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O desafio de duas professoras indígenas que usam comunicação para educar, em Tefé

Brasil Norte Comunicação - bncamazonas.com.br
Autor: Arnoldo Santos
13 de Nov de 2022

13/11/2022 11:29
Arnoldo Santos, especial para o BNC Amazonas

As crianças de uma escola na zona rural estão produzindo um jornal e um programa de rádio e falam o que estão aprendendo

Na zona rural de Tefé, região central do Amazonas, duas professoras indígenas estão usando a comunicação para suprir as dificuldades naturais da educação pública no Brasil. Na escola municipal rural indígena Santa Cruz, educadores e alunos estão produzindo um jornal mural e um programa de rádio que é transmitido emissora comunitária local. A escola fica na comunidade indígena rural Nova Esperança da Barreira de Baixo, na margem direita do rio Solimões.

A produção desses informativos tem mobilizado as crianças em um processo de desenvolvimento pessoal que inclui desde as primeiras noções de informática até o conhecimento da própria cultura, sua identidade e tradições. Os resultados positivos podem ser comprovados com os próprios alunos. Mérito das professoras Nayara Ribeiro (Kambeba) e Hemily Marinho (Ticuna).

Programa de rádio

O programa da rádio surgiu de uma preocupação muito grande com a aprendizagem. Eles tinham muita dificuldade com a leitura, com a escrita, com argumentação, tinham muita vergonha, eram muito tímidos. Então, era preciso fazer alguma coisa para que os alunos se soltassem, aprendessem com mais facilidade e se sentissem motivados a aprender, afirma a professora Nayara Ribeiro, que é indígena da etnia Kambeba.

Batizado de "Iawara"(onça, na língua kokama), o programa torna o aprendizado uma viagem gostosa pelo conhecimento da natureza, da cultura e das ciências. Um assunto que poderia ser encarado como obrigação decorativa passa a ser uma aventura de descobertas. Experiência real para o Wendel Pinheiro, de 9 anos. Ele é o apresentador do programa. "Eu gosto muito (do programa). Eu aprendo e isso é muito importante para todo mundo", diz o radialista mirim.

Além da dinâmica interessante do processo de criação de um programa, o cenário natural da comunidade, que fica na margem direita do rio Solimões, deixa o aprendizado incomparável com os ambientes feitos de concreto e ambientalizado com aparelhos de ar-condicionado. Na comunidade, as reuniões de pauta e criação podem ser feitas simplesmente embaixo das sombras das árvores.

A gente divide as tarefas de acordo com o programa. Um faz a parte das piadas, outro faz a parte dos recadinhos. A entrevista é um momento muito especial. A gente traz professores, lideranças indígenas. E vamos discutindo temas que são importantes pra eles e pra comunidade. E, hoje, eles mesmos já sabem conduzir o programa, completa a professora Nayara (22 anos).

Jornal Mural
No corredor de entrada da escola Santa Cruz, um quadro de aviso expõe o trabalho coletivo da equipe do jornal "Uruma", que na língua indígena quer dizer pato. A publicação segue o formato jornal mural, que é impresso em folhas de papel ofício, com textos e fotos. Mas muito mais do que a parte gráfica, a produção das crianças, sob supervisão dos professores e professoras, diz muito do que pensam e esperam do mundo em que vivem.

O dia da árvore é muito especial para o Brasil e também a gente tem que ajudar as arvores porque se a gente não cuidar das arvores, elas vão morrer e também as frutas vão sumir, diz Shayene dos Santos, repórter mirim, de 11 anos.

Quando criou o jornal, a professora Hemily tinha em mente já definidos os objetivos do trabalho.

Nosso trabalho (no jornal) consiste na alfabetização e fortalecimento cultural indígena por meio da exposição dos trabalhos de pesquisa sobre a história da aldeia, elementos culturais das línguas Kokama e Ticuna, além de grafismos produções textuais, feitos durante a aula, diz a professora.

A edição tem o ingrediente principal de expor o pensamento das crianças que participam do projeto. Além de aprenderem a transformar em texto o que estão pensando, os alunos também praticam a informática, noções de fotografia e construção de texto. O humor, a visão crítica da realidade, a opinião são componentes educativos que formam a prática de produzir um jornal desse tipo, em um ambiente escolar, de forma coletiva.

O trabalho tem apoio dos outros professores, assim como da direção da escola. Um esforço reconhecido e recompensado com o desenvolvimento das crianças. A iniciativa das professoras também tem o apoio da Secretaria Municipal de Educação de Tefé (SEMEC), por intermédio do secretário Marcus Lúcio, que fornece papel para a confecção do informativo.

"Tá sendo muito proveitoso, onde as crianças estão desenvolvendo o aprendizado", avalia a gestora da escola, professora Nayandra Boaventura. Para o professor bilíngue Humberto Lomas, o jornal Uruma é uma forma dos alunos não perderem sua cultura. "É onde eles começam a resgatar sua cultura, conhecendo a realidade deles. Com esse projeto, eles podem conseguir falar mais e traduzir na língua deles, afirma o professor.

As professoras

Hemily Marinho e Nayara Ribeiro são da geração de jovens indígenas que saíram de suas comunidades, passaram pela universidade e voltaram para praticar o que aprenderam em sala de aula.

São profissionais das novas gerações que tentam sair do modo de aprendizado a que o educador brasileiro Paulo Freire chamou de educação bancária, onde o professor impõe as informação aos alunos que servem apenas como depósitos de conhecimento dos quais não tiveram participação de sua formulação.

No jornal Uruma e no programa Iawara, os alunos são protagonistas do que aprendem. Neles, mostram sua forma de falar, de ver e analisar o mundo ao redor e, assim, desenvolvem seu poder de expressão, de argumentação, em um processo onde o aluno é o centro e o ator principal do processo de aprendizagem, como descreveu o psicólogo suíço, Jean Piaget, nos anos de 1920, pai do construtivismo.

As duas professoras travam uma batalha diária contra a falta de perspectiva da maioria da juventude que vive no interior do estado, em particular nas áreas indígenas. Tentam criar condições para que as crianças passem a enxergar e raciocinar o mundo que lhes rodeia. E, ao mesmo tempo que usam as tecnologias disponíveis, buscam conhecer e praticar a cultura de suas etnias que vêm se perdendo com o passar do tempo e o abandono de práticas antigas, como o aprendizado oral.

Vim me entender como mulher indígena na universidade, quando fui instigada a buscar minhas raízes, que estavam ali, bem na minha frente. Hoje, entendo minha missão de professora indígena como um presente que me foi dado, por aqueles que vieram antes de mim, que resistiram, que lutaram e guardaram nossas memórias, para que hoje eu pudesse por meio da educação escolar indígena fortalecer nossa cultura, declara a professora Hemily.

A reportagem do BNC Amazonas visitou a comunidade no último dia 3 de novembro. Com o período de seca, chegar o lugar requer uma boa caminhada para subir as escadas de acesso, pois a comunidade fica nas terras altas dessa região do rio Solimões. O dia estava com céu encoberto, mas o sol continuava forte. Uma tarde ventilada convidava para uma seção de aula embaixo das sombras, com todos sentados na grama.

Lecionar ao ar livre abre as portas da imaginação da criançada, e nos permite inovar a partir do que já temos: florestas, crianças e mentes férteis, diz a professora Hemily em um comentário impresso no jornal Uruma.

Sua colega, professora Nayara Ribeiro, segue o mesmo caminho de incentivar seus alunos a criarem conteúdo saídos de suas "mentes férteis". A criançada mostra empolgação e criatividade.

Como professora indígena, me preocupo em dar uma educação de qualidade para nossas crianças, para que elas se tornem autônomas, curiosas e inteligentes, e saibam ocupar o lugar que é nosso dentro da sociedade, e assim nós nos fortalecemos como um coletivo, afirma Nayara.

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