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O cerco aos índios

Estado de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: WASHINGTON NOVAES
01 de Ago de 2003

Na primeira vez em que o autor destas linhas esteve no Parque Indígena do Xingu, há quase 30 anos, saiu num barco com motor de popa, guiado pelo diretor da área. Depois de navegarmos pelas águas inacreditavelmente transparentes do pequeno Rio Tuaturi e seus meandros cercados de buritis, entramos pelo Rio Kuluene e por este chegamos ao ponto em que suas águas se juntam às dos Rios Batovi e Ronuro para formar o majestoso Rio Xingu, no limite do parque. É um lugar sagrado para os índios, onde Mavutsini, seu grande herói transformador, criou aquela gente.

Bem ali, encontramos, nu e sozinho numa pequena canoa de madeira, com um varejão servindo de remo, Uluti, um kuikuro - um dos raríssimos índios carecas do Xingu. Perguntamos para onde ia, perdido naquelas lonjuras. Ele não hesitou: "Pra São Paulo." E seguiu, impávido, seu caminho. No dia seguinte, chegou ao Posto Leonardo, conseguiu carona num avião da Funai, foi para São Paulo.

Hoje, Uluti não precisaria tanto de sua própria força e determinação. Do outro lado do Xingu, poderia pegar carona num caminhão de madeireira que devasta a região. Ou num caminhão de transporte de gado. Até mesmo num comboio de transporte de soja - porque a soja também chegou e começa a cercar o Parque do Xingu, envenenar com agrotóxicos as águas dos rios que nascem fora, complicar a vida dos 4 mil moradores, afetar a fauna aquática.

Os índios estão nos jornais, queixando-se dos imensos desmatamentos em suas bordas (às vezes, dentro), mostrando que a Funai, sem recursos, não fiscaliza.

Não é apenas no Xingu. Só nos primeiros 200 dias deste ano - denuncia o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) - 18 índios foram assassinados no País, com o acirramento dos conflitos entre eles e os que querem tomar suas terras. Quase toda semana os pataxós, da Bahia, denunciam alguma invasão ou violência - 16 de seus líderes já foram assassinados. Apenas um terço das 771 terras indígenas registradas no Patrimônio da União ou em cartórios de municípios já teve todas as etapas da demarcação concluída, diz o Cimi.

Os índios estão exaustos de pedir e reclamar. Quase ninguém os ouve. Mas, enquanto isso, tramita no Senado o projeto de emenda constitucional que limita a 50% da área de um Estado a possibilidade de demarcação de terras indígenas - exatamente para impedir a demarcação da área Raposa/Serra do Sol, em Roraima (argumenta-se que é grande demais, deslembrando que todas as terras do País já foram indígenas; só para eles não pode valer nenhum argumento jurídico). Da mesma forma, quer-se transferir do Executivo para o Senado a homologação de demarcações - sujeitando-as a influências políticas e regionais.

Não tem fim o calvário dos índios. E, na verdade, eles nem conseguem entender direito o que acontece, por que os "caraíbas" querem mudar toda a paisagem do cerrado e de outras partes da Amazônia, devastar tudo, plantar soja em todos os lugares, se eles mesmo, caraíbas, já manifestam nos jornais seus temores de uma queda de preços de até 30% no mercado internacional nos próximos meses, tão grande já é a disponibilidade de soja, maior que a possibilidade de absorção - a ponto de um ministro falar em "crise de abundância". Não conseguem entender nada, eles, capazes de viver com tão pouco, preocupados com a capacidade do ambiente de suportar a exploração - a tal ponto que ali, no Xingu, sempre que uma aldeia cresce além de certo ponto, divide-se, uma parte se muda, para não sobrecarregar o meio ambiente.

E, mesmo com 14 etnias ocupando uma área de 28 mil quilômetros quadrados, eles ainda são apenas umas poucas mil pessoas.

A situação está muito difícil. Começa até a gerar conflitos internos de gerações - entre os mais velhos, que querem manter as formas tradicionais de viver, e uma parte dos mais moços, que considera inevitável um convívio mais próximo com os caraíbas, em projetos de ecoturismo ou apicultura orgânica, de modo a ter receitas, poder atender aos desejos de consumo das gerações mais novas. Só que o convívio não se faz sem adaptações e transformações.

Uma das mais visíveis é no belíssimo artesanato em madeira e cerâmica do Xingu, com seus desenhos geométricos - que levaram a saudosa Berta Ribeiro a investigar a hipótese de haverem sido eles que influenciaram culturas européias, até mesmo na Grécia. Outra transformação indesejável está na geração de lixo nas aldeias.

Que vai acontecer nesse lugar que a própria Unesco considerou um admirável modelo multiétnico de convivência? Que acontecerá com essas culturas que o antropólogo Pierre Clastres apontava como exemplos notáveis de sociedades sem delegação de poder, com a informação aberta (o que um sabe todos podem saber), a prática da auto-suficiência no nível pessoal (um índio, na força da sua cultura, sabe fazer tudo de que precisa)?

Culturas que, além de tudo, ainda têm a sabedoria de não promover aglomerações humanas excessivas e ingovernáveis. E que, como têm mostrado os estudos do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina, liderados pelo professor Roberto Baruzzi - que há décadas acompanham indivíduo por indivíduo em grupos do Alto Xingu -, não produzem os chamados fatores de risco das doenças cardiovasculares, um dos dramas da nossa cultura. Enquanto adstritos aos seus formatos tradicionais de viver, os índios do Alto Xingu não apresentaram um só caso de doença nessa área.

Comparados com grupos de outras áreas, já aculturados, as diferenças são berrantes.

Na crise civilizatória em que vivemos, poderíamos ter pelo menos um interesse egoístico de ajudá-los a se preservar. Para termos para onde olhar nas encruzilhadas difíceis de que nos aproximamos. Mas está difícil.

Resta torcer para que os velhos sábios xinguanos - como Malakuyawá, Paru, Prepuri e tantos outros -, lá na aldeia dos ancestrais, onde se encontram, conversem com seus amigos, os irmãos Villas Boas e, juntos, consigam abrir os nossos olhos e influenciar os nossos rumos.

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