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Novos técnicos na área

Radis Comunicação e Saúde n. 153, jun., 2015, p. 14-21
01 de Jun de 2015

Novos técnicos na área
Formação propõe atuação mais ativa de agentes indígenas, e os qualifica como elos entre Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e comunidades

Adriano De Lavor

O público considerável que compareceu à solenidade de formatura organizada no ginásio Arnaldo Coimbra, em São Gabriel da Cachoeira, cidade amazonense situada no extremo noroeste do Brasil, talvez não tivesse noção do longo e árduo caminho que cada um dos 139 concludentes percorreu para chegar até ali. Foram seis anos de desafios para que aqueles homens e mulheres pudessem receber, naquela noite chuvosa de 11 de abril, o título de Técnicos Agentes Comunitários Indígenas de Saúde, formação que fortalece sua capacidade de atuação dentro do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena e os legitima como elo fundamental de ligação entre o SUS e as comunidades onde atuam, na região do Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro (Dsei-RN). Todos eles já trabalhavam como agentes indígenas de saúde (AIS), embora apresentassem diferentes níveis de escolaridade e capacitação técnica. Agora, todos têm certificado de conclusão do ensino médio e da formação técnica em saúde. "Foram muitas noites de insônia, incerteza a ansiedade. Mas não caminhamos sozinhos, juntos descobrimos o mundo, aprendemos e estamos prontos para lutar por uma causa justa, que é a vida e o bem-estar das pessoas", desabafou Jocimara Brandão, oradora da turma do polo de formação Baixo Waupés e Tiquié "Não somos mais estudantes, agora somos técnicos. Tenho certeza que estamos preparados para entender o sofrimento do outro e ajudar", comemorou Dinéia Dávila, falando em nome dos agentes do polo Alto Rio Negro, Baixo Içana e Xié.

Era a segunda cerimônia organizada para marcar a conclusão do curso, desta vez com a presença das famílias, trajes de gala, entrega de certificados, poses para os fotógrafos e para selfies, um bufê variado e farto - cujo cardápio incluiu guloseimas típicas das festas da cidade, como salgados, bolos e refrigerantes, e também iguarias tradicionais da região, com a quinhampira (caldeirada de peixe com pimenta) e as formigas manivaras torradas. Na noite anterior, outra solenidade havia lotado a maloca da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), quando os concludentes homenagearam idealizadores, professores, gestores e apoiadores que contribuíram para a realização do curso. Neste momento, quando parabenizou os novos técnicos, Almerinda Ramos de Lima, presidente da Foirn, elogiou o comprometimento com que os alunos encararam a formação, e os lembrou dos desafios que continuarão a enfrentar em suas jornadas: percorrer longas distâncias, contornar deficiências e superar o desinteresse de alguns gestores. O alerta de Almerinda é compreensível: São Gabriel da Cachoeira é um dos maiores municípios do país em extensão. São mais de 109 mil quilômetros quadrados de território, boa parte ocupado pelo Parque Nacional do Pico da Neblina e por terras indígenas; a área é cortada por rios e igarapés: além das longas distâncias percorridas por vias fluviais e das dificuldades de acesso a algumas das comunidades, a situação de saúde da população indígena é precária, com flagrante deficiência na assistência, ausência de ações de prevenção e promoção à saúde, bem como alta rotatividade de profissionais de saúde que atuam no sistema.
O secretário municipal de Saúde Luiz Lopes, um dos idealizadores do curso e patrono dos formandos, relembrou que a formação surgiu da reivindicação dos próprios agentes, que demandaram em assembleia uma maior qualificação profissional. "O maior desafio deste projeto político-pedagógico, a partir de hoje, é qualificar a atenção básica e melhorar os indicadores da saúde indígena no rio Negro", declarou, lembrando que até hoje não se conseguiu implementar, na região, o princípio da atenção diferenciada. "Hoje, vocês estão mais preparados para a tarefa, respeitando as especificidades culturais e territoriais. O Rio Negro sai na frente com esta iniciativa", comemorou.

Domingos Barreto, coordenador regional da Fundação Nacional do Índio (Funai), classificou o término do curso uma vitória, elogiou a proposta, que considera "ousada e criativa", por colocar em diálogo os conhecimentos indígenas e os saberes ocidentais, mas lamentou a falta de apoio da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) ao projeto: "O Brasil não sabe ouvir as reivindicações dos povos indígenas", criticou.
Coordenadora do curso, a médica Luiza Garnelo, pesquisadora da Fiocruz Amazônia, também registrou "a falta de apreço, solidariedade e apoio da Sesai", reafirmando que o compromisso da equipe de formação era e continuava sendo com as pessoas do Rio Negro, que não desistiram da empreitada. Por outro lado, valorizou a conquista dos novos agentes, agora melhor capacitados para atuar em suas comunidades, aptos para minimizar um problema que se repete em diversos contextos no país, que é a dificuldade de fixar equipes de saúde nos territórios indígenas. Neste sentido, destacou como importantes a conquista da autonomia e o compromisso firmado dos concludentes com as pessoas e os territórios onde atuam, e reiterou a importância de, a partir de sua atuação, o sistema finalmente colocar em prática a atenção diferenciada.
Compromisso e novo olhar
O comprometimento dos novos técnicos se confirmava a cada pequena tarefa que se ocupavam. Radis acompanhou aulas e demais atividades organizadas na semana que antecedeu a formatura, quando foi possível observar o empenho e a dedicação com que produziam e apresentavam trabalhos práticos, planejavam atividades que levariam às comunidades, participavam ativamente de reuniões para discutir futuros desafios e faziam os últimos ajustes na organização da festa que promoveram no ginásio da cidade.

Naquele dia de sábado, nas poucas horas que tiveram livres à tarde, eles organizaram um mutirão para enfeitar o lugar com balões coloridos, providenciar comida, bebida, mesas e cadeiras para os convidados, pendurar faixas onde agradeciam aos parceiros da jornada e ainda caprichar nas roupas que vestiriam mais tarde. Foi neste contexto de preparativos que Ronaldo Ambrósio Melgueiro, agente da comunidade de Acuboco, no Alto Rio Negro, relembrou como foi importante ter concluído a formação, possibilitando que ampliasse seu olhar para além das tarefas de assistência à saúde e incluísse ações de prevenção e promoção no trabalho que já executava. Ele exemplificou: na sua comunidade, havia muitos casos de vômito e diarreia que ele não sabia como combater, até perceber que o problema estava ligado à falta de saneamento e à ausência de planejamento no destino que davam ao lixo e outros dejetos. Minimizou os danos conversando com a comunidade, explicando que a limpeza e a organização diminuiriam os episódios de doença.

"Muitas vezes temos que fazer o papel de agente de saúde, de enfermeiro, de médico, de professor e até de capelão", revelou, empolgado em poder contribuir com maior segurança para o trabalho da equipe multidisciplinar de saúde. "Eu acredito que a relação entre nós, agentes, e as equipes, vai mudar. Eles têm bom senso e vão respeitar os conhecimentos de quem está na ponta", declarou. Ronaldo acredita que os tempos em que o agente indígena de saúde era visto apenas como tradutor linguístico ou carregador de malas dos outros profissionais estão com os dias contados. "Se o agente quiser, pode até carregar o material, mas vai ser por educação, educação e respeito que temos com estes profissionais", afirmou.

A conformação deste novo olhar foi o que motivou docentes e alunos nestes seis anos, confirmou a médica Ana Lúcia Pontes, professora do curso e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz). "Foi uma vitória política nós termos concluído esta formação", afirmou à Radis, destacando que, a despeito da resistência da Sesai, das difíceis condições de logística e da descontinuidade nas ações de formação naquela região, o objetivo havia sido alcançado. "Isso exigiu um esforço individual dos alunos em persistirem todos estes anos, estarem ausentes de suas famílias, e também de nós, professores, que dedicamos este tempo ao projeto". Ela enfatizou que o curso é um marco nacional, já que se constitui na primeira experiência de conclusão da formação de nível técnico e nível médio para indígenas inseridos no sistema de saúde - iniciativa que foi construída a partir de uma metodologia e de um referencial curricular que considera as especificidades locais e os referenciais culturais dos índios.

"Eu não consigo imaginar algo mais relevante que eu tenha feito na minha vida profissional", avaliou, enfatizando as mudanças que já enxerga na conduta profissional dos alunos: um salto real na compreensão, fluência e escrita da língua portuguesa, um aumento na sua capacidade escolar - estando capacitados para avaliar e apresentar análises de situação reais e interferir nelas - e um maior entendimento e reflexão do que significa o trabalho que realizam. "Eles não tinham nenhuma supervisão ou orientação", afirmou, comemorando o fato de que muitos foram sensibilizados para a discussão proposta sobre o modelo de atenção, questionando a forma com que se trabalha hoje no Dsei, que privilegia o resgate de doentes e o combate às doenças. "O que propomos é um trabalho mais contínuo, de acompanhamento, com menos foco na doença. O trabalho do agente não é ficar perguntando quem está doente, mas identificar riscos, até em questões que não são propriamente da saúde", definiu.

Sucessos e insucessos
Luiza Garnelo ponderou que, como toda iniciativa pioneira, houve sucessos e insucessos. Por um lado, considerou "insucesso" a falta de envolvimento do Dsei com o trabalho do curso. Ela relatou que durante os seis anos de formação, passaram por lá muitos dirigentes, e que alguns até se empenharam, mas o apoio esbarrou em uma questão sintomática: "Como o curso é de vigilância, ele coloca em xeque o próprio modelo de assistência praticado pelo Dsei". Luiza explicou que, como o modelo assistencial é baseado em atenção à demanda espontânea, voltada para a remoção e o atendimento emergencial, quando o curso propôs rever o lugar que o agente ocupa nessa estrutura, ficou explícita a necessidade de se pensar a redefinição e reorganização de funções e ocupações dos demais integrantes da equipe. Ela lamentou que mesmo tendo o apoio de alguns profissionais, a descontinuidade da força de trabalho do Dsei não tenha permitido que esta discussão se aprofundasse.

Por outro lado, além do retorno positivo dado pelos alunos e pelo movimento indígena, ela comemorou a vivência de campo proporcionada pelo desenvolvimento do curso, construído e ajustado a partir da realidade e com a ajuda dos atores locais. "Isso nós conseguimos fazer", diz, explicando que o momento agora é de sistematização da prática, de maneira que elementos gerais possam se transformar em um protótipo capaz de orientar outras experiências similares - levando-se em conta os contextos particulares. "O contexto do Rio Negro é único", alertou.

Olhar diferenciado

O Curso Técnico de Agente Comunitário Indígena de Saúde: ensino médio indígena integrado à educação profissional técnica de nível médio, iniciativa conjunta do Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane (Fiocruz Amazônia) e da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), foi criado a partir de uma demanda da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn). A ideia era promover a elevação na escolaridade dos agentes indígenas de saúde da região, e fazer com que os profissionais se tornassem aptos a "intervir e transformar o processo de trabalho, discutindo de forma crítica os princípios que o regem, suas contradições e possibilidades", informava seu documento-base (Radis 80).

O que se buscava era concretizar a atenção diferenciada, proposta pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena - regulamentado pela Lei 9.836, de 23 de setembro de 1999 -, oferecendo aos agentes uma formação que reúne informações e procedimentos técnicos do "mundo dos brancos", articulados com o resgate dos conhecimentos tradicionais. As três etapas formativas e as 3.240 horas/aula aconteceram em cinco polos de formação (Alto Rio Negro, Baixo Içana e Xié; Médio e Alto Rio Içana, Aiari e Cuiari; Baixo Rio Waupés e Tiquié; Alto e Médio Waupés, Iauaretê e Papuri; Rio Negro abaixo, Curicuriari e Estrada) e foram divididas em módulos teóricos e práticos que trataram de cultura, território, cuidado, política e informação, comunicação e planejamento em saúde.

A experiência, inédita no país, propôs uma capacitação que visa o equilíbrio entre estes dois mundos - diversos e complementares - formando "agentes interculturais", cientes do lugar que podem ocupar dentro das equipes multidisciplinares de saúde, geralmente compostas por médico, enfermeiro, dentista e técnico ou auxiliar de enfermagem.

Luiza Garnelo alerta que a ideia não é formar técnicos indígenas para concorrer com técnicos de enfermagem: "O perfil do técnico de enfermagem é dirigido para que atue em instituições de saúde", precisou, orientando que são profissões com perfis diferentes e complementares.
Traduzindo para ações concretas, o curso construiu, junto com os alunos, possibilidades de o agente se integrar às equipes, e ser capaz de propor, participar e acompanhar ações de intervenção nas áreas de promoção à saúde e prevenção nos territórios - respeitando as questões de acolhimento, humanização e integralidade, não regulamentadas em nenhum documento em relação à saúde indígena, como explica Luiza.

"Como aplicar o princípio da atenção diferenciada no atendimento da diarreia, no cuidado com a gestante, na vigilância alimentar e nutricional? Como pesar, medir, entender o SIVAN [Sistema de Informações de Vigilância Alimentar e Nutricional], registrar os dados no sistema? Isso tudo foi ensinado. Mas também foi trabalhado com eles o que fazer e como adaptar estas informações a suas realidades. O que fazer, por exemplo, com um desnutrido do ponto de vista alimentar? Como tratar as questões de saúde bucal?", exemplifica Luiza, lembrando que questões como essas não se resolvem somente com procedimentos técnicos, mas também com a capacidade de adaptá-los à realidade das comunidades.

"Nós potencializamos o conhecimento que eles têm do território e do modo de vida", diz ela, argumentando que deste modo é possível colocar realmente em prática o que se entende por atenção diferenciada. Segundo ela, dentro do modelo assistencial, o papel do agente fica resumido a ações de tradução, auxílio na logística e na remoção de doentes. Ao contrário, no modelo proposto, ele se integra como conhecedor do território e da cultura, o profissional que utiliza sua experiência e seus conhecimentos sobre a comunidade e os transforma em informações de saúde. Todo agente, defende ela, mesmo aqueles que trabalham no contexto das cidades, tem que ter a dimensão social da população que atende.

Elo capacitado
A abordagem parte do conceito ampliado de saúde, valorizando a noção individual e comunitária sobre o que significa viver bem. O esforço proposto é não concentrar o olhar somente no combate às doenças, mas privilegiar o olhar da vigilância em saúde, no sentido de identificar e promover as condições que permitam que os grupos vivam bem. Isso significa estabelecer uma relação direta entre a saúde e seus determinantes culturais e sociais, como educação, transporte, moradia, alimentação, condições de saneamento e destino do lixo, entre outros fatores, o que só é possível caso se leve em consideração as particularidades territoriais, ambientais e socioculturais dos grupos atendidos pelos agentes, ensina o cientista social Sully Sampaio, da Fiocruz Amazônia, também docente do curso.

"Os serviços de saúde indígena estão organizados, em sua maior parte, para a assistência", observou Sully, questionando a ausência de atividades que visem a prevenção e a promoção de saúde. "O desafio é redimensionar estas ações para que haja equilíbrio, oferecendo uma alternativa de reorganização dos processos de trabalho", apontou ele, relatando que houve inclusive certo desconforto, por parte de alguns profissionais do Dsei que participaram do curso, ao se depararem com uma proposta que, em sua essência, apontava para a reestruturação dos serviços onde trabalhavam.

A despeito da falta de condição ou interesse das instâncias de gestão para modificar rotinas e/ou processos de trabalho, o foco da formação é mostrar que o papel do agente não é distribuir remédios, mas sim identificar situações de risco, como explica Sully. Ele orienta que não é tarefa do agente indígena diagnosticar ou tratar uma doença, mas é sua atribuição identificar quando há riscos à saúde e também demandar a presença da equipe na comunidade. Neste sentido, aponta, a formação despertou nos alunos autonomia, já que aumentou a consciência de suas capacidades e a sua autoestima. "Os agentes perceberam que o trabalho deles é muito útil para a melhoria da saúde das pessoas; sem a necessidade de tantos recursos tecnológicos, eles podem identificar, antecipar e apresentar os problemas de saúde à equipe", afirma. "São um elo capacitado, o olho vigilante da equipe na comunidade", definiu.

Parceria qualificada
A enfermeira Cleia Linhares atuava na equipe do Dsei quando foi convocada a dar aulas no curso sobre saúde da mulher e Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância (Aidpi). Convocada de última hora para ser professora, ela revelou à Radis que a oportunidade foi marcante: "Todo enfermeiro do Dsei deveria ter esta experiência. Quando a gente tem acesso ao conhecimento que eles têm e une ao nosso, a gente começa a vê-los como grandes parceiros", avaliou. Ela contou que depois das aulas, quando voltou à área indígena do rio Içana, seu trabalho fluiu de forma mais organizada e sistemática, já que contava com o auxílio e a parceria dos agentes como informantes das comunidades. "Em muitos casos, eu não precisava mais fazer triagem; eles me traziam informação qualificada e ainda monitoravam os casos", adiantou, contabilizando que o número de chamadas de emergência também diminuiu após ter afinado a parceria com os novos técnicos.

Coordenadora da Atenção Básica da Secretaria Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira, a enfermeira Fernanda Torres Santiago também considerou que os agentes irão desempenhar um papel importantíssimo dentro da equipe muldisciplinar de saúde, já que estão capacitados para fazer uma "busca ativa" de problemas nas comunidades e, em futuro próximo, também poderão contribuir para alimentar o e-SUS [estratégia do Departamento de Atenção Básica do Ministério da Saúde para reestruturar as informações da Atenção Básica em nível nacional]

Agentes políticos
Denivaldo Cruz da Silva, coordenador técnico local da Funai e um dos entusiastas do curso, chamou atenção para outro importante aspecto da formação: os desdobramentos políticos. Ele considerou a formatura uma vitória política para o movimento indígena. "Estes profissionais são agentes políticos de transformação das comunidades", afirmou, observando que são eles que conhecem melhor a região onde atuam e também podem articular ações de saúde com projetos de sustentabilidade local, auxiliando em atividades como censo populacional, importante ferramenta para a gestão territorial e ambiental das terras demarcadas. Para isso, argumentou ser necessário fortalecer a organização política do grupo: "Sabemos que a saúde indígena aqui não está bem. Precisamos apoia-los", afirmou.

André Baniwa, ex-vice prefeito de São Gabriel da Cachoeira, hoje presidente da Associação Indígena do Bacia do Içana e colaborador da Funai, reforçou que este não é um momento favorável para a saúde indígena na região e informou à Radis que hoje existem tentativas de aproximação da Funai com o Dsei, com o objetivo de melhorar o atendimento. André acredita que a melhor estratégia para que isso aconteça é fortalecer o controle social.
Neste cenário, considera que o papel dos técnicos é fundamental. "Pela primeira vez nós temos uma equipe grande de profissionais que tem escolaridade completa e capacitação técnica. Nossa expectativa é que eles possam contribuir com informações para que o movimento indígena possa reivindicar melhorias". Ele avalia que a ausência de dados qualificados é uma deficiência do movimento, e que se estes forem bem utilizados pelos agentes as lideranças podem transforma-los em argumentos de negociação com gestores - incluindo os da Saúde.

Desafio do reconhecimento
Para Luiza Garnelo, os técnicos recém-formados terão alguns desafios a enfrentar a partir de agora. O primeiro deles diz respeito ao que denominou "reconhecimento institucional", e envolve possibilidade de reenquadramento como profissionais de nível médio e renegociação de salários. "Isso é só uma parte da questão", advertiu, lembrando que existe uma luta política que vai além de se pagar um salário compatível com a nova formação.

Luiza observou que hoje, quando se traçam planos estratégicos distritais, não há qualquer menção ao trabalho do agente de saúde. "Quando você faz as estatísticas do Dsei, o agente de saúde é invisível. Então o reconhecimento institucional tem que prever, no planejamento, quais são as metas a serem cumpridas por ele", observou, orientando que isso vai exigir a articulação destas atividades com aquelas desenvolvidas pelos enfermeiros. "O grande supervisor destas tarefas é o enfermeiro", situou ela, destacando que o agente pode dar regularidade às ações que hoje somente são feitas quando o enfermeiro está em área indígena, como medir e pesar crianças - algo bem útil no contexto de longas distâncias e difícil acesso - mas que necessita de programação para que aconteça.

"Já que o sistema de saúde tem como base a informação e a informação não está registrada, isso significa que este profissional não existe", deduziu, ressaltando que, contrariando esta invisibilidade, o agente é um profissional que produz um grande número de informações, importantes para a produção de dados do Sisvan, do número de nascidos vivos, do controle de malária e dengue, entre outras áreas.

O outro lado do reconhecimento (e tão importante quanto) é na própria comunidade, apontou a pesquisadora. Luiza relatou que os alunos produziram uma carta, com orientação dos professores, explicando para as comunidades o que aprenderam e o que irão fazer a partir de agora. Ela colocou que promoção, prevenção e intersetorialidade são conceitos difíceis de ser "vistos" na prática, pela comunidade, ao contrário do atendimento médico-curativo, mais visível - não somente nas aldeias, mas também nas cidades.

"Esse tipo de reconhecimento é mais complicado", alertou, salientando que as comunidades ainda esperam que o agente seja aquela pessoa que dá remédios e remove doentes para as cidades. "A ausência dos outros níveis de resolutividade não é percebida pela comunidade como um problema do sistema de saúde. Ela tende a atribuir o problema ao agente", avaliou.

O agente Moisaniel Fernandes Lourenço, da comunidade de Vila Nova, no baixo rio Negro, disse estar ciente das dificuldades. "Eu consigo imaginar as barreiras que vamos enfrentar", declarou, ainda em sala de aula. Mesmo assim, ele disse estar muito feliz por ter enxergado o que antes não via: a ligação das conquistas e fracassos do movimento indígena com a saúde, o valor que têm a cultura e a tradição de seu povo e como pode contribuir para levar mais saúde para seus parentes. "Eu não sabia de nada, mas aprendi muito. O curso abriu a minha mente", revelou. (ADL)

A emoção da conquista

Embora grande parte do grupo acumulasse experiência como agentes indígenas de saúde de quase duas décadas, um bom número deles sequer havia concluído os estudos do ciclo médio. É possível avaliar o que é concluir, em apenas seis anos, os ciclos de ensino fundamental, médio e técnico, participando de aulas ministradas em português, que para a maioria dos alunos não é sua primeira língua. Além das línguas indígenas maternas e do nheengatu (também conhecida como língua geral, introduzida pelos jesuítas portugueses nas comunidades indígenas, a partir do século 19), muitos deles têm mais familiaridade com o espanhol, já que vivem em uma região de fronteira com Colômbia e Venezuela.

Some-se a isso as grandes distâncias. Nos seis anos, os módulos aconteceram em lugares diferentes, alguns situados a dias de distância de navegação pelos rios da região. Em muitos momentos, os alunos estiveram longe de suas casas e famílias por longos períodos. Mesmo assim, a taxa de evasão é irrisória, diante de tantas dificuldades. Dos 198 alunos que iniciaram a formação, apenas 59 não a concluíram. Dois deles porque morreram. O restante persistiu. E comemorou a conquista pessoal e comunitária.

É o que conta André Feliciano da Silva, agente da comunidade de Canadá, às margens do rio Aiari, afluente do Içana. A experiência marcou positivamente sua vida, relatou à Radis. Responsável pelo atendimento de 32 famílias, ele comemora a profissionalização das atividades que executa há 14 anos e contabiliza os novos conhecimentos que acumulou ao longo dos seis anos de capacitação. Destes, o que mais o mobilizou foi uma mudança na lógica do trabalho: investir na promoção da saúde e na prevenção às doenças ao invés de tentar, sozinho, driblar as deficiências e/ou ausências da assistência.
Com o mesmo tempo de experiência na atividade, Vanilde da Silva Brito, moradora da comunidade Vila Aparecida 1, no Distrito de Iauaretê, no médio Rio Waupés, também estava empolgada diante das novas possibilidades profissionais, animada por poder interferir nos problemas que afetam sua comunidade antes mesmo que estes aconteçam. Vanilde se refere, principalmente, ao fato de estar preparada para prevenir doenças como a diarreia, que afeta boa parte das crianças de sua área, e de levar informações sobre saúde bucal. "Antes, eu não tinha como combater estes problemas; hoje, posso fazer palestras, conversar com as lideranças e a comunidade para prevenir doenças", relatou, um dia antes da formatura.

Edmar Cabreira Maia, da comunidade de Patos, no rio Papuri, afluente do Waupés, saboreava a vitória de ter concluído duas formações ao mesmo tempo (nível médio e técnico), e de estar preparado para levar ao território onde mora conhecimentos que podem minorar problemas que afligem seus parentes. Agente desde 2008 na longínqua região de fronteira do Brasil com a Colômbia, ele destacou a importância de ocupar o lugar de ligação entre a equipe multidisciplinar de saúde, que atua no DSEI, e as pessoas com quem convive: "Tem que ter alguém que trabalhe bem com a comunidade, que conheça o território e suas tradições", explicou. Edmar manifestava especial preocupação, durante a conversa, sobre o que faria para que a comunidade compreendesse a importância de dar melhor destino ao lixo no território, e como esta simples atitude preveniria problemas futuros de saúde, como a contaminação da água e a proliferação de doenças.

Sabino Garrido Feliciano, da comunidade de Cué Cué, no rio Negro, celebrou a própria conclusão dos estudos. Em uma região marcada por uma infinita quantidade de cursos introdutórios e outros não concluídos, este representava uma vitória para ele, depois de 16 anos atuando como agente indígena de saúde. Das dificuldades, ele cita a falta de equipamentos para o trabalho (balança, termômetro, aparelho para medir a glicose, etc), mas torce para que a situação melhore. "Nós somos muito cobrados pela comunidade", revelou, salientando que entende o esforço dos profissionais que compõem as equipes multidisciplinares de saúde. Empolgado com o término da formação, Sabino se disse pronto para continuar os estudos. "Dá muita vontade de ir além disso", adiantou.

A empolgação também está presente no discurso de Dinéia Dávila, do distrito de Assunção do Içana, embora reconheça que o trabalho é duro. "Na comunidade, nós somos tudo. Só falta extrair dente", ironiza, sentindo-se mais segura para acompanhar e contribuir para o trabalho das equipes que atuam em sua área. Pronta para retornar à sua comunidade, ela antecipou que pretende investir em um projeto de saneamento para o local, que abriga cerca de 500 pessoas.

Alguns agentes relataram suas impressões por escrito e as enviaram para a Radis. Manoel Paiva, da comunidade de Jurupari, última comunidade do Rio Aiary, afluente do Rio Içana, resumiu sua avaliação: "Sinto que estou preparado para ajudar os povos da minha comunidade, para prevenir certas doenças que ali sempre acontecem", registrou, com bela caligrafia que faria inveja a muito estudante universitário. (ADL)

Radis Comunicação e Saúde n. 153, jun., 2015,p. 14-21

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