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O Dinheiro é Verde

Carta Capital, p. 38-40
09 de Jun de 2004

O Dinheiro é Verde
A soja contaminada exemplifica o peso da questão
ambiental na economia.

Por Amália Safatle

Abril, dia 18. Navios brasileiros carregados de grão de soja vendida para a China dão com os burros n' água: as ordens são para voltar, pois a carga, em desrespeito a limites internacionais, está misturada com sementes tratadas por fungicidas. Maio, dia 12. Enquanto o governo prepara ambiciosa missão comercial ao país vermelho, o governo chinês proíbe importações de empresas brasileiras. Outro episódio como esse se repete semanas depois e a novela continua, por ora, sem perspectiva de final feliz.
É consenso entre especialistas em agrobusiness que essa rejeição à soja brasileira é, essencialmente, de fundo comercial: os chineses buscaram - e acharam - um bom pretexto para romper contratos de importação firmados com o Brasil no fim de 2003, assim que os preços tornaram-se desvantajosos a partir da abrupta queda na cotação da commodity em maio (reportagem à pág. 40).
Fato é que, embora tenha sido usada como mera desculpa, o caso da contaminação da soja exemplifica, em plena semana comemorativa do meio ambiente, o peso das implicações que a questão ambiental tem na ordem econômica.
O embargo à soja brasileira tem proporções relevantes. Envolve o principal item da pauta exportadora e um parceiro comercial em relação ao qual Lula criou grandes expectativas. As perdas são estimadas pelo próprio governo em até US$ 3 bilhões nesta safra. Há mais, e pior: tem o poder de comprometer, diante de parceiros comerciais internacionais, a imagem exportadora do Brasil, país que precisa receber, na veia, volume significativo de recursos externos de modo a equilibrar seu balanço de pagamentos.
Normalmente segregada da discussão econômica e até mesmo da social, a problemática ambiental ainda não ganhou no País toda a atenção que merece. Para se ater somente a este governo, Lula já deixou claro ao público que a ordem é crescer. Ainda que seja necessário causar perdas ambientais, como se elas não viessem acompanhadas de prejuízos de cunho social que o próprio governo propõe-se a combater.
O presidente do BNDES, Carlos Lessa, há poucos dias reclamou da demora na obtenção de licenciamentos, que atrapalhariam o desenvolvimento do Brasil. Sem mencionar que boa parte do atraso deve-se à falta de efetivo causada por restrições orçamentárias na pasta do Meio Ambiente que, segundo a ministra Marina Silva, em 2003, foi acima da média do contingenciamento das demais pastas.
Sem mencionar também que as exigências, das quais muitas simplesmente não existiam antes, se dão graças à evolução da consciência da sociedade, que hoje precisa recorrer a contornos legais rígidos e detalhados para salvar o que sobrou de um rico patrimônio ambiental dilapidado pela falta de cuidado anterior.
Boa parte da história dessa dilapidação e uma amostra da riqueza que restou no País estão descritas na obra Patrimônio Ambiental Brasileiro (Edusp/Imprensa Oficial). Lançada há pouco, traz uma coleção de artigos escritos por 26 professores da Universidade de São Paulo, entre os quais os renomados Aziz Ab'Saber (geógrafo) e Aldo Rebouças (geólogo).
O emprego da palavra "patrimônio" no título do livro é feliz. Termo contábil, faz o elo entre a economia e a ecologia que a própria teoria econômica tradicional, em sua história, tratou de separar.
A teoria dominante assume o conceito de que o crescimento econômico é infinito, como se independesse da oferta de recursos naturais - que é finita, por mais que se criem novas tecnologias. Esse pensamento convencional também assume a ecologia como uma parte da economia. Já os economistas ditos mais "heterodoxos" contestam: entendem a economia apenas como uma das partes integrantes e dependentes da ecologia.
A questão ambiental subverte mais uma teoria tradicional: na visão do geógrafo Wagner Costa Ribeiro, organizador do livro, ela se sobrepõe à lógica patrimonialista - tão característica do sistema econômico brasileiro - ao questionar a apropriação e a degradação dos bens públicos (ar, terra, minérios, territórios etc.) em benefício dos lucros privados. "A questão ambiental é a grande oportunidade de fazer com que o interesse privado seja analisado no âmbito do interesse coletivo", diz Ribeiro.
Os elos ainda frágeis entre os campos ambiental, social e econômico devem-se também à postura inicial do movimento ambientalista. O sociólogo, economista e professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP (Procam), Pedro Jacobi, que em um dos capítulos do livro conta a trajetória desse movimento no Brasil, lembra que as primeiras associações criadas no País, na década de 7o até meados dos anos 8o, não mantinham nenhum diálogo com as classes excluídas nem buscavam a justiça social.
Segundo Jacobi, esses grupos, em muitos casos, tomados pela defesa ambiental intransigente, não levavam em conta as dimensões socioeconômicas dessa crise. Algo diferente do que se vê hoje, com a busca de integração entre as organizações ambientais (só as cadastradas no Ministério do Meio Ambiente somam mais de 400), as sociais, e a iniciativa privada - esta, por sua vez, interessada em construir uma imagem positiva dos mercados internacionais que compram seus produtos e transformar o "negócio" ambiental em um ativo (artigo à página 44).
Os eleitores de Lula muito provavelmente esperam uma gestão dos recursos naturais oposta à do governo militar que, segundo Jacobi, tomou o desenvolvimentismo como a solução dos males do País, sem os cuidados que o emergente movimento ambientalista apregoava. Essas promessas não conseguiram se concretizar porque não atacaram de frente as crescentes distorções da concentração de renda e de propriedade no Brasil.
Por isso chama atenção a aproximação de um movimento social de peso, como o dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na direção das questões ambientais e do desenvolvimento sustentável. Hoje o MST se autodenomina um movimento que "questiona o atual modelo de agricultura baseado na monocultura, defende a reforma agrária, a agricultura familiar, a soberania alimentar e as culturas que defendem o meio ambiente":
"O MST está ambientalizando o seu discurso", diz Henri Acserald, professor da Universidade Federal do Rio de janeiro e pesquisador do CNPq. Para ele, o MST está descobrindo outras dimensões da sua luta quando passa a questionar o conceito de propriedade produtiva.
Quando o MST invade a Veracel, exemplifica o professor, está perguntando se as exportações brasileiras não têm produzido divisas para o Brasil a qualquer custo. O eucalipto é uma árvore exótica que "bebe" muita água. Em larga escala, seu cultivo leva ao secamento de cursos d'água e à perda de biodiversidade.
A monocultura, seja florestal, seja agrícola, essa última introduzida no Brasil na década de 70 pela Revolução Verde, é um modelo perfeito para as exportações, mas representa diminuição das espécies, ocupação de áreas antes habitadas por pequenas comunidades rurais ou indígenas, êxodo rural e contaminações.
Com patrocínio do Banco Mundial, a tal revolução que se propunha a aumentar a produção de alimentos para uma população mundial em crescimento, desestimulou a diversificação de espécies a fim de selecioná-las para as monoculturas. Apenas sete cereais, diante de uma riqueza biológica gigantesca na Terra, respondem pela metade das calorias da população mundial, segundo informações do sociólogo Mauro Leonel.
A soja é um dos exemplos mais emblemáticos do agrobusiness, que seguiu a cartilha da Revolução Verde, com alta dependência de insumos químicos, mecânicos e genéticos de origem industrial - os fungicidas aplicados em suas sementes são exemplo disso.
Segundo os professores José Eli da Veiga, Ricardo Abramovay e Eduardo Ehlers, o Brasil perde a cada ano milhões de hectares de terras férteis carregadas pelas águas da chuva e da irrigação. Lançada em corpos d'água, os assoreia e contamina por lixiviação com fertilizantes químicos e agrotóxicos.
A agricultura cultivada de forma insustentável também leva à escassez de água. Só em Goiás, consome 3,45 bilhões de litros de água por dia. Nos cerrados, 80%, das pastagens apresentam algum tipo de degradação e traz perdas: a produtividade pecuária em terra degradada é de 2 arrobas/ha/ano, e em bom estado pode atingir 16 arrobas/ha/ano, diz Veiga.
Na Amazônia, a agricultura intensiva, o gado e a extração de madeira em tora não têm trazido lucros duradouros. O extrativismo e o manejo diversificado na floresta em pé, na visão de Leonel, são mais competitivos, tanto é que a população permanente no interior da Amazônia é menor hoje que a das populações indígenas anteriores à colonização.
Mais um exemplo da riqueza biológica e antropológica que é destruída juntamente com a derrubada das florestas: três quartos das drogas utilizadas pelo receituário médico derivam de plantas descobertas pelo conhecimento indígena.
Isso sem falar na contaminação das águas brasileiras: mais de 90% dos esgotos domésticos e 70% dos efluentes não tratados são jogados nos rios, açudes e águas litorâneas, de acordo com Aldo Rebouças. Para o especialista, esse comportamento perdulário não será mais tolerado pelos países desenvolvidos. "Os que hoje já sofrem com a escassez de água - são 9o países das Nações Unidas - vão começar a considerar a água brasileira, que ainda é abundante, um patrimônio internacional", diz. O que, segundo ele, pode levar a conseqüências imprevisíveis no campo da política e da soberania.

Carta Capital, 09/06/2004, p. 38-40

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