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O desmatamento é nosso

OESP, Vida, p. A17
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
21 de Mar de 2007

O desmatamento é nosso

Marcos Sá Corrêa

Onze jornalistas ouviram calados, outro dia, o presidente Lula dizer, num café da manhã no Planalto, que os europeus não têm o que ensinar aos brasileiros em matéria de desmatamento. Eles só teriam conservado "0,6%" de suas florestas. E nós preservamos "69%". Lula usou esses números como exemplo de que "precisamos tomar cuidado com o discurso dos países ricos". Mas, pelo visto, acha que não devemos nos preocupar com discursos feitos aqui dentro, porque ninguém à mesa quis saber de onde o presidente sacara a tal conta.

Tratava-se, aparentemente, do arredondamento grosseiro de um artigo ufanista, mas técnico, publicado semanas antes por um pesquisador da Embrapa. Nele, constava que a Europa teria, hoje, 0,3% de suas florestas primitivas. Uma, diga-se, pode ser visitada na península do Gargano, aquele esporão da bota itálica que, por sua raridade, virou atração turística, enchendo de hotéis e campings cidades que dormiram séculos no acostamento da história. Falar em 0,6% foi até bondade do presidente.

Maldade foi esquecer que essa porcentagem se referia às florestas européias de 8 mil anos atrás, tempo suficiente para emendar, de ponta a ponta, 16 civilizações com a idade da brasileira. Sem a ressalva, fica parecendo que, na atual febre desenvolvimentista da era PAC, demos para competir com povos que, segundo o arqueólogo Brian Fagan, 3 mil anos antes de Cristo já haviam "mudado a natureza da Europa a ponto de torná-la irreconhecível".

Eram agricultores expulsos por mudanças climáticas de seu paraíso terrestre, onde viram secar a fonte inexaurível de carvalhos, gazelas e cereais silvestres que lhes servia de berço. Em outras palavras, as da Bíblia, gente condenada a fazer o pão com o suor de seu rosto. Esses retirantes entraram "a ferro e fogo" numa Europa densamente florestada. E, praticando uma "agricultura do corta-e-queima", "em sete séculos seus descendentes haviam cortado e queimado seu caminho dos Bálcãs à Holanda e, a leste, até a Ucrânia".

Não é difícil para um brasileiro imaginá-los em ação, como descreveu Fagan: "Na temporada de plantio, espessas colunas de fumaça cinzenta misturavam-se com as labaredas no céu azul enevoado". Em um milênio, "a floresta primordial de carvalho deu lugar a uma paisagem cada vez mais organizada pelo cultivo, na maior parte da Europa".

Quem acha as histórias de Fagan velhas demais para usar como modelo do século 21 pode se interessar pelo relato do economista David Hackett Fischer sobre a fome que caiu sobre os europeus em 1314, como praga do Egito. Ao contrário de Fagan, não sofre de pruridos ambientais. Estuda friamente os ciclos de carestia que arrasaram através da história mundial. Mas a primeira das "grandes ondas" também teve como estopim alterações do clima, com a contribuição humana do desmatamento pelas aldeias medievais. Levou camponeses europeus "a desenterrar os cadáveres de suas sepulturas para comê-los", padeiros a serem enforcados na França por falsificar massa de pão e ingleses a empalarem o rei Eduardo II com ferro em brasa.

Essa crise inflacionária do século 14, segundo Fischer, começou com o súbito aumento no preço da lenha para cozinha e calefação, combinando invernos demais com árvores de menos. Só arrefeceu quando a Peste Negra tirou do continente mais de 20 milhões de pessoas, abrindo alas para a virada do mercado, o aumento da renda, as grandes navegações e o Renascimento.

Dificilmente se passa por tamanho aperto sem aprender alguma coisa. A Europa, agora, tem 36% de seu território reflorestado. São menos que os 80% do recorde pré-histórico. Mas cresceu mais de 25% desde a década de 1950. Chega a 69% - empatando com o Brasil - na Suécia. Passa de 77% na Finlândia. Em parte, o avanço dos últimos anos se explica por medidas inspiradas pela Rio-92. Quase uma década e meia depois, ao contrário do que afirma Lula, alguma lição os europeus devem ter para nos dar, ou não estariam subvertendo as estatísticas florestais do desenvolvimento.

Marcos Sá Corrêa Jornalista e editor do site O Eco

OESP, 21/03/2007, Vida, p. A17

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