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O Brasil que fica cara a cara com o esgoto

O Globo, O País, p. 18
03 de Out de 2010

O Brasil que fica cara a cara com o esgoto
Carência de financiamento e demora na regulação fazem do saneamento o setor de infraestrutura que menos teve investimento de 2003 a 2009

Alessandra Duarte

O Brasil de Pedro Raimundo Mendes fica de cara para o esgoto. É uma bandeira do país pintada pelo próprio Pedro no muro de casa. Acontece que a casa do pedreiro de 56 anos tem como calçada um valão, que percorre toda a rua onde ele mora com a mulher, os filhos e o genro no bairro de Boaçu, em São Gonçalo, cidade da Região Metropolitana do Rio e segundo maior colégio eleitoral do estado. Há uma segunda bandeira, pintada numa ponte construída por Pedro para poder sair de casa. Mas o país representado na decoração verdeamarela da última Copa do Mundo só ajuda Pedro a atravessar o valão, não a acabar com ele - segundo o IBGE, 56% do total de domicílios no país não são atendidos por rede geral de esgoto.

A situação da área é ainda um espelho para a desigualdade no país. Entre domicílios com rendimento mensal per capita de até meio salário mínimo no Norte, a cobertura é de 7,9%.

Entre aqueles com mais de dois mínimos no Sudeste, é mais de dez vezes maior: 91,6% não têm rede de esgoto.

A explicação para a baixa cobertura está na ausência crônica de investimentos e no gargalo de financiamento do setor. De 2003 a 2009, o total dos investimentos públicos e privados em saneamento não chegou a R$ 7 bilhões por ano, segundo a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib).

No setor de infraestrutura, o saneamento é o patinho feio. Em 2009, por exemplo, a área de transportes recebeu R$ 19,6 bilhões; energia elétrica, R$ 18,6 bilhões; petróleo e gás, R$ 60,8 bilhões; telecomunicações, R$ 15,9 bilhões - e o saneamento, R$ 6,8 bilhões. Entre 2003 e 2009, a área (cujo percentual do PIB, entre 1999 e 2009, não passou de 0,22%) ficou na lanterninha dos recursos para infraestrutura.

O resultado desse descaso, Pedro Raimundo Mendes vê passar todo dia na frente do seu portão em Boaçu. Também o sente no ar, com o cheiro do esgoto e os mosquitos. Às vezes, o descaso dá susto na filha de Pedro, Lorena, de 20 anos: é quando os ratos que passeiam pelo valão resolvem entrar na cozinha, na sala, no quarto...

- Já vi rato até no fio do poste - conta Lorena, que acompanhou o horário eleitoral na TV e tem seus candidatos na ponta da língua. Ela espera que os próximos governantes invistam na educação, "para tudo poder melhorar". Perguntada se estuda ou trabalha, diz que "já terminou".
O "terminou", para Lorena, é o ensino médio: - Para faculdade pública, a gente não passa. E não tem dinheiro para particular.

A responsabilidade por prestar o serviço de saneamento é de estados e municípios. E a União também entra com verba para o investimento: por transferências diretas ou por financiamento por instituições como a Caixa Econômica. Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas, vê problemas nessa estrutura:
- O grande gasto com saneamento parte dos orçamentos dos próprios estados e municípios, além de financiamentos internacionais e da Caixa. Só que muitos municípios não têm capacidade técnica para elaborar e acompanhar projetos de financiamento, ou já estão no limite máximo de endividamento.

- O fato de estados e municípios compartilharem a titularidade da área já é um problema.

Não fica claro quem tem de fazer o quê. Mas nem governo estadual nem o municipal querem abrir mão, pelos dividendos políticos que uma área de cunho social rende - diz o economista Raul Velloso, especialista em contas públicas. - Um segundo problema é que muitos estados e municípios não podem se endividar com empréstimo, pois são limitados por metas fiscais do governo federal, que passou a gastar mas deixou a corda no pescoço dos outros entes.

A disputa política pelo setor e o entrave para estados e municípios se financiarem são um dos eixos do problema. Outro é a falta de interesse do setor privado pela área, e de segurança jurídica para fazer com que ele se interesse. Entre 2003 e 2009, do total de R$ 33, 9 bilhões investidos no setor, só em torno de 5% foram privados, diz a Abdib.

Se a rede já foi instalada, e a empresa privada entraria para geri-la, é mais fácil para a iniciativa privada se interessar, afirma Velloso. Mas se é para instalar a rede - principal necessidade de um país com metade da população sem o serviço -, a regulação da área não daria garantias suficientes ao setor privado.

- Até 2007, quando saiu a Lei do Saneamento, a primeira a dar uma regulação geral ao setor, os órgãos que atuavam em saneamento agiam livremente. Não havia agências reguladoras, um governante poderia entrar e mudar as regras. Isso dava insegurança ao setor privado - diz Paulo Godoy, presidente da Abdib, sobre a lei do setor, regulamentada só este ano. - De 2007 para cá é que começaram a criar agências reguladoras estaduais. A lei também passou a condicionar a liberação de financiamento federal para os municípios ao fato de eles terem agência municipal ou se ligarem a uma estadual.

Enquanto União, estados e prefeituras não se entendem, o pedreiro Pedro, cearense de Santa Quitéria que chegou ao Rio nos anos 1980, tirou algum do bolso para fazer sua ponte:
- E para cimentar do outro lado do valão também. Até ano passado era tudo terra - diz Pedro, lembrando que, na eleição para prefeito em 2008, a então candidata à reeleição, a prefeita Aparecida Panisset, foi lá com o então candidato a vereador Eduardo Gordo.

- Falaram que fariam obra aqui: "Amanhã! Amanhã o material está aqui!". Cadê? Amanhã, só Deus sabe.

'A água está barrenta. Serve só para louça'
No Maranhão, apenas 33% da população contam com água encanada

Evandro Éboli Enviado especial

Num estado com os piores indicadores sociais do país, a população que mora no interior do Maranhão e na periferia de São Luís parece viver em outra época. São comuns valas de esgoto, não há água encanada, os banheiros são improvisados no quintal e os vasos sanitários são buracos na terra. Inexiste o básico.

Nem tão longe da capital, moradores da zona rural dividem água barrenta de açudes com animais.

Nesta época de campanha eleitoral, as mazelas do Maranhão aparecem junto com as promessas.

No estado, 49% da população não têm saneamento e só 33% contam com água encanada, segundo o "Mapa da exclusão social no Brasil - Radiografia de um país assimetricamente pobre", do economista José de Jesus Souza Lemos, da Universidade Federal do Ceará.

Assentados da reforma agrária, Anselmo Neves e José Ribamar Castro vivem no assentamento Cigana, área rural de Matões do Norte. Eles percorrem cinco quilômetros de bicicleta até o açude mais próximo, onde buscam a água para lavar louça, mãos e rosto. Em volta do açude, bois e cavalos pastam e bebem dessa água.

- Não tem como fugir. O que a gente faz é ficar do outro lado de onde estão os bichos, para não pegar água contaminada.

Até hoje não deu problema. Devem estar olhando pela gente lá em cima - diz Neves, com 39 anos e quatro filhos.

A poucos quilômetros dali, no povoado de Samangula, um pequeno açude era a imagem de um triste cenário. Bem mais raso e bem mais barrento.

Ainda assim, com água colhida pelos moradores da região. É a única opção. O lavrador Justino Oliveira Rodrigues, de 55 anos, abastece ali sua casa. O galão é improvisado com um balde, levado na cabeça no trecho de dois quilômetros que separam o açude de sua casa.

- A água aqui está muito grossa, barrenta demais. Serve só para lavar louça - diz Justino, que tem uma pequena "rocinha de pé de toco", onde planta arroz para sua subsistência.

O caminhão-pipa da prefeitura, que abastece caixas d'água e deveria passar, no máximo, toda semana, fica 15 dias sem aparecer.

- Aí não tem jeito - lamentase Justino.

Em Bacabeira, uma das tantas cidades do Maranhão à beira de uma rodovia, Francinete de Jesus Soares, de 55 anos, improvisa. Ela transformou um pneu de caminhão em reservatório: - Cabe bastante água aí. A gente tem que deixar a torneira aberta, porque não sabe a que horas vai ter água.

Já aconteceu de a água chegar de madrugada. Às 2h, corro para lavar roupa. Tem que aproveitar.

O Globo, 03/10/2010, O País, p. 18

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