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O cemitério das árvores mortas em pé

O Globo, País, p. 8-9
05 de Nov de 2016

O cemitério das árvores mortas em pé
Um ano após tragédia, natureza asfixiada em Mariana atesta profundidade do maior desastre natural do país

ANA LUCIA AZEVEDO
ala@oglobo.com.br

Quem nasceu para buscar o céu luta para não morrer no chão, na terra onde a lama engole a paisagem. Uma bromélia, planta que costuma viver no alto das árvores para captar luz, é uma das primeiras coisas vistas ao entrar no que restou de uma floresta ciliar, protetora das águas. Fica no coração da região devastada há um ano pelo maior desastre ambiental do Brasil, causado pelo rompimento da barragem de rejeitos de mineração de Fundão, da Samarco. Sob a lama quase tudo está morto. O desastre vive.
Há um ano, enlameada no tempo, a bromélia, uma criatura das alturas, está fora de lugar. Sobrevive ao rés-do-chão, agarrada a sua árvore, uma garapa. Não foi a garapa de cerca de seis metros de altura que caiu. Mas a lama que alcançou a sua copa. Asfixiou e matou a garapa. Deixou só um galho e a bromélia de fora. E tirou a bromélia, a garapa e a natureza de ordem.
Às margens de um tributário do Rio Gualaxo do Norte, entre Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, ambos distritos rurais arrasados de Mariana, a floresta onde se caminha sobre a copa das árvores é um retrato da destruição das matas à beira de cursos d'água, ou ciliares. Estas são Áreas de Preservação Permanente (APPs) devido à sua importância para os recursos hídricos e a biodiversidade.
- As matas ciliares prestam serviços ambientais valiosos, sem elas não temos água. Elas barram a poluição por agrotóxicos, evitam desmoronamentos e o assoreamento de rios. Retêm a água da chuva no solo, protegem as nascentes, regulam a temperatura dos rios. São bases da vida. Mas aqui, um ano depois, temos principalmente morte - lamenta Yasmine Antonini, ecóloga e especialista em matas ciliares do Departamento de Biodiversidade e Meio Ambiente da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop).
UMA DÉCADA PARA RECUPERAÇÃO DO SOLO
A onda de lama quebrou troncos de jacarandás como se fossem fósforos, levantou vinháticos pelas raízes, destroçou copaíbas como palha. Soterrou nascentes, olhos d'água e áreas de recarga do lençol freático numa das cabeceiras da Bacia do Rio Doce, uma região há anos já castigada por progressiva escassez.
A lama chegou em alguns pontos em minutos. Em outros, dentro de horas. Mas especialistas dizem que se contará em anos o tempo necessário para regenerar as matas ciliares. E em mais de década até se ver floresta onde hoje só se enxerga destruição.
- A maciça destruição de APPs é uma das tragédias da zona quente do desastre, hoje com enorme volume de rejeitos em leitos e margens de rios e nas planícies de inundação (14 milhões de metros cúbicos de lama) - destaca André Sócrates, coordenador-geral de Autorização e Uso de Flora e Floresta e responsável pelo Relatório Argos da Operação Áugias (alusão às estrebarias impossíveis de limpar do mito de Hércules), do Ibama.
Essa zona, segundo o Ibama, ainda concentra cerca de 80% dos rejeitos e se estende por 102 quilômetros, da Barragem de Fundão à Usina Hidrelétrica Risoleta Neves, nos municípios mineiros de Mariana, Barra Longa, Ponte Nova, Santa Cruz do Escalvado e Rio Doce.
As obras e intervenções feitas pela Samarco até agora foram consideradas insuficientes e atrasadas pelo Ibama. A maior parte dos locais afetados continua como foi deixada pela lama, há um ano: 71% dos pontos vistoriados estão sem conservação do solo, 62% sem drenagem e 53% sem contenção.
O desastre está vivo nas florestas mortas. Milhares de árvores foram arrancadas de uma vez. Estas se misturaram ao rejeito ou jazem em intermináveis pilhas de troncos e galhos. Outras tantas foram sepultadas pela lama que chegou a avançar em alguns trechos por mais de dois quilômetros terra adentro.
Cemitérios de árvores mortas e cobertas de lama até a copa se estendem por quilômetros, num desastre que se renova a cada chuva e cuja magnitude é impossível ao ser humano perceber do chão. De avião se vê um pouco melhor. Mas toda a dimensão do desastre cabe apenas aos satélites enxergar.
Os satélites observam o todo, mas não mostram tudo. Se a dimensão se vê do espaço, os detalhes se conhecem no chão. Pouco antes do Gualaxo do Norte alcançar Paracatu de Baixo, um pequeno tributário lança nele suas águas cristalinas e que logo se perdem na imensidão laranja de rejeitos do rio principal.
Esse tributário, o córrego Pedro Carneiro, vem da Fazenda Efigênia. Ele teve suas margens recompostas por obras emergenciais da Samarco.
- Não duraram nada. Foram feitas de qualquer jeito, e a lama corre de novo para o riacho. A água dele agora está clara, mas é só chover para a lama escorrer das margens. E se você pisar no córrego, a lama que está no fundo levanta e suja tudo - diz Elias Geraldo, de 41 anos, funcionário da fazenda e um dos seis únicos habitantes de Paracatu de Baixo que se recusa a abandonar o lugar.
COMO AREIA MOVEDIÇA
Elias mostra um campo de lama de seca atravessado pelo córrego. Aponta pegadas de duas capivaras, provavelmente mãe e filhote, e diz que dali em diante, por onde seguiram os animais em direção ao Gualaxo, não é seguro caminhar. A lama vez por outra cede e afunda quem está em cima, como areia movediça.
- Elas foram em busca de comida. Aqui antes era cheio de capivaras. Hoje são raras. Havia jacarandás, paus-jacarés, candeias, goiabeiras, guarapas e muitas plantas menores. Mas a lama levou tudo. Chegou a uns 10 metros - conta Elias.
Logo no início dessa floresta, se encontra a bromélia viva na guarapa morta em pé. A alguns metros dela, um ingá seco e sem vida, de dez metros e tronco quebrado, ainda abriga um ninho de abelhas-cachorro, outra habitante das alturas que passou a viver no chão. Depois, uma sucessão de gameleiras, mais guarapas, candeias, todas mortas. Em volta das margens do riacho, o rejeito forma paredes de mais de dois metros de altura em alguns pontos.
- Isso aqui era plano. Agora virou barranco - frisa Elias.
O bosque de mortos em pé do córrego chega aonde a lama foi, a um quilômetro e meio do Gualaxo. A onda só parou barrada pela montanha. Bateu e voltou, soterrou uma nascente e cobriu o riacho.
- Levamos muito tempo para desenterrar a nascente, ela abastece a fazenda.
Recuperar é possível, mas complexo. Remover a lama não é uma opção em muitos casos, destaca João Herbert Moreira Viana, especialista em recuperação de solos e pesquisador da Embrapa, que estuda a área afetada:
- Em áreas de floresta pode ser impossível retirar a lama porque isso traria ainda mais destruição. É preciso regenerar sobre ela.
Regenerar o solo da mata é essencial. Mas Igor Assis, especialista em recuperação de áreas degradadas do Departamento de Solo e Ciências Agrárias da Universidade Federal de Viçosa, frisa que não é tarefa trivial. Não se trata de jogar terra a esmo ou cobrir lama com uma camada de fertilizantes e esterco. É diferente:
- Estudos na Amazônia mostram que se leva dez anos para obter solo de dois centímetros de profundidade. Na Mata Atlântica não seria mais simples. Mas nessa região de Minas o solo é raso, tem entre cinco centímetros e dez metros de profundidade. Então, podemos pensar em dez anos de trabalho intenso. Em uma década poderemos ter uma floresta e alguns resultados antes disso.
A recuperação das APPs é essencial para devolver a segurança hídrica da Bacia do Rio Doce, afirma Fabio Scarano, diretor executivo da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS). Não apenas o volume, mas a qualidade da água, hoje precária em toda a bacia.
Em Paracatu de Baixo, onde a única água que há para beber é a que a floresta dá, Elias teme que se passe tempo demais:
- Veio uma onda e mudou numa noite o nosso mundo. Vivemos até hoje naquela noite. E agora, quanto tempo vamos ter que esperar?

Chuva revive mar de rejeitos
Chegada do verão aumenta volume de água contaminada despejada na Bacia do Rio Doce

A cada chuva, a lama de rejeito mostra que está ativa. E o desastre, em curso. Ela volta a escorrer para dentro de rios e córregos. Se torna movediça onde antes parecia rija como concreto. A maior parte dos rejeitos continua como foi deixada pela tsunami que irrompeu da Barragem de Fundão em 5 de novembro passado. E também nos meses que seguiram à tragédia.
A onda carregou 32,15 milhões de metros cúbicos de rejeitos. O desastre, porém, não terminou aí. Até julho, outros 11,45 milhões vazaram de Fundão, pelas contas da Samarco informadas pelo Ibama. E o derrame continua.
- Antes de recuperar, precisamos matar o desastre. E ele está bem vivo. É dinâmico. Quando chove, a lama de rejeito volta para rios e córregos. Tudo isso vai parar no Doce. As obras da Samarco de contenção e drenagem estão atrasadas ou não foram satisfatórias. Nem sequer começaram em muitos pontos. E só houve remoção em 3,26% dos pontos vistoriados em junho e não vimos qualquer remoção na etapa de vistoria de setembro - afirma André Sócrates, coordenador-geral da Operação Áugias do Ibama, que avaliou a zona mais afetada pelo desastre, em junho e em setembro, e reprovou em sua maior parte o trabalho realizado pela Samarco, que voltou a ser notificada.
O Ibama vistoriou 92 tributários e os leitos dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce. Em 75% dos pontos vistoriados em setembro, a espessura da camada de rejeito supera 50 centímetros. Em alguns pontos, chega a dois metros. Em 92% dos pontos há erosão.
- Existem três grandes frentes: emergência, remediação e recuperação. Não existe uma solução, mas um conjunto delas. Temos vários cenários e ainda estamos nas duas primeiras frentes. A preocupação mais imediata é conter a lama. Isso será feito com o término das construções das estruturas de contenção do complexo minerário da Samarco, em obras e intervenções ao longo dos rios e na dragagem da Barragem de Candonga, que segurou 10,5 milhões de metros cúbicos de rejeito e evitou que a tragédia fosse ainda pior - explica Gustavo Bediaga, coordenador do Grupo de Trabalho de Restauração Florestal do Ibama.
O maior temor é a intensificação da estação chuvosa. Ela começou em outubro e se estende a março, mas tem seu auge de novembro a janeiro. Fernanda Pirillo, coordenadora geral de Emergências Ambientais do Ibama, observa que desde setembro, já se registra o aumento da turbidez da água.
Uma lata de lixo de mineração de tamanho colossal, que se tornou um canteiro de obras a céu aberto. A mineradora quer entregar até o início de 2017 boa parte das obras de contenção. E espera voltar a operar no próximo ano, com a aprovação da colocação dos rejeitos numa cava desativada da mina de Alegria Sul.
- Temos 2.990 operários. E mantemos as obras 24 horas por dia, sete dias por semana - afirma o coordenador de Operações da Samarco, Eduardo Moreira.
A mineradora já construiu os diques S1, S2 e S3, sendo que esse último está sendo aumentado. Recebem reforço os diques de Selinha, Sela e Tulipa, contíguos à Barragem de Germano, a maior do complexo minerário, com 136,8 milhões de metros cúbicos de rejeito e a capacidade esgotada. Fundão, a título de comparação, continha 56,4 milhões de metros cúbicos.
As duas obras mais importantes e definitivas são o Eixo 1 e a Barragem de Nova Santarém. O Eixo 1 fechará Fundão e comportará 20 milhões de metros cúbicos. Já Nova Santarém terá 7,1 milhões de metros cúbicos de capacidade e poderá, segundo a Samarco, conter todo o rejeito que venha a vazar de Fundão. Ela fica ao lado da Barragem de Santarém que foi "galgada" pela lama, isto é, ultrapassada. Santarém hoje está cheia de rejeito até o alto.
- Nova Santarém é nossa obra mais importante. Não estamos com crédito para convencer alguém, mas vamos mostrar que será seguro. Os diques e barragens menores têm a função de reduzir a velocidade dos rejeitos. Nova Santarém poderá contê-los e não deixar que nada mais saia do complexo. (A.L.A)

PELA 11ª VEZ, IBAMA MULTA SAMARCO; R$ 500 MIL, POR DIA

O Ibama aplicou uma nova multa contra a Samarco pelo acidente de Mariana (MG) no valor de R$ 500 mil por dia, enquanto não forem concluídas adequações exigidas pelo órgão.
Segundo o auto de infração lavrado na última terça-feira, a multa será aplicada porque a empresa deixou de adotar "medidas de precaução ou contenção em caso de risco de dano ambiental grave ou irreversível, ao não tratar efetivamente o rejeito a montante do Dique S3, e não concluir seu alteamento antes do período chuvoso".
De acordo com o Ibama, este é o 11o auto de infração aplicado à Samarco desde o acidente da barragem do Fundão. Foram, ao todo, três os autos de infração aplicados na terça-feira. O segundo, no valor de R$ 151 mil, e o terceiro, de R$ 201 mil, referem-se também a medidas que deveriam ter sido tomadas pela Samarco para evitar novos danos ambientais na região. Esses, porém, têm valor fixo, e não se acumulam diariamente.
Já na manhã de ontem, especialistas em direitos humanos das Nações Unidas exigiram uma ação imediata, pelo governo brasileiro, a respeito dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, administrada pela Samarco.
Os especialistas pedem soluções para problemas causados pelo derramamento de rejeito, como a diminuição do impacto sobre as comunidades locais; atenção aos "problemas de saúde nas comunidades ribeirinhas"; "a reinstalação de povos indígenas" que habitam o caminho que a lama percorreu pelo Rio Doce e seus afluentes; a descontaminação da água que abastece a região; a pronta realocação dos habitantes das comunidades devastadas - como Bento Rodrigues, distrito de Mariana que foi devastado pelos rejeitos -;e a investigação de "relatos de que defensores dos direitos humanos estejam sendo perseguidos".

O Globo, 05/11/2016, País, p. 8-9

http://oglobo.globo.com/brasil/desastre-de-mariana-ainda-esta-vivo-2041…

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