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O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro começa a tornar público, na internet, seu trabalho de consolidação do

Folha de S. Paulo-São Paulo-SP
Autor: Rafael Cariello
21 de Ago de 2005

perspectivismo ameríndio, que subverte e questiona a filosofia ocidental
O espelho do ocidente

Foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss, é claro, quem melhor deu conta da revolução que vem ocorrendo no terreno do pensamento que ele ajudou a demarcar: "Quer nos regozijemos, quer nos inquietemos, a filosofia está novamente no centro do palco antropológico. Não mais a nossa filosofia, aquela de que minha geração queria se livrar com a ajuda dos povos exóticos; mas, em uma notável reviravolta, a deles".
O principal responsável pela façanha que Lévi-Strauss descreve, Eduardo Viveiros de Castro, professor do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, há pelo menos três anos prometia um texto -em forma de livro- que sistematizasse e desenvolvesse as idéias que ele vem apresentando em artigos desde meados da década de 90.
Mudou de idéia. Após escrever mais de 600 páginas, decidiu que a melhor maneira de dar continuidade ao seu pensamento seria colocá-lo à disposição de outras contribuições, que modificassem seu texto e construíssem uma obra coletiva, usando uma página na internet que permite o acesso e a intervenção de quem quiser nos trechos que ele leva à rede, no site do "Projeto AmaZone".
No que já se pode ler no endereço virtual -em funcionamento há cerca de três meses-, o antropólogo busca "fundamentar melhor" sua tese. "Você sempre começa a pensar de maneira um pouco brutal", diz.
Na entrevista que concedeu à Folha em sua casa, no Rio, Viveiros de Castro explica os avanços e a "embocadura" filosófica que sua teoria, o perspectivismo ameríndio, ganha com a nova obra virtual. Questiona as distinções entre mito e filosofia e apresenta uma compreensão da realidade por parte dos índios radicalmente diferente daquela dos herdeiros da tradição ocidental -que termina por subverter os fundamentos do pensamento filosófico, como os conceitos de sujeito e objeto, Deus, cultura e natureza.
Daí que um dos colaboradores do AmaZone, Oscar Calavia, professor da Universidade Federal de Santa Catarina, chegue a defender que a modernidade ocidental possa ser pensada como o resultado de controles e restrições a uma visão de mundo perspectivista, próxima à dos índios, que também já teve seu espaço entre os europeus.

Para o perspectivismo, "bicho é gente"
DA REDAÇÃO
"Bicho é gente." Essa é a frase síntese, dita pelos índios e ouvida pelos antropólogos, do perspectivismo ameríndio -que expressa uma idéia presente, de uma forma ou de outra, em quase todos os povos indígenas da América.
Ao traduzir essa informação em termos antropológicos, a teoria desenvolvida por Eduardo Viveiros de Castro e seus colegas defende que tudo se dá como se os índios pensassem o mundo de forma inversa à nossa, se consideradas as concepções de "natureza" e "cultura".
Enquanto o pensamento ocidental teria como chão a idéia de que a natureza é universal e as culturas são particulares (há um só mundo e muitas formas de vivê-lo), para vários povos do continente americano haveria apenas uma cultura, ou uma "relação" primordial, e naturezas particulares dependendo do ponto de vista do observador.
Homens e animais seriam sempre gente, sujeitos dessa cultura/relação geral. Ou seja, todos os animais, para os índios, experimentam (ou experimentaram) os mesmos hábitos: seu alimento -os vermes da carne podre para os urubus, o sangue para os jaguares- é sempre peixe ou cauim, por exemplo; suas relações de grupo são sempre sociais, com ritos, chefes e regras de casamento.
Não é que verme é "como se fosse" peixe para o urubu; ele deve ser visto de fato como tal.
Uma só maneira de ser sujeito -em suas relações com predadores e presas, em suas relações sociais com seus semelhantes-, e portanto seres que mudam de natureza dependendo da relação em que estão inseridos. Animais predadores e espíritos, por exemplo, vêem os humanos como "animais-presas", enquanto a caça vê os humanos como animais predadores ou espíritos. Ao nos verem como não-humanos, os animais vêem a si mesmos como humanos.

A filosofia canibal
DA REDAÇÃO
O perspectivismo ameríndio coloca em questão sujeito e substância, fundamentos da ortodoxia filosófica na tradição ocidental. Segundo Eduardo Viveiros de Castro, o modo de pensar a realidade dos índios privilegia a relação, anterior a sujeitos e coisas, que não existem a priori.
De fato, no parentesco, essas "coisas" chamadas cunhado, genro, sogro nunca são em si mesmas, não existem a priori, mas só ganham existência na relação -filho, pai, sobrinho são posições em relações que preexistem aos sujeitos. Domesticada no Ocidente, a relação extrapola os limites do parentesco no pensamento indígena, e distribui as cartas da realidade.
A seguir, trechos da primeira parte da entrevista.
Folha - É correto dizer que, no perspectivismo, sujeitos e coisas não existem por si mesmos, mas sempre a partir da relação em que estão inseridos?
Eduardo Viveiros de Castro - Sem dúvida. A idéia básica que está por trás da caracterização do pensamento ameríndio por meio dessa palavra, perspectivismo, que foi raptada do vocabulário filosófico ocidental, é que a relação vem antes da substância e, portanto, os sujeitos e os objetos são antes de mais nada efeitos das relações em que estão localizados e assim se definem, redefinem, se produzem e se destroem na medida em que as relações que os constituem mudam.
Não que não haja substância, pelo contrário, mas aqui ela é o problema, e as relações, ao contrário, são aquilo que é dado. Enquanto que nós, de certa maneira, na tradição conceitual ocidental, tenderíamos a imaginar as substâncias como dadas, e as relações como sendo construídas e adicionadas pelo sujeito, em sua função cognoscente. É como se conhecer, para nós, fosse relacionar, e as substâncias, ao contrário, fossem aquilo que já existe, que está dado e que cabe ao espírito pôr em relação. O problema ameríndio é justamente partir dessa relação universal e dela produzir conceitualmente as coisas.
Folha - Essa relação tem sempre a mesma forma? É primordialmente humana?
Viveiros de Castro - Não sei se eu formularia nesses termos. Eu diria que a humanidade é o nome de uma relação, que é a relação reflexiva, em que todo ente vai se perceber a si mesmo como humano. A humanidade é menos o nome de uma substância e muito mais um tipo de relação que todo ente tem consigo mesmo. Isso é, numa linguagem empolada, algo que os índios formulam de maneira muito mais direta quando nos falam, em português, que "todo bicho é gente".
Significa que toda espécie vê a si mesma como humana. Significa que o que é humano é o "se ver", muito mais do que aquilo que se está vendo. É o pronome reflexivo que define a humanidade. Ao se ver, todo sujeito vê-se como humano. Nesse sentido a humanidade também é uma relação. Essa é a relação universal por excelência? Não sei dizer. Acho que é uma das relações. Diria até que a relação primordial no mundo ameríndio é a de incorporação, ou, para usar uma linguagem mais concreta, a relação de predação e de incorporação canibal. O canibalismo como modo esquemático, o esquema fundamental nesse mundo. Brinco, fazendo um trocadilho, que, se nosso esquema fundamental de relação sujeito-objeto, na filosofia ocidental, é a predicação -"A é B"-, no mundo ameríndio, é a predação -"A come B".
Folha - E como isso funciona?
Viveiros de Castro - Toda linguagem conceitual tem um pano de fundo, um solo, de intuição sensível. Está radicada em determinado tipo de experiência concreta do mundo. O fundo experiencial básico da cultura indígena é a intuição da cadeia alimentar e a experiência da necessidade que possui todo organismo, e dramaticamente o animal, de ingerir, incorporar, de comer para viver. Essa relação de incorporação é uma experiência primordial no pensamento indígena e serve de modelo sensível pra uma quantidade de esquemas mais abstratos.
Assim como se poderia dizer que um dos esquemas sensíveis da nossa tradição cultural é o da produção, da imposição de uma forma. O modelo do ceramista, do oleiro, do escultor. No mundo indígena há esquematismos básicos que são de outra ordem. A questão ali é saber onde você está no circuito universal da predação. É como se houvesse três posições lógicas fundamentais: predador, presa e congênere -aquele que não é nem predador nem presa. Os que comem comigo, aqueles que me comem e aqueles que eu como.
Folha - Por que se privilegia essa forma "predatória" de compreensão do mundo?
Viveiros de Castro - O modo econômico, digamos, intelectualmente privilegiado pelos índios é a caça; são caçadores, não no sentido empírico, já que a maioria das sociedades indígenas é horticultora, mas seu modo de estar no mundo é um modo de caçadores.
Um pouco como se pode imaginar que o mundo antigo ocidental é um mundo de pastores. O papa é um bom pastor, Deus é o pastor; esse modo de conceber essa relação com o mundo animal é profundamente radicado em nossa tradição cultural. No mundo indígena, o equivalente disso é a atitude do caçador. É um mundo que tem como fundamental a necessidade de pensar a presa, caso contrário você não a pega.
No nosso modelo, o outro é a ovelha, são os cordeiros, o rebanho. Há uma enorme diferença entre o nosso mundo de pastores, onde a domesticação, o controle, a vigilância e a boa administração do rebanho definem nossas categorias políticas fundamentais (governar é pastorear), e esse outro mundo, o indígena, de caçadores que tentam pensar o que o outro pensa. Essa necessidade intelectual de se colocar no ponto de vista do outro.
Folha - Por que, tendo escrito os artigos, o sr. achou necessário começar a trabalhar nesse livro?
Viveiros de Castro - Em "A Inconstância da Alma Selvagem" [Cosacnaify] há dois ensaios que são talvez os mais importantes, os mais recentes. Um é uma recriação de um artigo publicado seis anos antes, "O Perspectivismo e os Pronomes Cosmológicos", que é o ensaio onde formulo de maneira esquemática essa idéia de uma cosmologia pan-ameríndia. A teoria do perspectivismo ameríndio. O segundo é um ensaio sobre a organização social indígena. Na verdade, é uma tentativa de encontrar o correlato sociológico, nas relações sociais indígenas, da cosmologia do perspectivismo.
O grande esquema sociológico dos mitos ocidentais é o da paternidade: Jeová, Cronos, Zeus, Édipo, Prometeu. A tensão crítica que produz o dinamismo do mito é o conflito entre pais e filhos. No mundo indígena, as relações de maternidade e paternidade estão presentes, mas as grandes figuras míticas são aliados matrimoniais: sogros, genros, cunhados. O herói europeu do mito rouba o fogo de uma figura paterna. O herói típico dos mitos ameríndios rouba o fogo de um sogro animal. Essa diferença na origem da fonte da cultura humana, entre tomá-la de um deus-pai ou de um sogro-onça (e lembremos que os sogros são freqüentemente tios no parentesco indígena: "meu tio o iauaretê"), é o que tentei explorar nesse artigo sobre os correlatos sociológicos do perspectivismo.
Nossa concepção da relação é fundada na idéia de compartilhamento de algo em comum. O modelo disso é a relação de fraternidade. Os irmãos são aqueles que se definem por terem a mesma relação com um terceiro termo, o pai (ou os pais), compartilhamento que faz com que exista uma relação. Todos os homens são irmãos. A sociedade é uma espécie de grande fraternidade. O laço social é um compartilhamento de uma semelhança fundamental.
No mundo indígena, se pode dizer que todos os homens são cunhados. Eles estão ligados precisamente por não terem a mesma relação com aquilo que os relaciona. Só existe a relação na medida em que não se está na mesma relação com o termo de ligação. A relação é fundada por causa das diferenças, e não a despeito delas. O que vai definir a troca matrimonial é a idéia de que um mesmo terceiro, a mulher, é visto de maneiras diametralmente opostas pelos elementos da relação, o marido e o irmão. As pessoas se ligam na medida em que ocupam posições diferentes perante outrem.
Se o nosso modelo da relação é a semelhança, ao ponto de que a diferença é apenas uma falta de semelhança -a identidade é primeira- , a verdadeira relação para nós, então, é a relação do sujeito consigo mesmo. Meu irmão já é um "eu-mesmo" de segunda classe, um "outro eu". Dali para frente, estendem-se relações de terceira classe, ou de quarta, e assim vai, até se chegar às trevas exteriores da inimizade e da não-relacionalidade.
Inversamente, no mundo indígena, a identidade é que é uma ausência de diferença, e não a diferença uma ausência de identidade. A primeira relação é a relação de diferença. Se para nós o cunhado é um irmão de segunda classe ("brother-in-law", "beau-frère"), no mundo indígena o irmão é que seria um cunhado domesticado, um cunhado de quem se esvaziou a diferença. A fraternidade é o fim da relacionalidade, não sua origem.
E você me perguntou como é que isso levou à idéia de escrever o livro. Eu escrevi esses dois artigos e senti necessidade de dar mais materiais etnográficos, materiais empíricos, que pudessem fundamentar melhor a tese -você sempre começa a pensar de maneira um pouco brutal. A segunda coisa foi essa idéia de tentar reforçar organicamente as relações entre uma determinada cosmologia e uma determinada sociologia. Entre uma determinada concepção das relações do homem com o mundo e uma determinada concepção das relações dos homens "entre si", e assim evidenciar a conexão absolutamente fundamental entre esses dois aspectos.
Porque, se na cosmologia indígena tudo é humano, tudo é social, é a própria noção de sociedade que tem que ser repensada, a própria distinção entre cosmologia e sociologia que tem de ser dissolvida, neste mundo em que todo vínculo é um vínculo intra-humano e toda diferença é uma diferença social.

Um texto sem fim
DA REDAÇÃO
A seguir, o professor do Museu Nacional explica como o projeto de um livro que já acumulava 600 páginas escritas se transformou num texto coletivo abrigado numa página da internet -num modelo de colaboração que, segundo ele, reflete melhor a criação acadêmica. "Toda produção intelectual é um processo em que se passa 95% do tempo falando a partir do que outros falaram."
Quem entra na página ( amazone.wikicities.com/wiki/Projeto_AmaZone) pode ler e, se quiser, modificar o texto livremente para, por sua vez, ter sua própria modificação também modificada, aceita ou rejeitada.
A obra de múltipla autoria funciona, ainda experimentalmente, há cerca de três meses -e conta com a colaboração de um grupo crescente de cientistas sociais- a partir do "texto-piloto", um dos capítulos do livro de autoria individual que se chamaria "A Onça e a Diferença".
Folha - Por quê transpor a obra para a internet?
Eduardo Viveiros de Castro - Já estou arrastando o rascunho desse livro desde quando publiquei o primeiro, em 2002. Comecei então a escrever a monografia sobre o perspectivismo, "A Onça e a Diferença", uma brincadeira com a aliteração sonora e com o conceito do [filósofo francês Jacques] Derrida "différance", que é difícil de traduzir e que já brinquei que, em tupinambá, seria "diferonça". Comecei a acumular anotações, notas e textos de conferências, citações e referências, criando um palimpsesto de 600 páginas, que eu não tinha coragem de arrumar e botar na rua. Foi quando tive a idéia de, em vez de publicar mais um livro solo, fazer um texto que refletisse melhor seu próprio regime de produção.
Toda produção intelectual, na verdade, é um processo em que se passa 95% do tempo falando a partir do que outros falaram, sejam os índios com quem conversamos, sejam colegas que escreveram. É uma situação borgeana em que se está sempre dentro de bibliotecas, escritas ou orais. Isso, na verdade, não aparece muito nos textos, por mais que o autor saiba disso. Os livros são autorados por uma única pessoa, têm começo e fim físicos, e fica por aí.
Quando comecei a acompanhar essas mudanças no regime de produção e de autoração e de apropriação intelectual usando os meios eletrônicos, comecei a divisar a possibilidade de que o regime coletivo que já existe fosse mais explicitado, num "livro" que fosse escrito por muitas pessoas ao mesmo tempo.
Uso uma dessas novas ferramentas, o "wiki", que é um tipo de website em que toda pessoa que acessa pode mudar o conteúdo do que lê e todas as outras pessoas que acessam podem ver essa modificação. Assim, não sou mais só eu que escrevo e não preciso colocar um ponto final. Todo livro tem como aspecto, por assim dizer, triste o fato de ser uma obra fechada, que uma vez publicada não pode incorporar a reação das pessoas.
Um texto eletrônico colaborativo está sempre sendo reeditado a partir das reações que ele suscita nas pessoas que vão entrando e que acabam assumindo um pouco da autoria também. Esse texto também é perspectivista, já que está interessado em como as diferentes perspectivas se conectam nesse processo de autoria múltipla. Decidi assim deixar o livro na geladeira por um tempo e iniciar um objeto em que minha participação é uma entre outras. Parafraseando a idéia indígena de que, se tudo é humano, então o ser humano não é tão especial assim, eu diria que então, se todos são autores, o autor não é tão especial assim. Especial é o texto.
Folha - As modificações ficam marcadas ou tudo se incorpora?
Viveiros de Castro - O princípio do "wiki" é de que é muito fácil modificar o que se lê, é fácil acrescentar textos mas também é muito fácil tirar. É fácil entrar e é fácil sair. É fácil também identificar quem mudou o quê, saber quem escreveu isso, aquilo. De alguma maneira as modificações são julgadas pelo resto da comunidade, essa multiplicidade virtual das pessoas que entram. Se as pessoas acham a modificação correta, ela vai ficando. Se elas acham ela inútil, ou nociva, vai ser retirada por alguém, que não precisa ser o administrador.
Folha - E quando isso começou?
Viveiros de Castro -Tem pouco tempo, dois ou três meses. As pessoas são tímidas -felizmente. São muito mais gentis e respeitadoras do texto alheio do que a gente imagina, mas aos poucos a coisa está embalando, e meu próprio aporte inicial vai se diluindo num palimpsesto de aportes, se tornando um texto de fato com multiplicidade autoral.
Folha - Dessas 600 páginas de seu aporte, quanto já entrou? Há um planejamento de como vai ser feita sua contribuição?
Viveiros de Castro - Tem pouca coisa. Por enquanto ainda tem muito a minha cara, por questões históricas, a maior parte dos textos que estão lá dentro fui eu que escrevi, mas cada vez tem mais gente participando e em algum momento indefinível vai ter virado um autor múltiplo.
Coloquei até agora um capítulo, de 30 a 40 páginas, daquele grande rascunho de 600. Minha idéia é ir inserindo pouco a pouco, mas sem me arriscar a prever uma velocidade, um ritmo.

O legado de Deus
DA REDAÇÃO
Levar o que os índios dizem sobre o mundo em seus mitos até suas últimas conseqüências lógicas significa, diz Viveiros de Castro, romper com a idéia ocidental de que há várias culturas e uma só natureza, sobre a qual a ciência teria acesso privilegiado.
Essa concepção de uma natureza única, unificada, defende o antropólogo, é a decorrência, no lado da criatura, da crença em um Deus único e criador. "A noção de natureza, tal como ela funciona dentro da cultura científica contemporânea" é "o resultado histórico de Deus".
Folha - Falar numa filosofia dos índios é dizer que eles são conscientes do conteúdo dos mitos?
Eduardo Viveiros de Castro - Na verdade, estou interessado no solo pré-filosófico, nas intuições inaugurais do pensamento indígena. Toda conceitualidade está enraizada num solo pré-conceitual de intuições e experiências fundamentais do pensamento humano. Estou interessado em construir, projetar uma conceitualidade que corresponda a esse solo pré-conceitual indígena. Pensar qual filosofia seria construída se os índios tivessem tempo e interesse em fazê-la (e que espero venham a fazer). Qual é a conceitualidade virtual que está contida na experiência, radicalmente diversa da nossa, dos povos ameríndios?
Folha - Mas é só virtual? Ela não se atualiza no mito?
Viveiros de Castro - Não é só virtual, ela se atualiza no mito, mas certamente que o mito não é uma teoria lógica, com axiomas, proposições etc. A primeira coisa que tenho como questão é tentar repensar a noção de mito. Porque o mito é uma noção filosófica. Mito é uma noção criada pelos filósofos. É a filosofia que se constitui contraproduzindo um não-filosófico, que seria o mito. É o discurso do "logos", da razão, contra o "muthos", o mito, discurso supostamente da não-razão, da revelação oracular, da autoridade mágica, fala monológica e monocrática, enquanto a filosofia seria argumentativa, dialógica, democrática, política. Esse é o "mito" de origem da razão como se distinguindo do mito.
Vai junto com isso uma idéia curiosa -mas compartilhada igualmente por filósofos e antropólogos- de que a filosofia é uma característica do Ocidente. Ela tem carteira de identidade, certidão de nascimento, paisagem natal, berço -Grécia, a pólis, por volta do século 5o. É essencialmente dali e desde então. Ao passo que o mito, ao contrário, seria consubstancial ao pensamento humano. O mito é de todos (por isso não vale muito); a razão, só de alguns (por isso é tão preciosa). O mito teria surgido com o homem; a filosofia com os gregos. E os ocidentais somos gregos.
Eu duvido dessa idéia. De que o conceito de mito produzido pela filosofia grega possa ser transportado tal qual para caracterizar todos os "mitos" de todos os povos. Diria o seguinte: se a filosofia grega produziu um conceito filosófico (e negativo) de mito, eu quero saber qual é o conceito (positivo) de filosofia que o mito ameríndio produziria.
Folha - Dá para dizer que é justamente isso que o conceito de mito na filosofia sempre proibia? Não é como se ela (nós) dissesse sempre do mito (os outros): "Eles não sabem o que dizem"?
Viveiros de Castro - Sim... Nós sabemos que eles não sabem: perdoai-os, senhores...
Folha - A própria antropologia faz seu caminho por aí. Como se dissesse: "Há uma lógica nesse mito desses primitivos, que maravilha, mas..."
Viveiros de Castro - Ela [essa lógica] lhes escaparia, esse é o argumento-condição. Essa idéia de que os homens não sabem o que dizem quando contam os mitos, não é que ela seja falsa, o problema é que ela não é geral o suficiente. É verdade, mas os homens não sabem o que dizem quando contam qualquer coisa, inclusive os filósofos e os antropólogos. Dizer que o mito exprime mais o inconsciente do que o exprime a filosofia -me parece que esse é o problema. Eu quero ver o contrário: o que é que os índios querem dizer quando contam os mitos, e não o que dizem "sem querer" quando os contam. Quero saber o que os mitos dizem para eles (e não apenas para nós) sobre o mundo, e não apenas sobre os homens que os contam -porque os mitos falam do mundo e das coisas, é o que lhes interessa, então é o que me interessa.
Folha - E sobre o mundo inclusive nesses registros: teoria do conhecimento, ontologia?
Viveiros de Castro - Ontologias, por favor, no plural deliberadamente provocativo. Você pode falar de epistemologias no plural, como se fala de culturas no plural, mas "ontologia" é como "natureza", só tem uma: é a Realidade, com "r" maiúsculo, e essa não tem plural. Não há ontologias, só há uma realidade, e o discurso ontológico é o discurso do Um. Ora, eu quero saber como funcionaria o conceito de ontologia dos "multiversos" sem Um das cosmologias indígenas.
Folha - Daí o sr. dizer que a própria palavra "ontologia", sendo uma provocação, tem um problema, porque o Ser não é o modelo, mas o Haver?
Viveiros de Castro - Evoquei aí uma passagem particularmente curiosa de um pensador [francês] hoje obscuro, mas que está sendo redescoberto, que é Gabriel Tarde [1843-1904]. Há um ensaio em que ele diz que o problema da filosofia ocidental é o problema do verbo "ser", que é um verbo solipsista, intransitivo. Se tivéssemos começado com o "haver" -o "avoir", que é o "ter" ou "haver", em francês-, em vez de com o "ser", uma porção de dificuldades teriam sido evitadas. Quando você diz ser, "eu sou", você não diz mais nada. Quando você diz "eu tenho", coloca imediatamente a questão: tenho o quê? Pode-se ser sem mais (é mesmo o modo eminente de ser), mas não se pode ter-haver sem ter alguma coisa. E portanto com o Haver o outro já está dado. O ter coloca imediatamente a multiplicidade, enquanto o ser coloca apenas o eu, perdido, isolado -que tem que dar um pulo enorme para chegar ao outro. Tarde dizia então que o "haver" daria uma metafísica mais interessante. Mas mesmo assim uso a palavra "ontologia" para brecar uma manobra freqüentemente usada contra o pensamento indígena -de que aquilo é uma fantasia, uma representação que não diz respeito à Realidade, algo sobre o qual apenas a ciência tem acesso.
O jogo é sempre de dois contra um. Temos a natureza e a cultura, eles têm só a cultura. Eles vêem as coisas por meio de lentes culturais, e a natureza deles é uma fantasia cultural. Nós temos a nossa cultura, temos nossas lentes mas também temos a nossa natureza, que é independente dela. Para evitar isso, falo em ontologia, para enfatizar a noção de realidade, de produção de realidade que o pensamento indígena possui.
Folha - Dá a impressão que tudo aí é parentesco.
Viveiros de Castro - Parentesco é a palavra que damos na nossa tradição para a relacionalidade fundamental, digamos assim, a base fundamental da relacionalidade humana. É do parentesco que saem todas as nossas metáforas da relação: a paternidade, a fraternidade, a terra-mãe, o rei-pai, o patrão, o padrinho, o padroeiro, Adão, o genoma.
E quando você chega diante de sociedades para as quais tudo é relação social, você fica com a impressão de que tudo, inclusive o que nós mandaríamos para o departamento de física ou de zoologia, é questão de parentesco.
Folha - No texto do AmaZone o sr. trata de Deus, de como ele continuou entre nós depois de sua "morte", e de como nunca esteve entre os índios, e de sua relação com essas duas formas distintas de pensamento.
Viveiros de Castro - Entendo a noção de natureza, tal como ela funciona dentro da cultura científica contemporânea, como o resultado histórico de Deus. É preciso que tenha havido um grande Um Só do lado "de lá", da sobrenatureza, para que a natureza "do lado de cá" pudesse se constituir como unidade. A distinção entre criador e criatura, que foi fundamental na nossa tradição, constitui o universo, o mundo da criatura, como um mundo unificado, a natureza.
Num mundo que nunca teve Deus, você tampouco terá essa natureza una, unificada, e racionalizada. A ciência é filha do monoteísmo. Os politeísmos ou, mais ainda, os "poliateísmos" indígenas projetam multi-versos, eles são refratários à idéia de um uni-verso, precisamente, que correspondesse a um Criador. De fato, Deus desapareceu da ideologia dominante, da ideologia científica, mas é porque no fundo ele não precisa mais estar aí. Sua missão está cumprida, do ponto de vista histórico-filosófico: ele constituiu a natureza como domínio do cognoscível, do racionalizável, a natureza una, total e transcendente.

A domesticação das criaturas
Oscar Calavia
Especial para a Folha
A realidade é isso que podemos ver; mas talvez não tenha sido sempre assim. Um estudo clássico de Erwin Panofsky [historiador da arte alemão, 1892-1968] ("A Perspectiva como Forma Simbólica", publicado em 1927) descreve como os pintores do Renascimento aprenderam a representá-la em relevo, tal como ela é, ou tal como ela é vista a olho nu. Aprenderam a representar ou ensinaram a ver? Essa mimese, inspirada nos avanços da ótica e nas linhas de fuga da arquitetura, foi uma novidade no seu momento.
A pintura do mundo greco-romano e da Idade Média sabia dar volume aos corpos e às vezes dotava de profundidade as paisagens, mas não conseguia integrar uns e outras; nela, o tamanho era um atributo da personagem e não um índice de sua situação no espaço; o espaço em si não passava de um suporte sobre o qual se acumulavam as figuras. O livro de Panofsky trata de uma façanha artística mas também nos põe na pista de uma mudança mais profunda.
A suposta falta de realismo dos pintores primitivos -como a de outros primitivos, alhures e outrora-, devia-se menos a uma deficiência técnica do que a uma diferença intelectual. Eles também pintavam as coisas como elas eram, mas tinham uma opinião diferente sobre o ser.
Sem atentar à extensão, registravam com minúcia os corpos, mais interessados na sua intensividade; entendiam suas obras -em geral destinadas a um uso cultual-, como seres substanciais, e não como simulacros de realidade. A perspectiva naturalista, com seu modo ilusionista de ordenar objetos no espaço, só é possível desde que o mundo seja percebido como uma "res extensa" unificada, que engloba os corpos e suas diferenças, uma natureza adequadamente objetiva e inerte sob o olhar de Deus.
A noção podia ser antiga -procede, no mínimo, da hiléia aristotélica-, mas seu prestígio era novo, e não pode se dizer que se devesse às especulações dos filósofos. Sim, talvez, à teima de todos esses obscuros disciplinadores de consciências -evangelizadores, párocos, inquisidores- que desde a oficialização do cristianismo tinham se dedicado a uma labuta gradual e persistente de dessubjetivação do mundo: animais, árvores, bosques, fontes, pedras podiam, até então, ser agentes por virtude própria ou como moradias de um espírito. O cristianismo foi fazendo deles objetos brutos, cuja eventual atividade só poderia emanar da única força ativa, a do Deus único.
O mesmo destino correspondia, evidentemente, aos deuses da Antigüidade, ídolos feitos de pau ou pedra, bonecos pintados. Durante séculos, num processo que se repetirá mil anos mais tarde com a evangelização das Américas, o cristianismo se empenha em eliminar esses outros sujeitos, ou pelo menos em cooptá-los sob a forma de algumas das figuras sagradas do novo panteão, os santos e as santas virgens que a teologia, à revelia da devoção popular, reduzia a caudatários de Deus. Pelo menos até que fosse possível -como no caso do protestantismo- suprimi-los definitivamente, para não deixar nada entre Deus e o fiel. Ou, em outros termos, entre a consciência humana (uma franquia da subjetividade divina) e a natureza material.
O declínio da magia, como mostrou Keith Thomas [autor de "Religião e o Declínio da Magia" (Cia. das Letras)], é executado por um desígnio religioso. Pouco restou para o século das Luzes além de trocar alguns nomes (sai Deus, entra a "Razão", por exemplo) em um mundo que a religião já havia ordenado de acordo com grandes categorias ainda hoje em vigor.
Não é por acaso que a invenção da perspectiva seja contemporânea dos episódios de caça às bruxas que grassam pela Europa dos séculos 16 e 17. A "witch-craze", como se sabe, acendeu muitas fogueiras, produziu copiosos sofrimentos e um debate intenso entre aqueles que entendiam a bruxaria e seus feitos (as metamorfoses, os vôos mágicos ao "sabbath", o canibalismo ritual etc.) como reais, e aqueles que os desconsideravam como desvarios, enganos, ilusões induzidas pela fraqueza física ou moral e, sobretudo, pela pregação irresponsável dos próprios caçadores de bruxas.
Toda essa interpretação racionalista, afinal vitoriosa, não fez senão reavivar a que durante séculos havia sido a doutrina oficial da igreja, segundo a qual as transformações do feiticeiro em coruja ou em lobo, seus vôos e seus encantamentos -o equivalente europeu da matéria xamânica de outras terras- só podiam ser ilusões produzidas pelo demônio, e não manifestações de um poder efetivo.
Depois de séculos de evangelização, o Diabo era a única exceção ao monopólio divino da subjetividade: nunca um páreo para Deus, mas autônomo o bastante para arcar com o ônus do mal. Suas dimensões tinham crescido em paralelo às de Deus: não era mais um espírito entre outros, mas o outro "Sujeito" do mundo; seus seguidores não podiam mais ser bruxos autônomos, mas uma seita diabólica organizada, uma contra-igreja com suas hierarquias, regras e dogmas.
A bruxaria do renascimento é uma recapitulação de toda a ontologia pré-cristã ou extra-cristã, pinçada na literatura clássica e no folclore contemporâneo e organizada segundo o padrão monárquico do Estado moderno. Uma contra religião que provavelmente, como demonstram estudos como os de Caro Baroja [antropólogo espanhol, 1914-1995] e [Carlo] Ginzburg [historiador italiano], existiu antes de tudo na mente dos seus perseguidores, para justificar uma solução final do velho animismo.
A caça às bruxas encarnou a quimera de destruir fisicamente um pensamento cujo principal inconveniente era o de ser ainda pensável; uma quimera, aliás, fundadora do mundo moderno, embora o relato edificante do Iluminismo a tenha remanejado para uma Idade Média de costas largas.
Dom Quixote, o romance de Cervantes cuja primeira parte é publicada em 1605, é também um dos fundadores do mundo moderno. De um lado, é um correlato literário da pintura perspectiva, onde a narração absoluta deixa passo a um relato mediado pelos sujeitos que o protagonizam, cada um com seu ponto de vista e sua intenção. De outro, evoca essas cosmologias exóticas em que a realidade visível encobre outras realidades, onde, tipicamente, os moinhos podem ser gigantes, e as onças, sujeitos de outra humanidade sob suas peles pintadas.
O drama do cavaleiro louco é que o ponto de vista individual, herdado de um Deus solitário que começa também a declinar, servirá doravante para contemplar um mundo único. Árido e tacanho, aliás. O seu trunfo, reservado para a segunda parte do livro, que aparecerá dez anos mais tarde, é que esse mundo só é único por consenso ou por imposição. Zombando das loucuras do cavaleiro, os outros personagens vêem-se envolvidos nelas e descobrem à revelia que elas fazem também sentido. Os antropólogos se voltam com freqüência a um exercício desse mesmo teor e descobrem que, um pouco por toda parte, da Itália de Leonardo à Amazônia, pontos de vista diversos podem fundar realidades diversas, e que o paganismo não está tão morto como parece.
A modernidade, filha ingrata do monoteísmo, tentou como ele excluir essas alternativas. Não o conseguiu totalmente -e cada um saberá se deve celebrá-lo ou lamentá-lo- talvez porque o olho humano tenha uma propensão anárquica e nada econômica à pluralidade.
Oscar Calavia é professor no departamento de antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor de "Fantasmas Falados" (Unicamp).

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