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O bispo que podia morrer de fome

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: GARCIA, Luiz
18 de Dez de 2007

O bispo que podia morrer de fome

Luiz Garcia

O dicionário ensina que transposições podem acontecer em álgebra, cirurgia, genética, lingüística, medicina e música. Em quase todos os casos, trata-se simplesmente da mudança de alguma coisa de um lugar para outro, com efeitos que podem ser benéficos, maléficos ou inocentemente neutros.

Este último não é o caso da programada transposição das águas do São Francisco, que tem defensores e inimigos igualmente enfáticos e freqüentemente ferozes. Até mesmo, coisa rara, entre os poucos cidadãos que realmente sabem do que se trata.
O governo Lula é decididamente a favor, e entregou ao Exército a execução do projeto - começando com dois canais levando a água até Rio Grande do Norte e Paraíba.
A luta contra as obras é capitaneada pela Igreja Católica - isso, na opinião de quem acha que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil fala pela Santa Madre.

Os militares parecem ser competentes para executar o trabalho, e a CNBB com certeza entende de gente pobre, grande vítima ou principal beneficiária do projeto.
O debate sobre virtudes e pecados do projeto dá para encher páginas de jornal com entretantos e por outros lados - o que a nada leva e corre o risco de ser muito chato. Mas, graças a Deus (não sei se é o momento apropriado para mencionar o Grande Arquiteto, mas em algum momento Ele tem que entrar na história), há um episódio marginal que nada tem a ver com os argumentos técnicos, nas duas margens da transposição.

É a greve de fome do bispo Luiz Cappio contra a obra de engenharia. Não foi a primeira em sua carreira de suposto líder popular, mas nem por isso seria coisa corriqueira: se está sendo feita a sério - há versões conflitantes - a greve pode levá-lo à morte. Seria um suicídio, que a Igreja Católica condena de forma irrestrita.
Críticos do bispo garantem, alegando precedentes e chamando atenção para seu aspecto saudável, que o jejum não era para valer. Seria mais dieta do que greve - o que faria do prelado apenas um demagogo banal.

Para a CNBB, não há dúvidas; desde o primeiro momento, endossou a greve com entusiasmo.
Seria instrutivo ver a reação dos bispos se Cappio morresse de fome, num virtual e pecaminoso suicídio.
E Roma demorou a reagir. Leigos desabusados poderiam lembrar que já tivemos Papas, recentemente até, mais enfáticos e ágeis no exercício de sua liderança e ciosos de sua autoridade. Enfim, no fim da semana passada o Vaticano se manifestou pelo fim da greve.

Deve-se concluir que isso aconteceu graças a Deus, como tudo deve ser no Vaticano? Houve algum empurrão ou apelo do governo brasileiro? Há margem para dúvidas: ontem, o governo Lula tratou o jejum do bispo como coisa para valer, e digna de respeito.

Na verdade, com greve ou sem greve, a discussão sobre a transposição, levando em conta seus méritos ou a ausência deles, continua aberta. Ajudará bastante se o debate ficar livre de ações teatrais e dramáticas.

O Globo, 18/12/2007, Opinião, p. 7

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