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O aterro da barragem

CB, Cidades, p. 25
25 de Fev de 2008

O aterro da barragem
Em 24 anos, o reservatório do Descoberto perdeu 17% do volume de água devido ao assoreamento provocado pelo crescimento desordenado de municípios goianos e de condomínios irregulares do DF

Érica Montenegro
Da equipe do Correio

Uma garrafa de 300ml com três dedos de areia e o restante de água. A imagem serve para entender o que está acontecendo com a Barragem do Descoberto, principal fonte de abastecimento de água do Distrito Federal. Desde sua construção, em 1974, o lago do Descoberto já perdeu 17% do volume. Em outras palavras, a capacidade de armazenamento de água diminuiu de 91,9 milhões de metros cúbicos para 76 milhões de metros cúbicos. A água que deveria estar no espaço perdido (15,9 milhões de metros cúbicos) é mais do que suficiente para abastecer todas as residências do DF durante um mês.

A grande quantidade de resíduos de material orgânico e terra que hoje ocupa o fundo da barragem é reflexo da ocupação urbana desenfreada. "Apesar de ser uma área protegida, a pressão por moradia sempre foi enorme na região", relata o responsável pela Gerência de Proteção de Recursos Hídricos da Companhia de Saneamento Ambiental do DF (Caesb), Márcio Niemeyer Borges.

Do lado do Distrito Federal (veja o mapa), estão os condomínios irregulares em Ceilândia e Brazlândia e o parcelamento de chácaras na área conhecida como Incra 8. Do lado goiano, a situação é ainda pior. A cidade de Águas Lindas, com mais de 130 mil habitantes, de acordo com a última contagem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), continua a crescer sem infra-estrutura e novos núcleos urbanos aparecem próximos a Padre Bernardo.

Ao transformar um ambiente natural em urbano, o homem impermeabiliza o solo com asfalto e cimento. A água da chuva que se infiltraria na terra e abasteceria o lençol freático acaba escorrendo pela superfície. E, junto com ela, carrega areia, barro, vegetação e lixo. Pelo caminho, a força da água provoca grandes cicatrizes no solo - as erosões - até chegar a um espaço onde fique armazenada.

Proteção ambiental
O lago formado pela Barragem do Descoberto está numa área de relevo mais baixo, então todo o fluxo de água que vem das áreas urbanas próximas escoa para o reservatório ou seus tributários. "O ritmo do assoreamento na Bacia do Descoberto está muito acentuado e a tendência é que aumente ", alerta Sérgio Koide, professor da Universidade de Brasília (UnB) e especialista em recursos hídricos. Ele avisa que se o poder público não fiscalizar o uso do solo na área de proteção ambiental (APA) do Descoberto, o DF vai ter problemas de abastecimento no futuro.

No lado mais próximo de Águas Lindas, os prejuízos ambientais provocados já são visíveis. Vários processos de erosão rasgam as margens da BR-070 e abre fendas em terrenos que cercam a cidade. Para Márcio Niemeyer Borges, da Caesb, a criação de um sistema de captação de águas pluviais no município goiano é imprescindível. "Um terço da cidade está dentro da APA; isso não deveria ter acontecido. É preciso encontrar uma solução para diminuir o impacto das águas da chuva", aponta.

Em agosto do ano passado, atendendo a uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF), a prefeitura de Águas Lindas se comprometeu a aumentar a vigilância da ocupação do solo e a construir um sistema de contenção para as águas pluviais. Mas, até agora, as obras não começaram.

E não é só a capacidade de armazenamento do lago que vem diminuindo. O índice de qualidade da água (IQA) captada na Barragem do Descoberto também está piorando. Em 2000, o IQA médio da água era de 81,2 - equivalente a muito boa. No ano passado, o IQA médio foi de 72,2, na faixa imediatamente inferior, a de boa. "O declínio é pequeno, mas mostra que já há uma interferência provocada pela ocupação da APA", explica Cláudia Morato Álvares, gerente de Monitoramento da Qualidade da Água da Caesb. Também influenciam o IQA as técnicas agrícolas utilizadas pelos chacareiros estabelecidos ao redor da barragem. O uso de fertilizantes afeta a qualidade da água.

Por enquanto, o declínio do IQA não traz problemas para a água que é distribuída para 65% do DF. Mas, a médio prazo, pode criar dificuldades durante o processo de tratamento. Se o IQA piora, é necessário trabalhar mais na purificação da água, o que resulta em aumento na conta que chega ao cidadão. "Já existe tecnologia para tratar água de qualquer qualidade. Na Europa, eles tratam água que recebe esgotamento sanitário. Temos água de boa qualidade aqui, nossa obrigação é cuidar para mantê-la", explica Cláudia Morato. "Se o IQA continuar caindo, teremos de gastar mais no processo de tratamento. Esse custo, inevitavelmente, será repassado ao consumidor final", completa a gerente.

O curioso é que se a água da chuva tivesse sido absorvida pela terra, ela passaria por um processo de filtragem natural e chegaria bastante limpa à barragem do Descoberto. "O processo natural de purificação da água é eficiente. O problema são as modificações que o homem provoca", lamenta o professor Sérgio Koide. Depois de tratada, a água do Descoberto é distribuída para Ceilândia, Taguatinga, Gama, Guará, Samambaia, Riacho Fundo, Recanto das Emas, Águas Claras, Santa Maria, Núcleo Bandeirante e Candangolândia. O sistema Descoberto também reforça o abastecimento do Plano Piloto, Cruzeiro, Sudoeste e Lago Sul.

Eugênio das nascentes

Ao chegar ao Sítio das Neves, na BR-060, o gaúcho Eugênio Giovenardi , 73 anos, avisa que se trata de propriedade alheia. "Por favor, respeito. Aqui é a terra das árvores, dos bichos e das águas", ensina o escritor e sociólogo. Na propriedade de 100 hectares estão oito das nascentes que alimentam o Ribeirão das Lajes, um dos tributários do Rio Santo Antônio do Descoberto. Ao encontrar uma delas - a dos Currais -, Eugênio, com vigor de menino, ajoelha-se e prova um pouco da água. "É uma delícia. Naturalmente pura", saboreia.

Comprado há 35 anos, o Sítio das Neves é motivo de orgulho para Eugênio e a família. Quando ele chegou ali praticamente não havia vegetação nativa. "O dono anterior queimava o cerrado para fazer carvão. Era um homem muito humilde, não sabia o mal que estava fazendo", relata o ex-funcionário da Organização Internacional do Trabalho (OIT). As árvores retorcidas e as flores amarelas, chamadas de douradinhas-do-campo, que enfeitam a terra, dão testemunho de que Eugênio Geovenardi está vencendo a destruição. "Eu encontrei tudo devastado, agora vejo vida", conta ele, que vai lançar em breve o livro A saga de um sítio, detalhando a história da recuperação da área.

Para que o cerrado voltasse a florescer, Eugênio ocupou-se de assegurar a vida das nascentes: plantou algumas sementes de espécies endêmicas perto de onde havia água. Também cuidou de criar pequenas barragens, usando pedras, para amortecer o impacto causado pelas águas da chuva. "Assim a água infiltra, eu a devolvo ao lençol freático", ensina ele. O resultado do esforço é o início de uma mata de galeria nas áreas onde a água é mais abundante.

Experiência
A consciência ambiental que Eugênio possui foi adquirida em suas andanças pelo mundo. "Como todo brasileiro, eu achava que para desenvolver era preciso desmatar", relata. "Mas esse tipo de desenvolvimento é falso. Destrói mais do que produz". Na Colômbia, onde trabalhou no atendimento a pequenos agricultores, ele percebeu que as áreas com mais água eram as mais prósperas na produção de alimentos. Os moradores delas não passavam fome.

Nas Ilhas Galápagos, a mil quilômetros do Equador - por onde Charles Darwin passou, em 1831, e colheu os princípios para o futuro A origem das espécies -, ele entendeu que os seres humanos são apenas um dos inquilinos do planeta terra. "Lá a vida é tanta que você é que desvia dos pássaros. E não eles de você", recorda.

Sempre que as chuvas chegam, Eugênio encontra lixo no Ribeirão das Lajes. São sacos plásticos, restos de construção e até tampas de privada. Esses desagradáveis vestígios da civilização no santuário do sociólogo se tornaram mais comuns nos últimos cinco anos, quando um loteamento surgiu logo acima do Sítio das Neves. Eugênio lamenta a existência deles, mas não capitula diante da proposta de preservar.

"Desistir é uma tentação que volta e meia nos ataca. Mas, eu resisto porque sou parte disso. Um dia voltarei ao solo e quero que ele esteja em boa qualidade para me receber", diz, bem-humorado. Eugênio Giovenardi faz parte do programa Adote uma Nascente, do Instituto Brasília Ambiental (Ibram), que distribui mudas de árvores nativas entre os chacareiros do Distrito Federal. Na área do Descoberto, 38 nascentes já foram adotadas. (EM)

CB, 25/02/2008, Cidades, p. 25

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