, ele deixou a cidade de Palmeira das Missões atraído pela possibilidade de comprar um pedaço de terra em Rondônia por um preço muito mais baixo do que no Rio Grande do Sul. Adquiriu um sítio de 100 hectares de mata bruta. Com 400 reais, alugou uma motosserra e jogou no chão quase 5 hectares de floresta. No lugar, ergueu um casebre de madeira e montou uma roça de milho, arroz e feijão, que ele lavra aos sábados e domingos. "De segunda a sexta-feira tenho de trabalhar na serraria", explica Alceu. Toda vez que vai à sua propriedade, carrega a espingarda para assegurar a carne da semana. Garante que caça apenas o suficiente para sua família comer. "Só os animais saborosos, como pacas, veados e queixadas", informa.

Território a desbravar
A catarinense Sandra Zanotto, química de 35 anos, é uma das raras cientistas que estudam os fungos e bactérias da Amazônia. A extraordinária biodiversidade amazônica é tão pouco estudada que não há sequer estimativas sobre a quantidade de espécies que vivem nas matas e nos rios. Há seis anos em Manaus, Sandra está montando um centro de biotecnologia na Universidade do Estado do Amazonas. "Pesquisar aqui é como desenhar num papel em branco", ela diz. "É preciso fazer com que os recursos naturais da Amazônia se transformem em riqueza para as pessoas que moram aqui", conclui.

A vida no laço
O vaqueiro Edilson Ferreira de Oliveira, de 31 anos, nasceu no Paraguai, país onde seu pai exercia a mesma profissão trabalhando para os brasiguaios. Morando na Amazônia há mais de vinte anos, trabalha acima de treze horas por dia, seis dias por semana. Com um salário de 900 reais mensais, ele se diz um vitorioso. "Tenho um emprego bom e uma renda que me permite viver com dignidade", vangloria-se. Junto com amigos, ele tem sob sua responsabilidade um rebanho de cerca de 1 000 animais na cidade de Monte Negro, em Rondônia. "Depois que cortar madeira virou crime, o boi se tornou o melhor negócio daqui", diz o vaqueiro, que carrega cachaça no cantil e prepara suas refeições todos os dias no meio do pasto.

Rali na selva
O paranaense João Juarez Barão, de 53 anos, percorre todo mês 1 400 dos 1 700 quilômetros de extensão da Rodovia Cuiabá-Santarém. Seu caminhão leva cerâmica até Itaituba, no Pará, e volta carregado de madeira. No trecho mato-grossense da rodovia, onde há asfalto, a viagem é sempre tranquila. Mas no Pará, onde a estrada é de terra, as condições mudam conforme a época do ano. Durante os seis meses de chuva, a mata parece avançar sobre a estrada, que se reduz a uma trilha de lama. "O inverno é um inferno", diz Juarez. "No verão, quando não chove, faço o mesmo percurso em um terço do tempo."
Caçadores de onça

Na Amazônia existe um tipo raro e valioso de cachorro, o chamado "mestre em onça". São cães - de raças variadas - treinados para localizar e encurralar o maior felino das Américas, forçando-o a subir em árvores e, assim, permitindo aos caçadores abatê-lo facilmente. Um cachorro com essa habilidade chega a ser negociado por 1 000 reais. Há cinco anos, o rondoniense Anderson Leandro Rayer, de 23 anos, filho de gaúchos que emigraram para a região nos anos 80, adquiriu seu primeiro cão mestre em onça. Hoje, quinze deles brincam em seu quintal. Pelo menos uma vez por semana, os cães partem com Leandro para caçadas no interior da floresta. "Meus cachorros são os melhores caçadores da região. Não tem bicho que não enfrentem", diz ele, orgulhoso.

Ninguém exige papel

O garimpo de cassiterita é a principal atividade econômica de Campo Novo de Rondônia. As crateras abandonadas pelos garimpeiros são uma marca visível nas margens das estradas locais. Uma dessas cicatrizes na floresta está na propriedade do mineiro Sebastião Lino de Melo, de 67 anos, 43 deles vividos na Amazônia. No ano passado, ele liberou o acesso dos garimpeiros à sua propriedade mediante o pagamento de 60 000 reais. Com o dinheiro, reformou a casa e comprou quinze cabeças de gado. "Acho que eles tiraram uns 900 quilos de minério daqui", diz Melo, sem se importar de ficar com a terra esburacada. Indagado se os garimpeiros tinham autorização para minerar, ele responde: "Aqui ninguém exige papel nenhum".

O seringueiro que quer ser peão

Antonio Rosa de Souza, de 48 anos, vive na Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre. O seringueiro passa seis horas por dia na floresta extraindo látex e sempre carrega a espingarda para garantir a refeição da família - pacas, catetos e tatus que se aproximam da armadilha montada na mata. Os animais silvestres são uma importante fonte de alimento para sua família. Com renda mensal de 300 reais, ele só deixa a floresta para ir a Xapuri uma vez por mês, para comprar comida, que quase sempre é insuficiente para o mês inteiro. Souza vem abandonando o sonho de viver com dignidade apenas extraindo os produtos da floresta. Está convencido de que prestar serviço para fazendeiros locais é mais rentável do que extrair látex. "Limpando pasto e consertando cercas eu ganho 20 reais por dia, o dobro do que tiro com a borracha. Do jeito que as coisas vão, vou acabar virando peão", diz.

Na torcida da Copa

Todos os brasileiros estão ansiosos pela Copa do Mundo de 2014, mas poucos como a família de Osmar Oliveira e Editi Pantoja. Recém-estabelecidos à beira da BR-319, eles acreditam que o evento vai forçar o asfaltamento da rodovia que liga Porto Velho a Manaus, uma das sedes da Copa. Osmar espera que, com o asfalto, os carros voltem a trafegar pela estrada, trazendo clientes para os novos empreendimentos da família: um hotel e um restaurante. Atualmente, a BR-319 encontra-se parcialmente abandonada e o movimento diário de veículos pode ser contado nos dedos. "Minha padaria só vende quinze pães por dia", diz Osmar.

O colapso da madeira

A extração de madeira da floresta foi, durante as últimas décadas, o motor da cidade de Goianésia do Pará. A crise do setor, provocada pelo aumento do combate ao desmatamento ilegal e pela demora na aprovação de projetos de reflorestamento, levou o município inteiro ao colapso. O baiano Evanildo Nascimento de Souza, 47 anos, está há dois com duas serrarias e uma marcenaria fechadas. Hoje, a cidade de 40 000 habitantes tem 6 000 desempregados. O maior empregador é a prefeitura. O município corre atrás da diversificação da economia, incentivando a agricultura nas terras já desmatadas e abandonadas. "Se tivéssemos tido esse estalo três anos atrás, não estaríamos nesta situação", diz Evanildo.

Índio quer MBA

A população indígena de Manaus já é tão grande quanto a das maiores aldeias da Amazônia. Há na cidade mais de 12 000 índios. Apesar de os indicadores sociais entre eles apontarem para um baixo padrão de vida, há exceções. É o caso de Alcindo Nicanor Alfredo, de 24 anos. Alcindo é um índio ticuna que nasceu numa maloca no município de Benjamin Constant, na fronteira com o Peru. Ele só aprendeu o português aos 10 anos. Aluno de um programa de educação indígena, concluiu o ensino médio em sua aldeia, ganhou uma bolsa de estudos e foi para Manaus, onde acaba de se formar em administração numa universidade particular. Trabalhando há três anos em uma das fábricas do Polo Industrial de Manaus, recebe 1 000 reais por mês. Com um sotaque parecido com o dos caipiras do interior paulista, Alcindo avisa: "Agora estou planejando um MBA. O mercado é concorrido e eu quero me destacar".

O caixeiro-flutuante

Os regatões são barcos usados por mascates, típicos da Amazônia, que cruzam a região abastecendo as comunidades ribeirinhas nos rincões mais remotos da selva. A cada dois meses, o paraense Alcindo Oliveira da Silva deixa o Porto de Abaetetuba, no Pará, para subir o Rio Amazonas por um mês. O porão do regatão vai carregado com 40 toneladas de mercadorias: sal, café, açúcar, refrigerante, bolacha, sabão e sal grosso para o gado. As vendas são feitas a crédito - o cliente só paga quando o regatão volta, descendo o rio. Alcindo repete o trajeto, até a divisa com o estado do Amazonas, desde 1986. "Tenho mais de 200 fregueses cativos, que podem atrasar, mas nunca deixam de pagar o que devem", diz.

A escola possível

Desde 1989, a professora Yolanda Santiago, de 42 anos, dá aulas em comunidades ribeirinhas do Rio Negro. Atualmente ela trabalha em uma delas, com doze famílias, a cerca de duas horas de barco do município de Novo Airão, no Amazonas. Como só há um professor para dividir com ela a tarefa de ensinar 36 alunos, com idade que varia de 3 a 43 anos e que cursam da pré-escola ao final do ensino fundamental, o jeito é improvisar. Alunos de diferentes turmas - do 1 ao 4 ano, por exemplo - dividem espaço numa mesma sala. "Procuro separá-los por grupinhos, para não embaralhar a cabeça deles. Mas é complicado trabalhar assim, porque os conteúdos são diferentes", diz. Outra dificuldade é a energia elétrica, fornecida por um gerador a diesel, que atende a comunidade apenas à noite, das 18 às 22 horas.

O turismo não decola

O holandês Peter Tilanus esteve no Brasil pela primeira vez em 1991, quando era executivo da Shell. Em 2002, decidiu abrir um hotel de selva próximo a Manaus, porque acreditava que investir no turismo amazônico era um bom negócio. Empatou 2 milhões de euros no hotel e ainda não obteve retorno. Tilanus avalia que o problema está na falta de infraestrutura do turismo na região. Diz ele: "Há anos o turismo na Amazônia fica só na promessa. As agências de viagem trabalham com poucos pacotes para a região e não há nenhum voo direto da Europa". Há quatro meses Tilanus montou uma associação de hotéis de selva para planejar maneiras de atrair mais turistas.

O dono da luz

Orsine Oliveira, de 60 anos, é o décimo de doze filhos de uma família de seringueiros do Amazonas. Ele passou parte da infância numa comunidade onde não havia energia elétrica, na região do Médio Juruá. "Luz era só a de candeeiro mesmo", conta Oliveira, que só viu uma lâmpada acesa aos 3 anos de idade, quando o pai arrumou outro emprego e se mudou com a família para o município de Carauari. Anos mais tarde, a família seguiria para Manaus, onde Oliveira começou a trabalhar numa loja de fotografia aberta pelo irmão mais velho. Ele hoje comanda a Oliveira Energia, a principal fornecedora de geradores para as termelétricas que levam energia ao interior do Amazonas. Oliveira não tem dúvida de que as dificuldades que enfrentou na infância o ajudaram a vencer na vida. "O homem que vem do interior da Amazônia só pensa em progredir", afirma.

Terra sem lei
A desordem fundiária e a ausência do estado estão na raiz da criminalidade e da pobreza na Amazônia. Não há exemplo no mundo de região que tenha prosperado economicamente sem oferecer segurança jurídica e estabelecer com clareza o direito de propriedade
Leonardo Coutinho, de Buritis, Rondônia
Na Amazônia, a lei é a da selva. Faltam Justiça e polícia, e os crimes são castigados em proporção ainda menor do que no resto do Brasil. O banditismo e a impunidade germinam sobre um caos fundiário sem paralelo no país. Apenas 4% das propriedades rurais da região estão legalizadas. Posseiros e grileiros controlam uma área equivalente a 18% do território nacional. A anarquia impera na zona rural em dois dos maiores municípios do país, situados no Pará. Os títulos de posse emitidos pelos cartórios de Altamira cobrem o dobro da superfície da cidade. Em São Félix do Xingu, abarcam o triplo de área do município. Como quase ninguém é dono do lugar onde vive, as disputas pelo solo costumam envolver tiroteios. Por isso, é não só onde mais se morre em razão de disputas agrárias como também onde mais ocorrem invasões de terra. Os crimes ambientais não chegam aos tribunais, porque não se sabe quem são os donos das áreas devastadas. Pelo mesmo motivo, não se pagam impostos e o trabalho escravo alastrou-se pela região. Na floresta, a impunidade estimula o tráfico de drogas, causando danos em outras regiões. Setenta por cento da cocaína que circula no Brasil ingressa no país pelas abandonadas fronteiras com a Colômbia, a Bolívia e o Peru.
O cenário descrito acima constitui um enorme obstáculo ao desenvolvimento da Amazônia. A relação entre a instabilidade jurídica e o fraco desempenho econômico de muitos países pobres foi demonstrada pelo americano Douglass North, Nobel de Economia de 1993. North mostrou que uma das características marcantes das sociedades desenvolvidas é a existência de instituições fortes, que garantem o respeito à propriedade privada e aos contratos firmados e contemplam a justa punição dos infratores. Esses fatores são mais importantes na produção de riqueza do que a abundância de recursos naturais, terras férteis ou um clima favorável. Nesse sentido, a Amazônia leva aos extremos os problemas mais agudos da sociedade brasileira. "A ausência de instituições públicas confiáveis e uma sociedade civil muito frágil levam as pessoas a resolver os problemas na base das armas", diz o filósofo Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas. "A Amazônia, de certa forma, lembra a São Paulo do século XIX. Você só consegue resolver seus problemas se dispõe da ajuda de um poderoso local, e por isso passa a dever um favor. Quando é ofendido, para continuar respeitável, tem de defender sua honra de qualquer forma. Não há Judiciário para desestimular a vingança."
Para os narcotraficantes, a Amazônia é uma região de pouco risco e alto retorno. A Polícia Federal, responsável pela repressão ao comércio de entorpecentes, mantém um contingente diminuto na área. Tem mais agentes em Brasília do que nos vinte postos situados na Amazônia, com os quais fiscaliza 59% do território nacional. Até missões bem-sucedidas raramente redundam em prisões. Quando os policiais chegam a descobrir e destruir pistas de pouso usadas pelos traficantes, dificilmente alguém responde pelo crime, porque elas são construídas em verdadeiras fazendas cuja posse é contestada. Os cartéis da droga controlam municípios inteiros. Seu poder em Abaetetuba, no Pará, é tão conhecido que a cidade foi apelidada de "Medellín brasileira", em referência a uma das sedes da máfia colombiana. Do Suriname vêm as embarcações com droga, o contrabando de armas, bebidas, cigarros e animais silvestres. A rota é conhecida, mas a Polícia Federal não tem gente nem disposição para fechá-la. O mesmo acontece em Nova Mamoré, em Rondônia. Um de seus distritos, Jacinópolis, de 10 000 habitantes, é um antro onde a polícia estadual não entra há mais de dez meses, porque os bandidos recebem os visitantes a bala.
Um terço das cidades brasileiras com maior índice de homicídios está na Amazônia, que tem o menor e menos equipado efetivo policial do país. Muitas localidades não contam com um único policial. O número de juízes, promotores e cartórios é insuficiente para fazer a Justiça funcionar. Os servidores locais do Judiciário são os mais sobrecarregados do Brasil. Para funcionarem a contento, as cortes locais deveriam ter seis vezes mais funcionários. "Muitos processos ficam parados não por falta de julgamento, mas porque não há gente para garantir que as decisões sejam cumpridas", diz o juiz Luis Claudio Chaves, de Manacapuru. A situação é mais precária no interior. O juiz paraense Roberto Itzcovich foi obrigado a pedir transferência por duas vezes em seis anos porque deu seguimento a processos relacionados a conflitos de terra no Pará. Em 2001, sua casa em São Félix do Xingu foi invadida por bandidos, que exigiam o arquivamento das ações contra integrantes de grupos de extermínio. Três anos depois, a casa do juiz em Curionópolis foi alvejada por pistoleiros. Respondendo hoje pela vara de Barcarena, Roberto Itzcovich ficou por duas vezes na mira dos bandidos por julgar um tipo de delito que permanece impune na Amazônia: os assassinatos por encomenda.
As listas de marcados para morrer são conhecidas das autoridades, mas, até hoje, só vinte pessoas foram condenadas por esses homicídios no conflagrado sul do Pará. O maior número de casos desse tipo não chega sequer a ser investigado, embora seus autores sejam conhecidos. A polícia só recolhe provas contra eles quando o episódio é rumoroso, como foi o da freira americana Dorothy Stang, morta em 2005, em Anapu, no Pará, por defender agricultores sem-terra. O inquérito contra os algozes da religiosa foi concluído em um mês e um deles já cumpre 27 anos de prisão. Nos rincões, essa situação é agravada pela atuação de grupos armados. Os fazendeiros são aterrorizados no Amazonas, no Pará e em Rondônia pela violenta Liga dos Camponeses Pobres, que recebeu treinamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e do peruano Sendero Luminoso. Às vezes acuados por grupos como esses, às vezes por sem-terra indefesos, os proprietários rurais costumam apelar a seus próprios meios para fazer o que consideram justiça.
Os linchamentos são praticados regularmente no interior e mesmo nas metrópoles. No ano passado, foram registradas oitenta dessas ocorrências só na região metropolitana de Belém. A condescendência das autoridades com esses casos pode ser exemplificada pelo que aconteceu com Fábio Nazareno Macedo, de 32 anos, acusado de tentar violentar duas adolescentes. Os moradores de Marituba, conurbada à capital paraense, o despiram e o espancaram com pauladas até a morte. Depois de matá-lo, penduraram em seu pescoço um papelão em que se lia a palavra "estuprador" para infundir medo em candidatos a agressor. A polícia deixou o cadáver exposto por sete horas antes de recolhê-lo. Na realidade, a violência sexual contra crianças e adolescentes é endêmica na Amazônia. É comum que pais mantenham relações sexuais com as filhas e as vendam para a prostituição. Nos bordéis do Pará, há até sorteios de virgindade. "A pedofilia é corriqueira e resulta da degeneração moral de uma sociedade pobre, que foi constituída por imigrantes sem valores", diz o bispo do Arquipélago de Marajó, José Luis Azcona.
A degradação de costumes se imiscuiu no cotidiano de uma população habituada a viver à margem da lei. Boa parte dela obtém seu sustento na ilegalidade. Muitos participam da exploração irregular de madeira sem saber que estão cometendo crime ou por falta de qualquer outro meio de vida. O mercado negro desse produto e a atuação dos bandoleiros, donos das empresas dedicadas ao comércio de toras, são incentivados pela escassez de terras legalizadas. Em uma terra em que falta lei para punir homicídios, as autoridades são ainda mais lenientes com os crimes ambientais. Em Rondônia, a população denunciou por oito anos a devastação das margens do Rio Jamari antes que a polícia aparecesse para tomar alguma providência. Uma vez lá, lavrou 400 autos de infração. Os desmatadores, entre eles empresários, políticos e mesmo policiais, continuaram desmatando. No fim de 2008, a área depredada era 30% maior que a que será inundada pela hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira. As ONGs ambientalistas que lutam para impedir a construção da usina silenciaram sobre Jamari. Afinal, ganham visibilidade ao confrontar a União e as grandes empreiteiras. Quando se trata da elite local, o risco de vida é alto e o retorno de marketing, nulo.

Serras peladas
Alguns fazendeiros de Campo Novo, em Rondônia, alugaram suas terras para pasto, mas elas foram usadas na mineração de cassiterita. Lá, o garimpo contamina o solo e a água
O primeiro e o mais importante passo para civilizar a Amazônia é regularizar sua situação fundiária. Em junho, o governo tomou uma iniciativa digna de nota nesse sentido. Editou a Medida Provisória 458, que concede títulos de propriedade a imóveis que somam 670 000 quilômetros quadrados, o equivalente a 13% da Amazônia ou aos territórios de Minas Gerais e do Rio de Janeiro somados. Com a nova norma, o governo trará nada menos que 300 000 famílias para a legalidade. Hoje, essas pessoas já ocupam as terras que lhes serão transferidas, tiram delas seu sustento, mas não têm nenhuma responsabilidade pelo seu destino. Uma vez que detenham também os direitos de propriedade, não apenas garantirão a sobrevivência de sua família como também passarão a pagar impostos, ter direito a crédito, além de ser responsabilizadas por crimes e danos ambientais que forem cometidos em suas fazendas. Os mais pobres receberão as áreas gratuitamente. Os remediados as comprarão por valor simbólico. Os ricos poderão adquiri-las por um valor ligeiramente acima do de mercado. Quem o fizer será obrigado a reflorestar o que desmatou fora dos limites legais. Pode ser o início do resgate da floresta e de um processo civilizador que insira na Amazônia valores que vigoram no resto do país.

Um reduto do tráfico de drogas

Em maio, Jonas Ferrete, ex-vereador da cidade de Buritis, em Rondônia, foi assassinado com um tiro na frente de sua mulher, Maria da Penha, e do neto de 4 anos. No dia do crime, os três transitavam de moto na estrada que liga Buritis ao distrito de Jacinópolis. Maria da Penha e o menino iam acomodados na garupa. No meio do caminho, dois homens saíram da mata. Um deles alvejou o vereador no peito. Ferrete, que tinha 53 anos, morreu na hora. Ninguém foi preso. Capixaba, ele havia conquistado dois mandatos de vereador em Buritis. Nas duas eleições, ficou entre os mais votados. Sua viúva acredita que ele foi executado porque havia prometido levar eletricidade e policiamento a Jacinópolis, que é dominada por traficantes de cocaína. "Os bandidos aterrorizam a população. A polícia precisa da autorização deles para entrar lá e, quando isso acontece, é para recolher cadáveres", relata Maria da Penha. A família Ferrete abandonou as terras que tinha em Jacinópolis. Como era de esperar, o neto do vereador sofreu um trauma. "Desde que o avô foi assassinado, ele dorme mal e morre de medo até de rojão", lamenta Maria da Penha.

É preciso salvar também as cidades
Mais de 70% do povo da região vive em cidades e enfrenta problemas similares aos de quem mora nas metrópoles do sudeste - só que na Amazônia eles são ainda piores

Ronaldo Soares, de Belém

Para a maioria dos que a veem de fora, a Amazônia é uma enorme extensão verde salpicada de pequenas comunidades ribeirinhas. Nessa visão, a preservação das matas estaria garantida se o "povo da floresta" tivesse boas condições de vida e não precisasse destruir o ambiente para se sustentar. Pois bem, o povo não está mais na floresta. Começou a sair de lá nos anos 70. Há quarenta anos, apenas 3,5% da população da Amazônia vivia em cidades. Hoje, são 73%. Só as áreas metropolitanas de Manaus e Belém abrigam, cada uma, 2 milhões de habitantes. E eles vivem em condições semelhantes - mas, em geral, piores - às dos cidadãos do resto do país. Para os que moram lá, o problema mais grave não é a devastação. São as favelas, o crime e o desemprego - preocupações idênticas às de quem vive nas outras capitais do Brasil, com a agravante de que os nortistas dispõem da pior infraestrutura. Na região que concentra 80% da água doce do país, falta água encanada. Em Rondônia, apenas 40% das casas têm acesso a esse serviço. A situação dos esgotos é ainda pior: somente 9,7% dos domicílios do Norte estão ligados à rede coletora. A média nacional é de 51%. Mais de 90% dos municípios não dispõem de aterros sanitários. O lixo é disposto a céu aberto ou despejado in natura nos rios.
Como era de esperar, a ocupação desordenada das cidades teve severo impacto na saúde da população local. As doenças associadas à pobreza e ao súbito adensamento populacional grassaram. A hanseníase, por exemplo, acomete 54 de cada 100 000 habitantes da região, duas vezes e meia a incidência do resto do país. No Pará e no Amazonas, a tuberculose é quase endêmica. "Com o crescimento das favelas, a ocorrência dessas doenças aumentou, mas os dados oficiais são falhos. Muitos casos não integram as estatísticas oficiais porque a população não tem acesso ao sistema de saúde, e eles simplesmente não são diagnosticados", diz Marcus Vinícius Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas. Na Amazônia, que já liderava as estatísticas de casos de leishmaniose, o avanço das cidades sobre a floresta contribuiu para sua propagação. Em apenas seis anos, entre 2002 e 2008, o número de ocorrências registradas dobrou: passou de 2,5 para 5,2 por 100 000 habitantes.
A urbanização repentina também trouxe a malária, que é típica da floresta, para o coração das cidades. Como a leishmaniose, a malária é transmitida por um mosquito, o Anopheles, e prolifera em zonas urbanas por incompetência das autoridades e desleixo dos moradores, que mantêm em casa água empoçada, na qual o inseto se reproduz. A doença é endêmica na Região Norte, que registrou 297 000 casos no ano passado. Manaus, que concentra o maior número de vítimas, sofre de um problema adicional para combater o mosquito. Encravados no meio da floresta, seus bairros são de fácil acesso para o Anopheles. A situação também é crítica em Porto Velho e Cruzeiro do Sul, a segunda maior cidade do Acre. Junto com Manaus, essas cidades concentram 25% das ocorrências nacionais de malária. A capital da malária, no entanto, é outra. É impossível encontrar um entre os 27 000 habitantes de Anajás, no Arquipélago de Marajó, que não tenha contraído a doença. "Aqui, a gente não pergunta se a pessoa já teve malária, mas quantas vezes ela teve", diz Marcus Jardim, servidor da prefeitura local. Desde que chegou a Anajás, há três anos, Jardim contraiu a doença quatro vezes.
Aterrador para os habitantes de outras regiões, esse cenário de doenças, sujeira e carência envolto pela mata não parece tão ruim para os ribeirinhos. Eles abandonam as margens de rios e povoados à beira de estradas porque vivem melhor nas capitais e nas cidades médias. Há nove meses, Rosângela Xavier, de 26 anos, convenceu seu marido a deixar Itacoatiara e levá-la junto com os dois filhos para Manaus. A família Xavier mora na favela de Luís Otávio, em um barraco de 9 metros quadrados mobiliado com dois colchões, duas redes, geladeira, fogão e um ventilador, que não refresca o ambiente, mas espanta os mosquitos. Como Rosângela, boa parte dos moradores não tem banheiro em casa. Eles compartilham cercadinhos improvisados às margens de um igarapé. Rosângela paga 30 reais por mês para ter água potável. Esse, aliás, é o único ponto que a incomoda na vida na cidade. "Aqui, a gente paga por tudo." Rosângela diz que melhorou de vida. Tem energia em casa, graças a um "gato" na rede elétrica, e recebe 100 reais mensais do Bolsa Família.
O isolamento é um dos aspectos mais cruéis da vida na Amazônia, onde 5% dos brasileiros se espalham por 60% do território nacional. Um terço dos amazônidas vive em áreas nas quais o estado não se preocupa em fornecer luz, água potável, serviços de saúde e escolas. Algumas localidades são tão remotas que nelas não há dinheiro, porque ele não serve para comprar nada. O comércio ainda é feito por escambo. Se precisar de um médico, um morador de Mapuá, em Marajó, terá de viajar vinte horas de barco para chegar a Breves, que dispõe de um pequeno hospital. Se o caso for mais grave, levará mais doze horas de barco até Belém. Isso pode ocorrer até dentro de um município. Altamira, no Pará, tem distritos a 900 quilômetros do centro - mais distantes que Brasília e Belo Horizonte. O povoamento rarefeito leva os governantes a preterir a região em prol de outras onde a densidade populacional é maior e, por consequência, recebem mais recursos do fundo nacional de municípios. "O critério demográfico prejudica a Amazônia na distribuição de recursos federais", lamenta Jorge Viana, ex-governador do Acre.
Por isso, os governos incentivaram o êxodo em direção às cidades - e ainda o fazem. Nos anos 70 e 80, carros de som do governo do Amazonas convidavam os moradores do interior a se mudar para Manaus, onde haveria vagas na incipiente indústria da Zona Franca. É ingênuo pensar que a Amazônia será salva enquanto forem essas as condições de vida de quem mora lá. É necessário salvar também os amazônidas. Seu passado prova que o descalabro atual decorre de uma longa estagnação econômica que começou com a crise da borracha. Pouco antes, em 1904, o escritor Euclides da Cunha assombrava-se com a infraestrutura da região. "Não se imagina no Brasil o que é a cidade de Belém, com seus edifícios desmesurados, suas praças incomparáveis e sua gente de hábitos europeus, cavalheira e generosa", escreveu em uma carta. O futuro da Amazônia depende, agora, da urbanização de favelas, de investimentos em água potável, saneamento, iluminação e da promoção de um choque de segurança. Há boas soluções para esses problemas. Com um sistema de captação e tratamento de água das chuvas, o Amazonas reduziu em 70% os casos de diarreia em algumas comunidades. Há áreas que podem ser iluminadas com energia solar. As polícias do Pará e do Amazonas podem trabalhar juntas para fiscalizar os rios e evitar que a cocaí na chegue a Belém e Manaus. Essas medidas dependem do crescimento da economia local para ser universalizadas. Caso contrário, a população da Amazônia continuará entregue à própria sorte e a floresta, à destruição.

O pulmão intoxicado pelo diesel

As 260 termelétricas da Amazônia emitem o dobro dos poluentes produzidos pela frota de veículos da cidade de São Paulo. Não faz sentido falar em preservação ambiental Sem que pelo menos 90%da energia da região venha de fontes limpas

Ronaldo Soares, de Novo Airão

A maioria das pessoas acredita que a Floresta Amazônica é o pulmão do planeta. Que, se ela desaparecer, o aquecimento global vai se acelerar de modo calamitoso. Quanto a isso, vale uma ressalva. Para merecer o título de pulmão do planeta, a região precisaria parar de envenenar a atmosfera com gases do efeito estufa. Atualmente, as 260 usinas termelétricas em operação em sete estados amazônicos, a grande maioria movida a óleo diesel, despejam todo ano na atmosfera 6 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2), o principal gás que causa o aquecimento global. Parece pouco diante dos 770 milhões de toneladas de CO2 emitidas anualmente pelo desmatamento e pelas queimadas na floresta. O CO2 produzido pelas termelétricas amazônicas, contudo, equivale ao dobro das emissões produzidas no mesmo período pela frota de veículos da cidade de São Paulo, a maior do país. Manaus abriga uma das mais bem-sucedidas experiências de desenvolvimento sustentável, a Zona Franca, que produz riquezas sem precisar destruir um só graveto da floresta. Para movimentar suas indústrias, no entanto, a cidade depende quase integralmente da queima de óleo. As termelétricas respondem por 85% da eletricidade consumida no Amazonas, 70% no caso do Acre e 60% no do Amapá. O pulmão do mundo encontra-se intoxicado pela fumaceira.
Numa região rica de recursos hídricos, não é nada de mais esperar que pelo menos 90% da energia elétrica consumida em suas cidades venha de fontes limpas, como as hidrelétricas. "As termelétricas, além de poluidoras, não são confiáveis. Há grandes oscilações de energia ao longo do dia e às vezes falta luz. Isso representa um custo tremendo para as empresas, que instalam geradores próprios para se precaver das falhas de energia", diz Ronaldo Mota, diretor do Centro da Indústria do Estado do Amazonas. A poluição e o custo extra para as indústrias não são os únicos ônus da dependência da Amazônia das termelétricas. A região não produz uma só gota do óleo diesel queimado nas usinas. Ele vem de São Paulo, do Rio de Janeiro e até de outros países, como Índia, Estados Unidos e Venezuela. O resultado é uma energia até cinco vezes mais cara do que a utilizada no restante do país. Se fosse integralmente repassada ao consumidor final, essa diferença praticamente inviabilizaria a venda da energia das termelétricas. Por isso, existe um mecanismo para subsidiar o diesel usado na Amazônia, a Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), estimada neste ano em 2,7 bilhões de reais. Esse valor é rateado por todos os consumidores do país. Entre 2% e 3% da conta de luz que o brasileiro paga, more ele em Porto Alegre, Salvador ou Vitória, destina-se a subsidiar a energia da Amazônia.
Levar o óleo diesel às termelétricas da Amazônia é uma operação, além de custosa, complicada. Todos os meses atracam em Manaus cinco petroleiros carregados com 180 milhões de litros de óleo para abastecer as usinas e o setor de transportes da Região Norte. Os petroleiros percorrem quase 6 000 quilômetros, do Sudeste até Manaus (veja o quadro abaixo). De lá, o diesel é levado para outras cidades da Região Norte a bordo de quase 200 balsas-tanque e 500 caminhões. Há trechos, como o que se percorre até Cruzeiro do Sul, no Acre, que exigem mais de 4 000 quilômetros de navegação pelos rios. A viagem dura 25 dias, ou mais, além dos quinze gastos inicialmente no transporte a partir do Sudeste, dependendo das dificuldades criadas pela natureza. Nos períodos de seca, quando o nível dos rios fica muito baixo, o transporte por balsas é interrompido durante quatro meses e o combustível precisa ser estocado para não haver desabastecimento na cidade. Essas condições adversas resultam às vezes em situações esdrúxulas. Dependendo do destino do diesel, chega-se a gastar 2 litros dele como combustível para transportar cada litro que vai alimentar uma termelétrica.
Além de produzir poluição e atrapalhar a atividade econômica, a dependência de diesel causa vários transtornos à população da Amazônia. Nas comunidades ribeirinhas onde a única fonte de energia é um pequeno gerador, os moradores precisam racionar combustível para ter luz o mês inteiro. E, mesmo assim, apenas parcialmente, porque nesses casos o equipamento só é ligado três horas por dia, geralmente à noite. Em Aracari, comunidade ribeirinha a duas horas de barco de Novo Airão, no interior do Amazonas, os moradores recebem uma cota de 50 litros de diesel por mês da prefeitura. "Isso nem dá para o mês inteiro, só para três semanas", diz a professora Yolanda Santiago, que transfere alunos do turno da noite para o da manhã quando o diesel acaba por completo.
Acabar com a dependência do diesel na Amazônia é uma prioridade que esbarra sistematicamente na oposição de ambientalistas e do Ibama. Há hoje no Brasil dezoito projetos de hidrelétricas que não saem do papel ou cujas obras estão atrasadas por causa de ações judiciais que questionam seu impacto ambiental. Os motivos são variados: os rios que receberão as turbinas passam por reservas indígenas ou áreas de preservação. No Madeira, gastou-se em estudos sobre o impacto na piracema dos bagres (a conclusão foi que bastava deixar uma passagem para os peixes, como normalmente é feito em barragens). Uma dessas hidrelétricas, a de Belo Monte, no Rio Xingu, foi o pivô de uma cena selvagem ocorrida no ano passado. Numa apresentação do projeto da obra promovida por ONGs e ambientalistas, o engenheiro Paulo Fernando Rezende, da Eletrobrás, foi atacado a facão por índios caiapós e sofreu um corte profundo no braço. A oposição do Ibama e dos ambientalistas a obras energéticas necessárias ao desenvolvimento da Amazônia não interessa a ninguém, muito menos aos moradores da região. O Brasil precisa ampliar sua produção de energia em 50% até 2017. As usinas hidrelétricas constituem a forma mais limpa e barata de produzi-la. A tecnologia hoje permite que os reservatórios das hidrelétricas tenham apenas 15% do tamanho que tinham no passado. Ou seja, seu impacto ambiental é muito menor. Mesmo assim, no Brasil, por incrível que pareça, os ambientalistas têm mais fôlego para combater as hidrelétricas do que as carvoarias.
Como a Amazônia tem características geográficas complexas, com rios gigantescos e florestas densas, levar as linhas de transmissão de eletricidade a muitos pontos da região é difícil. Estudos mostram que, nessas áreas, o ideal seria recorrer às fontes alternativas de energia. Entre elas, a eólica tem potencial restrito. Poderia ser explorada quase exclusivamente na costa do Amapá, com condições de vento semelhantes às do Nordeste. A opção que se mostra mais viável nesses casos é a energia solar. A Amazônia tem média de radiação solar três vezes superior à de países como a Alemanha, líder mundial em energia produzida por painéis fotovoltaicos. A implantação da energia solar em municípios de porte médio ou pequeno é uma operação relativamente rápida que poderia, em pouco tempo, reduzir o uso das usinas termelétricas em diversos pontos da Amazônia. Em comunidades ribeirinhas, as fontes alternativas de energia podem substituir por completo os geradores a diesel. Como aconteceu na comunidade Santo Antônio, da Ilha do Siriri, no município paraense de Breves, que há um ano abriga um projeto da Universidade Federal do Pará de uso de biomassa. O antigo gerador a diesel, que funcionava quatro horas por dia, foi substituído por um sistema de geração a partir de uma caldeira alimentada por resíduos de madeira, sobras de uma serraria que usa madeira certificada. É preciso tirar do papel os projetos de grande porte, como as hidrelétricas, e apostar nas energias alternativas para livrar a Amazônia da fumaceira poluente e cara do óleo diesel.
Combustível é com o presidente

Quando acaba o diesel usado no gerador de energia de Aracari, comunidade ribeirinha às margens do Rio Negro, no Amazonas, os moradores chamam o presidente. No caso, Rosedilson Jardim, de 43 anos. É ele que, na condição de presidente, como são tratados os líderes de comunidades ribeirinhas, requisita à prefeitura mais próxima uma cota extra de combustível para manter o gerador funcionando. Sem a perna direita, amputada devido a uma picada de surucucu, Jardim vive nas mesmas condições que os demais cinquenta moradores: é semianalfabeto e sobrevive da agricultura, pesca e carpintaria. O que o distingue dos outros é o fato de ser o único a ter uma televisão em casa. "Mas só ligo à noite, porque o diesel é muito caro", lamenta o presidente.

Cicatrizes dos nossos erros
O asfaltamento das estradas da Amazônia apressa a devastação do verde e o ritmo de ocupação da floresta. Mas qual é a alternativa? O asfalto é a garantia de qualidade de vida para milhões de moradores da região

Thomaz Favaro, de Humaitá

Vistas do alto, as estradas da Amazônia assemelham-se ao rastro da passagem de um furacão. Estima-se que 80% das áreas de floresta devastadas estejam a menos de 5 quilômetros de uma delas. Não se poderia esperar outra coisa dessas rodovias, pois elas foram criadas nos anos 70 precisamente para abrir caminho para a colonização. Quatro décadas depois, a Amazônia está malservida por estradas esburacadas, atoleiros e toda espécie de obstáculo ao trânsito de pessoas e cargas. Quase metade da malha rodoviária é considerada ruim ou péssima pela Confederação Nacional do Transporte. Outros 40% são apenas regulares. Tal situação coloca o Brasil diante de um dilema. Não se pode tolerar que uma região com o dobro do tamanho do México e habitada por 25 milhões de brasileiros fique à mercê de um sistema viário de padrão africano. Por outro lado, existe hoje a consciência de que a floresta precisa ser preservada e que cada estrada é um vetor de desmatamento. Elas não apenas atraem migrantes, mas também servem de ponto de partida para milhares de caminhos vicinais abertos por madeireiros, garimpeiros e agricultores. O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) calculou que as estradas não oficiais somam 170 000 quilômetros de extensão. Isso significa que, de cada 10 quilômetros de estrada na Amazônia, 7 foram rasgados ilegalmente no mato.
As grandes rodovias foram abertas pelo governo federal, que promoveu a ida de colonos para a Amazônia na década de 70. Hoje, depois de um prolongado período de abandono, as autoridades têm a obrigação de pôr essas vias em ordem, garantindo o bem-estar de quem mora nesses lugares. A dificuldade é como fazer isso e, ao mesmo tempo, impedir que a devastação avance. O governo federal já decidiu asfaltar as três principais estradas que rasgam a Floresta Amazônica - e, no que diz respeito à preservação, seja lá o que Deus quiser. Não precisaria ser assim. Duas das rodovias - a Transamazônica e a Cuiabá-Santarém - precisam do asfalto com urgência. Elas atravessam áreas densamente povoadas, já bastante desmatadas, e são necessárias para o desenvolvimento econômico e para melhorar a qualidade de vida da população que habita suas margens. O projeto da terceira, que liga Porto Velho a Manaus e atravessa uma região de floresta intacta, se parece demais com os erros do passado e faz total sentido que seja cancelado.
Como a maioria das rodovias é de terra, a temporada de chuva torna o tráfego difícil, quase impraticável, durante metade do ano. Os produtores de grãos do Centro-Oeste brasileiro bem que gostariam de usar a BR-163, que liga Cuiabá, em Mato Grosso, a Santarém, no Pará, como corredor de exportação. Mas o asfalto só existe no trecho mato-grossense. Depois, são 937 quilômetros de estrada de terra. Durante o período de chuvas, os atoleiros impedem a passagem de veículos pesados. "Já demorei trinta dias para percorrer um trecho de 750 quilômetros", diz o caminhoneiro João Juarez Barão, um paranaense que transporta cerâmica para o Pará e retorna com madeira para o Sul e o Sudeste. Por isso, os grãos do norte de Mato Grosso são escoados pelos portos de Santos e Paranaguá, a mais de 2 000 quilômetros de distância. Isso atrasa a chegada da carga aos Estados Unidos e à Europa em pelo menos quatro dias. Estima-se uma perda de 480 milhões de reais por safra devido ao acréscimo no custo do frete. Mais de 800 000 pessoas vivem às margens da BR-163. No norte de Mato Grosso, onde as chuvas são regulares e o terreno é plano, perfeito para a lavoura mecanizada, a área de influência da estrada engloba 50% da produção de soja do estado. Ali fica Sorriso, a capital mundial da soja, com produção de 2,5 milhões de toneladas por ano. No trecho paraense, onde o relevo é acidentado e o asfalto ainda é só uma promessa, os moradores passam longos períodos de isolamento. No inverno, época da chuva, os preços disparam devido aos custos do frete. "Os alimentos ficam, em geral, 40% mais caros", diz Henrique Borges, dono do mercado que abastece o município de Trairão, com 15 000 habitantes, a 350 quilômetros de Santarém. "A demora é tanta que não compensa trazer verdura para a cidade."
A Transamazônica, que passa por trinta municípios nos estados do Pará e Amazonas, está em situação igualmente precária. Em seu entorno mora 1,2 milhão de pessoas, a maioria delas no Pará. O trecho paraense concentra 60% da produção de cacau e 20% de gado do estado. Não há argumento ambientalista capaz de justificar a manutenção de tantos brasileiros no isolamento (veja matéria). O caso da BR-319 é totalmente diferente. A rodovia de 877 quilômetros, que liga Porto Velho, em Rondônia, a Manaus, foi aberta em 1973 e asfaltada. Mas, por falta de manutenção, metade da sua extensão foi engolida pela floresta. Hoje, ela só é trafegável nas extremidades, que foram pavimentadas nos últimos anos. Um trecho de 400 quilômetros está praticamente abandonado desde 1988, sem vestígios do asfalto original e com menos de 150 famílias vivendo nas proximidades. A estrada só não sumiu de vez do mapa porque a Embratel faz reparos constantes para poder realizar a manutenção dos cabos que levam os serviços de telefonia e internet a Manaus.
A pavimentação da rodovia é uma proposta antiga e tem forte apelo na capital do Amazonas e no estado de Roraima, pois tiraria a região do isolamento rodoviário em relação ao resto do país. A obra só não avança porque, em junho, o Ibama negou licença ambiental. E com razão, uma vez que a estrada ameaça regiões de floresta que estão intactas - e é melhor que continue assim. A BR-319 corta uma das áreas com maior biodiversidade da Amazônia. "Só de aves são 740 espécies, quase metade do que existe no Brasil", diz o ornitólogo Mario Cohn-Haft, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). As 29 unidades de conservação ambiental propostas para evitar que a rodovia se torne mais um propulsor do desmatamento só existem nos papéis assinados em Brasília. O simples anúncio de que a estrada seria recuperada foi suficiente para atrair dezenas de migrantes. O capixaba Osmar Oliveira, de 36 anos, veio há dois anos com a família com planos ambiciosos: está construindo um hotel com dez quartos no quilômetro 110 da rodovia. "Em dois anos, quando o asfalto chegar, serão centenas de carros transitando por aqui todos os dias", prevê Osmar. Para evitar que isso ocorra, alguns especialistas propõem que o traçado da estrada seja aproveitado para a construção de uma ferrovia. "O trem poderia suprir a demanda econômica e social sem promover a ocupação desordenada da região", diz o biólogo Philip Fearnside, do Inpa. Está aí uma boa sugestão para evitar a repetição dos erros do passado.

Só com bom tempo

A cidade de Trairão (foto acima), no Pará, é uma das dezenas de comunidades criadas ao longo da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém. Seus moradores vivem em função da estrada - e não é nada bom depender de uma rodovia sem asfalto. O maranhense Alcenor de Souza montou há oito anos uma borracharia na beira da rodovia. Durante os seis meses de verão, a estação seca na Amazônia, ele presta serviços aos caminhoneiros que passam pela cidade. São em média trinta por dia. Mas na temporada de chuvas os clientes somem. "Chego a ficar setenta dias sem um único serviço", diz Alcenor. O problema é que a rodovia fica totalmente coberta de lama, e os poucos veículos que se atrevem a trafegá-la demoram vinte dias para percorrer um trecho de 800 quilômetros. Não é apenas o trabalho que míngua em Trairão. No inverno, o custo do frete aumenta e o preço dos alimentos sobe 40%.

40 anos de poeira
A estrada que liga o "nada a coisa nenhuma" é uma cicatriz no meio da selva e um monumento à cegueira ambiental das gerações passadas e lama

Thomaz Favaro, de Rurópolis, Pará

Quem viaja pela Transamazônica tem a impressão de trafegar sobre um esboço de estrada. O asfalto só existe em trechos esparsos e a sinalização é um luxo inexistente. Nos seis meses do verão amazônico, a falta de chuvas ajuda a secar os atoleiros e o tráfego flui em meio a grossas nuvens de poeira. Centenas de tratores ocupam-se de efetuar reparos em vários pontos. É um ritual que se repete há décadas no período da seca. Nos seis meses seguintes, quando a chuva não dá trégua, a natureza e o tráfego de caminhões se encarregam de destruir o pouco que foi consertado. Acaba a poeira, volta a lama. Os caminhoneiros já se adaptaram ao ciclo infernal. "Quando as mangueiras e castanheiras começam a florir, é hora de voltar para casa", diz o gaúcho Alemar dos Santos, caminhoneiro há três décadas, que trabalha apenas na metade seca do ano. Os atoleiros tornam o frete tão caro que muitas vezes não vale a pena fazer o transporte. Quem insiste acaba por enfrentar um rali na selva. "Para percorrer os mesmos 800 quilômetros, demoro oito dias no verão e 25 no inverno", diz o paraense Antonio Eduardo Figueira, cuja carga inclui peças de motocicleta e combustível. Faz parte de sua rotina passar noites em atoleiros à espera de um reboque.
A Transamazônica tem mais de 4 000 quilômetros de extensão. Se tivesse sido aberta na Europa, cruzaria o continente de Lisboa a Moscou. O projeto original previa a fronteira com o Peru como ponto final, mas o último trecho nunca foi construído. A parte nordestina, com cerca de 2 000 quilômetros, é asfaltada e pode ser usada durante todo o ano. O governo federal prometeu pavimentar o trecho amazônico com maior população em seu entorno, uns 850 quilômetros, no Pará, até 2011. As obras andam a passo de jabuti, em parte devido a pendengas judiciais. Até agora, estão prontos menos de 200 quilômetros. Mantido o ritmo atual, levará mais vinte anos para o serviço terminar. Só então se pensará em asfaltar os restantes 1 300 quilômetros de chão batido.
A estrada que atravessa a maior floresta tropical do planeta permite uma visão dolorosa das mazelas do Norte brasileiro. No trecho dentro da Amazônia Legal vive 1,2 milhão de pessoas, das quais 66% não têm água encanada e 27% não têm instalações sanitárias. O índice de analfabetismo é o dobro da média nacional. A parte mais próspera é no Pará, onde a floresta derrubada foi substituída por pastagens, fazendolas, vilas e cidades que vivem em função da rodovia. A produtividade das plantações de cacau é a mais alta do país. Mas a distância e a precariedade da estrada tornam o frete cinco vezes mais caro que o do cacau da Bahia, o maior produtor nacional.
Para quem tem urgência, a Transamazônica é um obstáculo. O agricultor José Lázaro Magalhães, de 55 anos, mora em um vilarejo localizado no ponto em que a Transamazônica e a BR-163 são uma só estrada por 110 quilômetros. O médico mais próximo fica a 300 quilômetros dali, em Santarém. Se um de seus dois filhos fica doente no período de chuva, José tem de literalmente se desviar da rodovia. O trajeto até o médico inclui 30 quilômetros de carona no sentido contrário até o Rio Tapajós, para então seguir de barco rumo a Santarém. "Saímos cedo para amanhecer no outro dia no hospital", diz José. Não há praticamente oposição ambientalista ao asfaltamento do trecho paraense. O asfalto vai permitir o escoamento da produção local e melhorar a vida dos moradores. A maioria dos fazendeiros tem título de propriedade de suas terras. A situação é bem diferente no estado do Amazonas. Lá a floresta está praticamente intacta e há poucas comunidades no entorno da estrada. Em parte, isso se deve à dificuldade de acesso. A região tem todos os ingredientes que servem de estímulo à grilagem e ao desmatamento: abundância de terras, estrutura fundiária pouco definida e ausência do poder público. A Transamazônica foi uma das três maiores obras de infraestrutura projetadas pelo regime militar na década de 70, ao lado da Usina de Itaipu e da Ponte Rio-Niterói. Naquele tempo, ninguém achava má ideia ocupar a Amazônia com os agricultores malsucedidos de outras regiões, sobretudo nordestinos flagelados pela seca. Nunca houve um estudo de viabilidade econômica ou de impacto ambiental para justificar a construção da rodovia e a colonização de seu entorno.
Os primeiros moradores da região cortada pela Transamazônica foram festejados como exploradores de um novo eldorado - mas ficou evidente que quase 90% das terras em torno da estrada eram ruins para a agricultura. Quando o goiano Antônio Silva da Costa, 49 anos, chegou ao município de Rurópolis, a 200 quilômetros de Santarém, em 1979, já encontrou os colonos em debandada. Antônio formou uma fazenda a 7 quilômetros da Transamazônica com a compra dos lotes dos assentados que desejavam ir embora. Hoje, ele é dono de 500 cabeças de gado, planta milho e arroz. Mas sua família - são onze filhos, dos quais oito ainda moram em sua casa - sofre com a mesma falta de infraestrutura que afugentou os primeiros colonos. "Passo seis meses ilhado, porque com a chuva é impossível chegar até a rodovia", diz Antônio. O asfaltamento completo da Transamazônica está previsto para ser feito em três etapas. Ao todo, a obra vai custar 2,3 bilhões de reais aos cofres públicos. Isso significa que cada quilômetro de asfalto sairá por cerca de 1 milhão de reais. É caro, mas é o preço a ser pago por quatro décadas de equívocos e falta de planejamento.
Uma cidade de costas para a selva. Ainda bem
A Zona Franca de Manaus é um bom exemplo de produção de riquezas e empregos sem exercer pressão sobre a floresta. Outros polos industriais semelhantes podem ser criados na Amazônia

José Edward, de Manaus

A região amazônica é hoje pelo menos duas vezes mais rica do que há três décadas, segundo indica o PIB dos estados que a compõem. Esse crescimento econômico, no entanto, se deu em grande parte graças a atividades que têm como base a destruição da floresta - a exploração madeireira e a pecuária extensiva. Quem estuda a Amazônia a sério concorda que, para evitar que a região continue a ser explorada de forma predatória, é preciso desenvolver atividades econômicas que não exerçam pressão sobre a floresta, promovam riquezas e assegurem emprego e renda à população. A experiência mais bem-sucedida nesse sentido, até agora, é a Zona Franca de Manaus, um enclave de eficiência tecnológica na Amazônia. Criada em 1967, como parte do plano do regime militar de integrar a Amazônia ao restante do país, essa região de livre-comércio compreende uma área de 10 000 quilômetros quadrados, incluindo a capital amazonense. Para viabilizar seu projeto, o governo federal passou a conceder incentivos fiscais às empresas que se dispusessem a instalar fábricas no meio da selva.
A isenção fiscal - sobretudo do imposto sobre produtos industrializados (IPI) para mercadorias que entram e saem da área - resultou na criação de um dos maiores e mais diversificados complexos industriais da América Latina. Pouco mais de quatro décadas após sua fundação, a Zona Franca de Manaus concentra 550 indústrias modernas, que fabricam desde lentes oftalmológicas até motocicletas. No ano passado, essas companhias alcançaram, juntas, um faturamento de 60 bilhões de reais - o dobro do PIB da Bolívia. Nessa conta não estão computados os resultados obtidos pelas duas centenas de empresas dos setores de comércio e prestação de serviços que gravitam em torno das fábricas. "Toda essa riqueza é produzida sem que seja necessário derrubar uma única árvore", diz José Alberto Machado, especialista em desenvolvimento regional e professor da Universidade Federal do Amazonas. "Temos aqui, de fato, uma indústria limpa, de costas para a floresta", acrescenta o economista Alexandre Rivas.
Machado e Rivas são autores de um estudo recém-lançado que demonstra de forma científica o impacto virtuoso que o polo industrial de Manaus exerce sobre a proteção da Floresta Amazônica. Os pesquisadores chegaram à conclusão de que a existência do complexo industrial atenuou em pelo menos 70% o desmatamento no estado do Amazonas. O trabalho conclui que a dinâmica econômica provocada pelas indústrias instaladas na Zona Franca contribuiu de forma decisiva para que o Amazonas tenha atualmente 98% de sua área de floresta preservada. No vizinho Pará, onde a base da economia se concentra na extração madeireira e na mineração, 20% da floresta já foi destroçada. Em Mato Grosso, que tem a agropecuária como carro-chefe, esse índice chega a quase 40%. De acordo com a pesquisa, a maior parte dos 500 000 empregos - 100 000 diretos e 400 000 indiretos - que o polo industrial de Manaus cria atualmente é ocupada por migrantes do interior do Amazonas e de outros estados da região. "Não fossem essas indústrias, muitos de nós com certeza não teríamos outra opção senão ficar nas mãos das madeireiras", constata o paraense Amauri Faria, que há quinze anos começou a trabalhar como auxiliar de produção na fábrica de motocicletas Honda e hoje gerencia uma unidade automatizada da montadora, na qual comanda 36 operários. "Na região de Óbidos, no Pará, onde nasci, o desmatamento corre solto, em plena calha do Rio Amazonas, por falta de opções de trabalho como as que temos aqui", ele completa.
Até o início da década de 1990, a Zona Franca de Manaus funcionava basicamente como um entreposto para a importação de produtos, sobretudo eletroeletrônicos. Na maior parte dos casos, os equipamentos eram apenas montados lá e, depois, distribuídos para o resto do país. Após a abertura da economia brasileira ao mercado internacional e a redução generalizada das alíquotas de importação, antes restrita à Zona Franca, as indústrias locais tiveram de se reinventar para sobreviver. Graças aos investimentos em tecnologia e à intensa qualificação da mão de obra, elas conseguiram agregar valor à produção e tornar-se competitivas. Atualmente, uma média de 30% dos componentes de seus produtos são fabricados na própria região. Outros 20% são produzidos em outros estados brasileiros. No ano passado, as compras de insumos feitas dentro do Brasil pelas indústrias do polo ultrapassaram a casa dos 14 bilhões de reais. Em algumas fábricas, o índice de nacionalização da produção é muito superior. É o caso da Honda, que tem mais de 90% das peças de suas motocicletas fabricadas no país - no modelo CG 150 Titan, o mais vendido, esse índice chega a 99%. A Honda brasileira é hoje campeã de produtividade: a cada vinte segundos sai uma moto de sua linha de montagem - metade do tempo médio registrado nas outras oito unidades que a multinacional possui fora do Japão.
Obrigada a importar mais da metade dos componentes que integram seus aparelhos celulares - já que o Brasil não dispõe de fábricas de semicondutores -, a finlandesa Nokia, por sua vez, vem investindo para que sua filial em Manaus se transforme em um centro de desenvolvimento de tecnologias para o setor. Para isso, patrocina uma escola profissionalizante de nível médio aberta à comunidade. Mantendo aulas em regime integral, nos últimos dois anos a instituição ficou em primeiro lugar no ranking do MEC para a Região Norte. A Nokia mantém também um instituto de pesquisas onde 300 funcionários, entre os quais mestres e doutores, se dedicam exclusivamente a buscar inovações tecnológicas para seus produtos e processos. Foi de lá que saiu, por exemplo, o equipamento que testa a resistência de aparelhos celulares utilizado atualmente em todas as fábricas da multinacional ao redor do mundo. Várias tecnologias presentes nos aparelhos vendidos mundialmente pela Nokia também foram desenvolvidas aqui, sobretudo na área de softwares.
Para que o polo industrial de Manaus se consolide, falta desatar alguns nós. Um deles é o da infraestrutura logística da região. Manaus é ainda hoje uma cidade praticamente isolada: o acesso a ela só é possível de avião ou por meio de longas viagens de barco ou navio. Há também o gargalo da energia, que, a exemplo do que acontece no restante do estado, é alimentada pelo poluente e caro óleo combustível. Ainda no capítulo da logística, é necessário que a estrutura portuária da cidade seja modernizada. A orla de Manaus, ao longo do Rio Negro, é um verdadeiro caos, com o engarrafamento diário de centenas de embarcações de passageiros e de cargas.
A consolidação da Zona Franca de Manaus passa também pela capacidade das indústrias locais de agregar mais valor a seus produtos. Para isso, ajudaria atrair uma indústria de semicondutores para a região. Atualmente, esses dispositivos, que funcionam como o "coração" de diversos equipamentos, são todos importados - o que encarece muito os custos. "Esse melhoramento só será possível se houver uma decisão política de transformar o polo em um centro de produção de ciência e alta tecnologia, como ocorre no Vale do Silício americano", diz o economista José Alberto Machado. Entre os produtos que utilizam a microeletrônica estão os marca-passos, os aparelhos destinados a suprir deficiências motoras e sensoriais, os vinculados à defesa e à gestão de território e os associados aos conversores da TV digital. A ampliação da Zona Franca de Manaus em direção à alta tecnologia produziria empregos suficientes para modificar a vida de milhares de habitantes da Amazônia.
A criação de polos semelhantes aos de Manaus poderia transformar a economia da Amazônia. Com investimentos maciços em educação e formação de mão de obra, estados cuja economia se baseia no extrativismo e na pecuária poderiam deslanchar como centros industriais capazes de desviar da floresta a atenção de seus habitantes. Em Rondônia, um novo polo que alcançasse metade do sucesso da Zona Franca de Manaus seria suficiente para triplicar o PIB do estado. Em estados menores, como Acre e Amapá, um polo industrial os faria produzir doze vezes mais riquezas do que agora. É o desenvolvimento de costas para a floresta.

O empurrão das multinacionais
O polo industrial de Manaus abriu perspectivas para milhares de trabalhadores progredirem na vida. Muitos fizeram carreira nas multinacionais que se estabeleceram na região. Nascido em Manaus, Fernando Melo, de 35 anos, é um deles. Ele fez o 2 grau em uma escola técnica patrocinada pela fábrica de celulares finlandesa Nokia. Posteriormente, cursou graduação em engenharia elétrica e mestrado em engenharia da produção. Há onze anos, ingressou na fábrica que a companhia tem na capital amazonense como engenheiro júnior e, desde 2007, é gerente de suprimento e distribuição, um cargo alto no qual responde diretamente ao diretor-geral. "A empresa abriu todas as portas para mim", ele diz.

Veja Especial, 30/09/2009, p. 8, 10, 16-17, 20-81

http://veja.abril.com.br/especiais/amazonia/fator-humano-p-020.html

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