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O culto da pobreza

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: GRAZIANO, Xico
06 de Jul de 2004

O culto da pobreza

Xico Graziano

Soberania alimentar. O nome soa pretensioso, bonito. Mas por detrás do conceito se esconde uma artimanha. Surge, na verdade, outra bobagem na economia rural.
Quem a defende, ostensivamente, é José Bové, aquele francês extremista que ficou famoso ao quebrar as vidraças da MacDonald's. Especializado na produção de queijos finos do tipo roquefort, o agricultor virou ícone da esquerda antiglobalizante, que detesta a Organização Mundial do Comércio e credita às multinacionais todos os males do mundo.
Uma organização não-governamental, a Via Campesina, aglutina os simpatizantes dessa corrente, composta pelos radicais de esquerda e os ambientalistas de carteirinha. Coloca-se contra o progresso da biotecnologia e defende a auto-suficiência alimentar. Bové é um de seus dirigentes.
Atenção. Não confunda segurança alimentar com soberania alimentar. O primeiro conceito, surgido na Europa do pós-guerra, reforçava a imperiosa necessidade de o Estado implementar políticas voltadas para o abastecimento popular.
Privadas pela amargura do conflito, quando se viram sem o que comer, as famílias européias exigiram reforçar a atenção dos governos para garantir, em qualquer caso, sua alimentação. Assim surgiu o tremendo arsenal de políticas agrícolas protecionistas na Europa e no Japão. Fome, por lá, nunca mais.
Já o conceito da soberania alimentar tem outro significado. Seus defensores imaginam um mundo fechado, onde cessem as trocas externas de produtos agrícolas. Em nome do combate à fome, exigem que cada governo cuide de seu próprio povo. Uma política para o umbigo.
A Via Campesina, muito simpaticamente, quer que as nações reconheçam o direito à soberania alimentar. Diz o seguinte: "A comida não é uma mercadoria, como os produtos industriais, pois ela é vital. Portanto, ela não pode ser regulada pelas leis do mercado. Em conseqüência, a missão prioritária da agricultura é alimentar as populações locais, de seu território."
O argumento parece bondoso, mas esconde uma terrível desgraça. Esse negócio de cada país cuidar de si significa, na prática, deslegitimar as vendas internacionais de alimentos, como se exportar produto agropecuário fosse negócio do mal. Uma tremenda sacanagem.
O argumento da soberania parece doce quando invoca a causa dos milhões de famintos, gente excluída pela globalização. Não existe dignidade sem comida na mesa. É verdade.
Porém de onde brota a fome? Da falta de alimento ou da insuficiência de renda? A recente proposta, aparentemente generosa, da segurança alimentar traz um sopro de vida para Thomas Malthus, enterrado há 170 anos, na cova e nas idéias.
A fome surgiria inexorável, afirmava Malthus em 1798, porque a produção cresce à taxa aritmética, enquanto que a população cresce geometricamente.
Nunca talvez uma predição econômica tenha sido tão comentada e aceita. Sua observação era, realmente, apavorante.
A História desmentiu a teoria malthusiana. A evolução da tecnologia no campo permitiu enorme incremento na produtividade agrícola, acima da taxa de crescimento populacional. Esta, devido ao progresso da urbanização e, certamente, influenciada pelo temor do cataclisma populacional, reduziu-se também, favorecendo a sobrevivência da raça humana.
Os dados da FAO/ONU comprovam a suficiência mundial da oferta de alimentos.
O Programa Mundial de Alimentação indica que, em 2002, os agricultores do planeta produziram alimentos suficientes para fornecer 2.800 calorias a cada pessoa por dia, bem acima da meta do programa, de 2.100 calorias.
Paradoxalmente, após cair por décadas, aumentou nos últimos anos o número de famintos no mundo. Em recente artigo no The Wall Street Journal, intitulado Mundo produz mais comida e mais famintos, Thurow e Solomon mostram que mesmo na Índia, onde os celeiros estão abarrotados de alimentos, um quinto de sua população, cerca de 214 milhões de pessoas, passa fome.
Qual a conclusão? Simples: o problema da fome não reside na oferta de alimentos, mas sim na possibilidade de adquiri-los, quer dizer, na demanda.
E esta, fundamentalmente, depende da renda das famílias. No mundo de hoje, isso significa que o emprego e a ocupação produtiva são o caminho da fartura.
Nada disso tem que ver com a baboseira da soberania alimentar. No Brasil, defender tal autonomia, cada país cuidando de seu povo, sem realizar exportações, significa elevar terrivelmente a fome. Óbvio, pois haveria uma quebradeira geral na agricultura, com reflexos em toda a economia. Afinal, 42% da pauta de comércio exterior advém dos agronegócios.
Sem o mercado externo, os preços desabariam e os agricultores empobreceriam brutalmente. O País retornaria ao estágio medieval, cada qual produzindo seu pão, sua galinha caipira, o açúcar mascavo, uma cachacinha, sabe-se lá o que mais. A proposta da Via Campesina significa isso: cultuar a pobreza rural.
Retornar ao passado.
Quando os europeus, fingindo-se de bonzinhos, vêm aqui defender a soberania alimentar, eles querem, isso sim, livrar-se da força arrasadora das exportações brasileiras. Sabido como é, o Bové vem aqui vender seu pão, ou melhor, seu queijo. E os bobocas nacionais, pensando ser neo-revolucionários, assumem a defesa do atraso rural. Pobre colonialismo.
Xico Graziano, agrônomo, foi presidente do Incra (1995) e secretário da Agricultura de São Paulo (1996-98) E-mail: xicograziano@terra.com.br

OESP, 06/07/2004, Espaço Aberto, p. A2

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