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O desaforo dos garimpeiros

Isto É - https://istoe.com.br/
Autor: Antonio Carlos Prado e Fernando Lavieri
03 de Dez de 2021

É no espelho d'água do Palácio do Planalto, e não no Rio Madeira, que está atracada a nau capitânia que comanda as ilegais embarcações com garimpeiros de ouro na Amazônia. Ou seja: existe um consentimento tácito de Jair Bolsonaro para que essa exploração ocorra. Não é sem razão, portanto, que centenas de balsas e dragas vão destruindo, sobretudo nos últimos dois anos, as margens do Madeira, principal afluente do Rio Amazonas, com três mil e trezentos quilômetros de extensão. A mineração fora da lei acontece na região desde o início do século XIX, mas nunca se deu de forma tão afrontosa. "A gestão Bolsonaro está incentivando a ocorrência de garimpos ilegais", diz o especialista em conservação Marcelo Oliveira, membro da World Wildlife Fund. Na semana passada, uma operação da Polícia Federal, denominada Uiara (mãe da água, em Tupi), incendiara em três dias, até a terça-feira 30, cerca de cento e setenta balsas e dragas no combate à clandestinidade do garimpo. Geralmente, garimpeiros que já enriqueceram empregam famílias muito pobres, como se fossem eles latifundiários e donos das águas. "Muita gente aceita esse trabalho e cai na ilegalidade em busca de alguma renda em meio à crise econômica", diz Oliveira.

Fugindo às pressas para não serem presas, essas famílias, a maioria delas com filhos pequenos, abandonaram as balsas à altura do município de Autazes e deixaram para trás comida pronta, celulares, roupas, produtos de higiene e brinquedos - muitas e muitas bonecas. A fuga, no entanto, é apenas para evitar a prisão em flagrante, e está longe de ser um reflexo de medo da polícia, está longe de ser uma rendição, está longe de ser um sinal de não reincidência. Em alguns dos celulares apreendidos, há mensagens trocadas de garimpeiro para garimpeiro que são verdadeiras afrontas e desaforos às autoridades. Uma delas diz: "quando eles forem embora, a gente volta. Tem muito ouro aqui." Em números, pelos menos um grama é encontrado aproximadamente a cada doze horas. Por que tanto desdém pela PF e pela proibição de atuarem na área? Volta-se, aqui, ao espelho d'água do Palácio do Planalto, ou, melhor, ao seu terceiro andar onde está o gabinete do presidente. Bolsonaro dá sinal verde a esses, digamos, milicianos das águas doces e milicianos do meio ambiente. E os trata com mordomias. No ano passado uma operação de combate ao garimpo ilegal foi interrompida e os garimpeiros acabaram sendo transportados para Brasília em aviões da Força Aérea Brasileira. Da FAB, sim senhor! Outra informação significativa é a queda da vigilância do governo federal: levantamento da UFMG aponta que houve redução de 43,5%, na média anual, de multas aplicadas pelo IBAMA na Amazônia, nos anos de 2019 e 2020, em relação ao intervalo de tempo entre 2012 e 2018. "Há legislação que exige documentação do garimpeiro. Isso demanda fiscalização e controle, só que no governo Bolsonaro tal fiscalização não ocorre", diz Oliveira.

O material retirado do rio, pelas dragas, é misturado ao mercúrio, que indica onde tem ouro porque a ele se agrega. Apesar de venenoso, a mercúrio é descartado nas águas

O livre navegar dado pelo governo federal aos garimpeiros do Rio Madeira - que desperta na Cordilheira dos Andes e adormece no Amazonas - envenena cada vez mais as suas águas e dizima espécies de peixes. No processo da garimpagem, as dragas trazem das profundezes incríveis quantidades de material geológico. Esse material é mecanicamente misturado ao mercúrio, que tende sempre a se acoplar ao ouro. Feita a acoplagem, esquenta-se o mercúrio e ele se liquidifica em temperaturas inferiores as que são necessárias à liquidificação do metal precioso. Pronto: o que virou líquido é mercúrio e o que ficou sólido é ouro. Pobre Rio Madeira, são as suas correntezas o destino desse mercúrio; pobre população ribeirinha e pobre população indígena, a ficarem com a água envenenada; pobre natureza que vai morrendo. Na terça-feira a maioria dos garimpeiros rumava para a cidade de Borba, e poucos seguiam para o município de Humaitá, para não provocar a Força Nacional. Em tempo: no ano passado, em Humaitá, tanto o IBAMA quanto o ICMbio tiveram seus edifícios incendiados. Indo para Borba, os garimpeiros sinalizavam à polícia que estavam evitando o confronto direito, embora paredões com trezentas balsas no Madeira continuassem a ser organizados por eles, em franco desaforo às leis. Onde há garimpo, nasce também um comércio, ainda que precário. Comerciantes, para não perderem dinheiro, procuraram alguns prefeitos. Tais prefeitos, por sua vez, para não perderem prestígio político, acionaram parlamentares em Brasília cujas bases eleitorais estão na região. E esses parlamentares, para não perderem votos, começaram a se mexer para abortar a Uiara. "Assim, a Amazônia vai se tornando uma nova Serra Pelada", diz o especialista Oliveira.

Fonte: https://istoe.com.br/o-desaforo-dos-garimpeiros/

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