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'O aquecimento global redimiu a energia nuclear'

O Globo, Razão Social, p. 4-5
Autor: SENRA, Aquilino
19 de Out de 2010

'O aquecimento global redimiu a energia nuclear'

Quando entrava em sala de aula há 15 anos para falar de Energia Nuclear, o físico e vice-diretor da Coppe/UFRJ, Aquilino Senra, gastava um bom tempo explicando sobre os perigos dos reatores, do descarte do lixo radioativo e do potencial bélico do urânio. Hoje a abordagem mudou. Embora a preocupação em torno dos riscos do uso da radiação para gerar eletricidade ainda seja forte, a energia nuclear ganhou um espaço privilegiado no contexto das mudanças climáticas. "O aquecimento global redimiu a energia nuclear", diz Senra. Os alunos parecem concordar e entender o porquê: a fonte nuclear só perde em emissão de carbono para a hidrelétrica, considerada a mais limpa. Além disso, segundo o professor, que coordena o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Reatores Nucleares Inovadores, o conhecimento sobre segurança das usinas avançou, o que ajuda a derrubar algumas falsas verdades, como conta nesta entrevista.

O Globo:Qual o objetivo do Instituto?

Aquilino Senra: Formar profissionais para trabalhar com energia nuclear, realizar estudos e pesquisas na área e informar a sociedade sobre as aplicações deste tipo de energia, já que ainda há mitos em relação ao seu uso.

O Globo: Que mitos são esses?

Senra:O primeiro é o do uso para destruição em massa. O segundo tem a ver com a segurança das usinas, por cauda de dois acidentes que aconteceram: um nos Estados Unidos, em 1969, e o outro em Chernobyl, na Rússia, nos anos 80. O terceiro mito é dos riscos de contaminação pelo rejeito nuclear.

O Globo:Como o senhor derruba o primeiro mito?

Senra: Não derrubo ainda. A energia nuclear foi conhecida pela humanidade com a Bomba de Hiroshima. Isso ficou no imaginário social. De lá para cá houve um investimento dos países no uso pacífico da energia nuclear. Os primeiros reatores são de 1956. Hoje há 440 usinas em todo o mundo e o que existe é um olhar mais atento em relação ao uso bélico. Isso é um avanço. É preciso deixar claro que uma coisa é questão política da energia nuclear e a outra é o seu uso técnico.

O Globo: E em relação à segurança das usinas, o que foi feito desde então?

Senra: O conhecimento sobre segurança avançou muito. Há sistemas de controles computadorizados, que antes não havia. Após os acidentes foram criados novos reatores que consomem menos combustíveis e produzem menos rejeitos radioativos. Com isso, há menos probabilidade de haver o derretimento do núcleo do reator, razão dos acidentes nos Estados Unidos e Rússia. Esses reatores é que são chamados de inovadores. Além disso, as usinas são feitas com o prédio de contenção, como há em Angra I, que não deixa a radiação escapar.

O Globo: Mas e o rejeito radioativo, que é uma ameaça ao meio ambiente?

Senra: O mundo tem dois reservatórios: na Finlândia e nos Estados Unidos. Acho isso problemático, pois cada país tem que dar fim a seus resíduos. De qualquer forma, já há outras soluções. É possível hoje reaproveitar o rejeito radioativo, ou seja, reutilizar o urânio mais "empobrecido" do reator para gerar energia em usinas menos potentes. A Coreia faz isso. Ela tem 19 reatores nucleares e reutiliza o rejeito de um para o outro. Outra solução, mais definitiva, foi dada por um cientista italiano, Prêmio Nobel, que criou um mecanismo de incinerar o rejeito nuclear dentro do reator. O processo reduz a emissão de radioatividade dos rejeitos dos atuais dez mil anos para 250 anos. Ainda seria necessário o reservatório para guardá-los, mas agora por um período menor.

O Globo: Já existem usinas operando com esta tecnologia?

Senra: Não. Há três protótipos de reatores em experiência. Um nos Estados Unidos e os outros dois no Japão e na França. Em cerca de 20 anos imagino que poderemos contar com a tecnologia.

O Globo: Por que o senhor diz que o aquecimento global redimiu a energia nuclear?

Senra:Porque a energia nuclear, depois da hidrelétrica, é a mais limpa. Emite menos gases de efeito estufa mesmo considerando todo o ciclo produtivo. No contexto das mudanças climáticas isso é uma vantagem.

O Globo: E em relação às fontes alternativas, qual a vantagem da energia nuclear?

Senra: Emite menos carbono do que as fontes solar e eólica. Mas a principal vantagem tem a ver com o custo. O Brasil não detém a tecnologia de produção dessas duas fontes. Para se ter uma ideia, para fazer uma turbina eólica é preciso estudos sobre os ventos. Ainda não temos. Cada país tem um movimento de ventos diferente. Isso quer dizer que uma hélice alemã é compatível com o tipo de vento na Alemanha. Portanto, não basta importar a turbina, é preciso realizar os estudos. Em relação à energia nuclear, conhecemos todo o processo e ainda temos as fontes de matéria-prima. Há três países assim no mundo: Estados Unidos, Brasil e Rússia. Não vejo razão para o Brasil não investir.

O Globo: E o custo social da implantação de uma usina nuclear?

Senra: É pequeno se comparado à hidrelétrica, que provoca um impacto em populações inteiras de cidades. A usina nuclear ocupa pouco espaço e a longo prazo tem o custo diluído. A hidrelétrica, justamente por conta do impacto social, acaba tendo um custo que aumenta com o tempo e que não é contabilizado porque é intangível.

O Globo: Que usos a favor do meio ambiente a energia nuclear pode ter?

Senra: O mundo vive um crise de oferta de água.
O vapor que sai dos reatores nucleares pode ser usado para dessalinizar a água do mar. O processo, que é caro pelo método convencional, fica mais barato porque será combinado com a geração de energia. A tecnologia já é conhecida e pode ser usada. Da mesma forma, é possível produzir nas usinas hidrogênio, que tem sido pesquisado como um combustível alternativo e mais limpo para o setor de transporte.

O Globo: O físico inglês James Lovelock no livro "Gaia, alerta final" fala da energia nuclear sendo usada para sintetizar alimentos em uma eventual crise de abastecimento. Isso é possível?

Senra: Ainda acho distante da realidade. O que se faz em termos de alimentos é usar a radiação para conservá-los.

O Globo: Porque o Brasil deve investir em energia nuclear?

Senra: Para dar diversidade à matriz energética, contribuir para redução dos gases de efeito estufa e dar estabilidade à rede de transmissão. A energia nuclear é mais estável que a hidrelétrica.
A usina é menor e pode ser instalada próximo a grande centros, como a de Angra.

O Globo: E os rejeitos?

Senra: Durante todo o tempo que a usina funciona, são guardados num reservatório próximo. Quando a usina pára de funcionar, em cerca de 60 anos, segue para um depósito permanente. Para o licenciamento de Angra III, o Brasil já se comprometeu a construir um depósito em local ainda a ser resolvido.

O Globo: Qual o potencial brasileiro para o uso de energia nuclear?

Senra: A matriz energética prevê de 5% dependendo do crescimento do país. Isso quer dizer que até 2030 podemos ter em torno de oito usinas nucleares. Algumas devem ser construídas com os reatores inovadores que já falei.

O Globo:Energia nuclear é sustentável?

Senra:Todo tipo de energia gera algum impacto.
Do ponto de vista ambiental ela sempre foi vista como a maldita, mas o histórico dela não é de agressão ao meio ambiente. O problema são os rejeitos e os acidentes. Mas, como disse, temos conhecimento suficiente para tratar rejeitos e construir usinas seguras. Economicamente ela se torna barata com o tempo. E o custo social é pequeno se comparado à hidrelétrica.

O Globo, 19/10/2010, Razão Social, p. 4-5

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