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O bilhete premiado

O Globo, Economia, p.26
Autor: VIEIRA, Agostinho
18 de Set de 2014

O bilhete premiado

Agostinho Vieira

Duas características têm marcado fortemente a campanha presidencial até agora: a agressividade dos discursos e a superficialidade das propostas. E isso não é gratuito. Se tivéssemos discussões de alto nível, ponderadas e aprofundadas, veríamos que as diferenças, pelo menos entre os favoritos, não são tão grandes. Melhor continuar no campo do marketing eleitoral, das meias verdades ou das quase mentiras.
Assim, acabamos numa espécie de jogo dos adjetivos ou dos estereótipos. Pegue um concorrente e junte a ele as características que mais lhe convier: competente, autoritário, simpático, ranzinza, sonhador, corrupto, inseguro, messiânico, fraco. Não importa. Parece que estamos participando de uma eleição para Deus. Alguém que não estará submetido aos interesses e pressões do Congresso, dos empresários, dos movimentos sociais, da conjuntura internacional e tantas outras.
Vejamos o caso, por exemplo, dos debates sobre a matriz energética brasileira. Assim que foi confirmada como candidata, Marina Silva disse que ia tirar o pé do pré-sal, reduziria os subsídios da gasolina e voltaria a investir mais pesadamente no etanol. Nada muito diferente do que já pregava em 2010 e na maior parte da sua vida pública: "Costumo dizer que o petróleo é um mal necessário".
Acontece que a reação ao que ela disse foi muito ruim. Marina logo se apressou em explicar que tirar o pé do pré-sal não significava abandonar o programa, deixar o óleo embaixo da água e esquecer os US$ 113 bilhões que poderão ser investidos em educação e saúde nos próximos dez anos. Nada disso. Ela só queria ressaltar que os investimentos em fontes renováveis seriam tão ou mais importantes que os recursos gastos hoje com combustíveis fósseis.
Claro que a oposição não deixaria uma oportunidade como essa passar. A frase virou símbolo de irresponsabilidade, insensatez e mote para manifestações de rua. Na verdade, o que Marina disse é mais ou menos o mesmo que está traduzido em números no Plano Decenal de Energia (PDE), divulgado na semana passada pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Órgão do governo ligado ao Ministério das Minas e Energia.
De acordo com o documento, até 2023, a participação dos derivados de petróleo na nossa matriz energética cairá dos atuais 41% para 39%. Os carvões mineral e vegetal, que hoje representam 7,5%, passarão para 6,4%. Já o etanol subirá de 4,9% para 6,3%. A energia eólica, que há quatro anos girava em torno de 1% da matriz elétrica, alcançará 11,5%. Outras fontes como a solar, a biomassa e as PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas) ficarão com 12,5% desse bolo.
É óbvio que o futuro presidente, seja ele quem for, pode tentar mudar esses índices. Estabelecer outras prioridades. Mas a margem de manobra é pequena. Os investimentos em energia são vultosos e de longa maturação. Contratos assinados agora, só serão entregues depois que os atuais candidatos deixarem o Planalto. São basicamente três as variáveis que influenciam essa decisão. A segurança energética ou a garantia de que não faltará luz nas casas e nem combustível nos carros. A viabilidade econômica e financeira dos investimentos e os impactos ambientais.
Alguns ambientalistas realmente defendem a paralisação do pré-sal. Assim como são contra a energia nuclear e as grandes barragens. Argumentam que se todas as formas não convencionais de exploração de combustíveis fósseis, como o gás de xisto nos EUA, as areias betuminosas no Canadá e o pré-sal brasileiro forem levadas adiante, as emissões de gases de efeito estufa vão dobrar nos próximos 50 anos.
Não é essa a visão dos cientistas representados pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC). Para eles, ainda é possível limitar o aquecimento a 2oC sem interromper estes projetos. O grande problema estaria no uso extensivo do carvão, alternativa barata mas muito poluente. Não é este o nosso caso. Caminhamos para ser um dos cinco maiores produtores de petróleo do mundo, mas com uma matriz energética 42% limpa. Contra 13% do resto do mundo e 9% da OCDE.
Preocupa saber que daqui a 10 anos, a quantidade de carros nas cidades passará de 38 milhões para 64 milhões. É lamentável constatar que em 2023, apesar de todo o nosso potencial, a energia solar será responsável por apenas 2% da luz elétrica. Mas não é com bate-boca e cara feia que vamos mudar essa realidade. Lula disse que o pré-sal seria o nosso bilhete premiado. Continua sendo. Precisamos de calma e responsabilidade para fazer o melhor uso dele.

O Globo, 18/09/2014, Economia, p.26

http://oglobo.globo.com/blogs/ecoverde/posts/2014/09/18/o-bilhete-premi…

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