VOLTAR

O escritor na floresta

O Globo, Prosa e Verso, p.1-2
24 de Jul de 2004

O escritor na floresta

A grande literatura, normalmente, alcança a região dos arquétipos, aqui entendidos como situações-modelo pelas quais o espírito humano pode passar. Eis um exemplo arquetípico: a voragem do orgulho, no qual muitas pessoas concluem ter merecimentos maiores do que a vida oferece e, assim, jamais saciam a sua busca por reconhecimento, e tendem a negar o dos outros. Um retrato dessa circunstância está no texto universal da parábola do filho pródigo. O irmão deste (ao contrário do caçula, que dissipa os bens do pai, e depois se arrepende) segue à risca os mandamentos paternos, mas por obrigação, e alimenta em seu íntimo a hipocrisia e o ódio, pois embora cumpra os preceitos, não o faz de coração, e estaria a um passo de infringi-los por baixo dos panos, não fosse a ação amorosa do pai. Há vários exemplos de arquétipos na literatura, sagrada ou profana. Fiquemos com este, pelo ensinamento que encerra: o orgulhoso é incorrigível, e responderá com afronta a quem quiser instruí-lo. A menos que se torne humilde e reveja os seus atos.

O talento e seus vislumbres

Já se vê que uma literatura merecedora deste nome tem um quê de abertura à universalidade (e o modelo é, sempre, para algum universo, seja gênero ou espécie), e por isso propicia a pessoas de diferentes épocas enxergar-se nela, como num espelho. Diz algo crucial sobre a natureza do homem e dos entes que o circundam. Então, vale perguntar: um escritor atrelado às regras de uma escola estará apto a produzir algo com essa vocação de atemporalidade, como no texto mencionado? Geralmente, não. Mas isto não implica dizer que artistas adeptos de várias escolas, como os naturalistas brasileiros do século XIX, não façam boas coisas, menos por seguir a boiada do seu tempo do que por talento, o qual sempre traz vislumbres interessantes sobre a condição humana e o horizonte de realidade em que se projeta. É o caso do ótimo escritor Inglês de Sousa, que ganha uma reedição dos seus Contos amazônicos” (de 1893) preparada por Sylvia Perlingeiro Paixão, professora de literatura comparada da Universidade da Borgonha, em Dijon, na França.

Esses contos são permeados de teses do naturalismo e do evolucionismo, que tantos adeptos teve no Brasil do final do século XIX, com a crença positivista no progresso e, também, na desmistificação de tudo o que se julgava ser ignorância do povo subdesenvolvido. A contraposição entre as crendices populares e a realidade vista pelo olhar cientificista é clara, em histórias como Amor de Maria”. Neste conto, Mariquinha, moça cujo defeito, aos olhos do inóspito povoado onde mora, é ser dada a faceirices”, se encanta por Lourenço, um aproveitador das donzelas de então, forasteiro vindo da grande” Belém. Após dar a entender à moça que a ama, Lourenço ludibria outra jovem, de melhor condição social que Mariquinha, filha de um juiz local. Com o amor-próprio ferido, ela vai a uma mandingueira que receita um elixir para prender” o rapaz. Mas a poção, feita da folha do tajá do Amazonas, era venenosa, e mata Lourenço. A planta passa a ser conhecida como Amor de Maria” pelos habitantes da região, que nunca mais vêem Mariquinha.

Exuberância e melancolia

Enfoque naturalista enriquece a descrição do universo amazônico com colorido especial

Dizia o crítico José Veríssimo, contemporâneo de Inglês de Sousa, que literatura é dogma. Entendamos essa palavra como o posicionamento do artista perante as contingências da vida, fruto de crenças radicalíssimas, que o espanhol Ortega y Gasset chamava de crenças que somos”, distintas das idéias que temos”. São, em geral, premissas ou valores não questionados, os quais, na obra de todo escritor ou filósofo, repousam como dogmas intocáveis, prefiguradores da sua visão de mundo: a vontade de potência de Nietzsche, o pessimismo à Schopenhauer de Machado de Assis, a coisa em si” de Kant e, no caso em questão, o realismo de naturalistas como Inglês de Sousa (com o seu mais famoso livro, O missionário”, de 1888), Adolfo Caminha (Bom-Crioulo”, de 1895), Júlio Ribeiro (A carne”, 1888) e Aluísio Azevedo (O cortiço”, 1890). Esse realismo defendia a tese de que a decomposição social se devia às instituições que não acompanhavam os avanços da ciência. Uma crença!

Atmosfera lúgubre que
lembra Edgar Alan Poe

Em Inglês de Sousa, a ortodoxia do naturalismo aproxima os seus textos de um enfoque jornalístico ou histórico, que, apesar de nem sempre ser literário, traz um colorido especial na descrição de situações cujo cenário é a floresta, e com um rico vocabulário regional. É o caso da maioria desses Contos amazônicos”, nos quais se contrapõem a exuberância da natureza e o temperamento atavicamente melancólico dos nativos, perante a grandeza do espetáculo da mata. Quando consegue não fazer uma descrição científica” em detrimento da imaginação, Inglês de Sousa nos dá textos excelentes. É o caso de Acauã”, história passada numa atmosfera lúgubre que, embora se dê em meio aos ruídos misteriosos da floresta, lembra o clima dos contos de Edgar Alan Poe.

Nesse texto, o capitão Jerônimo Ferreira, voltando de uma caçada numa sexta-feira (dia sobre o que pesa o fardo de imensos malefícios”), começa a ouvir uma voz sem nome” que dominava todos os ruídos da tempestade que caía. Eram os lamentos de um monstro em laborioso parto. Ao assustar-se com o som que crescia, o capitão cai e espanta um pássaro escuro que voa cantando Acauã!”. Após acordar do desmaio, ele vê na lagoa um barco com uma criança recém-nascida, a qual acolhe como sua segunda filha. Com o passar do tempo, a filha natural parece definhar, enquanto a menina que adotara, cujo olhar era de uma languidez doentia”, torna-se cada vez mais altiva, e oprime espiritualmente a outra. O final do conto é surpreendente, e não seria justo com os leitores revelá-lo aqui.

De igual força é o conto A feiticeira”, em que um rapaz se gaba de não crer em nada, e para provar isso resolve afrontar Maria Mucoim — tida e havida como temível feiticeira, mulher que em vez de purgar os seus grandes pecados, começou a exercer o hediondo ofício que sabeis, naturalmente pela certeza de já estar condenada em vida”. A descrença na possibilidade do perdão divino a leva a perder-se de vez, pois, segundo o narrador, quem nada pode esperar do céu, pede auxílio às profundas do inferno”. Quem não vê aqui uma dessas situações-modelo em que alguém, desesperado, sem acreditar no perdão do amor, se deixa levar pelos piores impulsos? As forças descontroladas da natureza, com a inundação do rio Paranamiri, contribuem para um desfecho forte. Igualmente bons são O gado do valha-me Deus” e O baile do Judeu”.

Nestes Contos amazônicos”, como sublinha Sylvia Paixão, acontece a luta do homem com o meio selvagem, concomitante aos embates sociais e políticos que aparecem em textos como Voluntário”, retrato do brutal recrutamento dos (in)voluntários da pátria para a Guerra do Paraguai. Assim, em Inglês de Sousa existe um salutar compromisso com a realidade, sem o qual nenhuma arte pode fazer muito sentido. E aqui lembramos que mesmo as chamadas artes conceituais” contemporâneas são uma atribuição de sentido — arbitrária — ao que naturalmente não teria sentido. Muitos desses artistas pensam a liberdade como o poder de dar qualquer significado a qualquer coisa. Alguém escreve droga” e garante nos dar uma alegoria da injustiça humana.

Mas isso é outra conversa. Ciosos do seu trabalho, como o orgulhoso da parábola, serão alimentados pela lisonja de muitos, mas enquanto há vida existe a chance de divisarem novas possibilidades de anelo com o mundo.

SIDNEY SILVEIRA é jornalista

O Globo, 24/07/2004, p.1 e 2

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.