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A nova comida

O Globo, Edicão Especial, p. 1-24
09 de Jun de 2004

A nova comida

Ana Lúcia Azevedo

Quarenta por cento da superfície da Terra já são dedicados à agricultura. Mas o mundo de seis bilhões de habitantes e 842 milhões de famintos - 15,6 milhões deles no Brasil - necessita de mais. E em apenas três décadas haverá dois bilhões de bocas extras para alimentar, a maioria delas em países pobres. Com uma reserva de terras para produção de alimentos cada vez menor, a Humanidade busca novas formas de obter comida. Mesmo o Brasil, quarto maior exportador agrícola do mundo e o único com terras férteis ainda a explorar, precisa aumentar a produção e a variedade de alimentos e reduzir os preços. Especialistas vêem soluções para o futuro da comida emergirem dos laboratórios de biotecnologia, mas também do interior ainda desconhecido das florestas e dos campos brasileiros.

Nos últimos 40 anos, a Revolução Verde - combinação de pesquisa em tecnologia agrícola, irrigação e insumos (fertilizantes e pesticidas) - gerou uma oferta de alimentos sem precedentes na História. Hoje esse cenário está em transformação. A demanda por comida cresce num ritmo maior que o da capacidade de produzi-la.

A Organização para Alimentos e Agricultura das Nações Unidas (FAO, na sigla em inglês) diz que há tecnologia e recursos naturais para matar a fome dos pobres e atender às exigências de uma população urbana em expansão. A biotecnologia, uma das frentes para a agricultura, desenvolve transgênicos com maior valor nutritivo e resistentes a climas hostis. Novos alimentos surgem também a partir de cruzamentos tradicionais orientados por informações obtidas de genomas. Entretanto, tais benefícios podem não chegar aos pobres, se meios de garantir acesso à tecnologia e segurança para a saúde e o meio ambiente não forem encontrados.

Outras novidades vêm da biodiversidade. Espécies mais nutritivas e resistentes são identificadas. Dentro de alguns anos, frutas e verduras antes só conhecidas por povos tradicionais deverão chegar às prateleiras de supermercados.

O século XXI também oferece desafios inéditos. Se quase um bilhão de pessoas passam fome, outro tanto está acima do peso. A ciência descobriu que a evolução moldou a adaptação aos alimentos e sabe que a receita para o combate da epidemia mundial de obesidade passa pelo conhecimento dos genes.

Além disso, novas doenças transmitidas ao homem por animais domésticos, como vacas e frangos, surgem num ritmo nunca visto sem que saibamos nos defender.

Com este suplemento, O GLOBO procura oferecer um panorama das tecnologias e das dificuldades para alimentar o Brasil e o mundo neste século.

Revolução no mundo transgênico

Roberta Jansen

Alimentos do futuro prometem saúde e sabor, mas já causam polêmica

O mundo está longe de um consenso sobre as plantas geneticamente modificadas tolerantes a herbicidas e resistentes a insetos, mas uma nova geração de transgênicos já emerge dos laboratórios. São alimentos voltados ao consumidor final com a promessa de aliar sabor a características mais saudáveis e alto valor nutricional - o que, segundo a ONU, pode contribuir para o combate à fome. Mais que isso, plantas e animais se convertem agora num meio de produção de medicamentos. Para alguns cientistas, se esses produtos tivessem sido oferecidos há mais tempo, a resistência dos consumidores aos transgênicos não teria sido tão grande. Mas a polêmica e a revolução na mesa estão só no início.

Promessa transgênica de batata frita e chocolate benéficos para a saúde

Chocolate, batata frita e cerveja poderão ser bons para saúde e nem engordar tanto. O que soa como um delírio de gulosos já está perto de se tornar real

O desafio é criar alimentos que agradem ao paladar e sejam saudáveis. A nova geração de transgênicos promete ainda prevenir doenças e combater carências nutricionais. O arroz dourado, alterado para ter alto percentual de betacaroteno (precursor da vitamina A ) - capaz de prevenir problemas sérios, como a cegueira - é o exemplo mais conhecido.

Cientistas no Brasil e no exterior desenvolvem grande variedade de transgênicos com vantagens nutricionais. A batata com mais lisina (aminoácido fundamental ao crescimento) e óleos de cozinha com pouca gordura saturada estão em teste, bem como milho com menos carboidrato e mais proteína.

- Sabemos que o perfil de óleo mais adequado à saúde é o do azeite de oliva. Estamos alterando a soja e a canola para que tenham um perfil nutricional semelhante, com menos gordura saturada - explica Sílvia Yokoyama, gerente de assuntos científicos da Monsanto. - Também estamos modificando esses óleos para que não precisem passar pelo processo de hidrogenação, necessário para a fabricação de chocolates e biscoitos, que produz gordura trans, nociva à saúde.

Entre as maiores promessas, está o bife com menos gordura.

- Acho que será possível ter bife com menos gordura - afirma Rodolfo Rumpf, coordenador do projeto de biotecnologia aliada à reprodução animal da Embrapa. - Mas sou contra alterar o gosto.

Cientistas da Universidade de Weihenstephan, na Alemanha, desenvolvem cevada para produzir cerveja com ingredientes capazes de prevenir o câncer. Outras alterações poderiam impedir a absorção de calorias, ajudando a emagrecer.

- Até agora os transgênicos eram mais voltados para os interesses dos agricultores - constata o pesquisador Elíbio Rech, que coordena projetos de transgênicos na Embrapa. - Para um futuro próximo, no entanto, já conseguimos imaginar a manipulação do conteúdo nutricional das plantas, a criação de banana enriquecida com betacaroteno.

Tais trabalhos, dizem os pesquisadores, são importantes porque criarão um meio simples de levar nutrientes a áreas remotas, sobretudo em países pobres e populosos, ajudando a combater carências nutricionais graves.

Brasil estuda alface-vacina e vacas com leite para tratar doenças humanas

Numa das mais promissoras e polêmicas aplicações da nova geração de transgênicos, alimentos se rotnam meios de produção de drogas

As chamadas biofábricas são animais e plantas modificados geneticamente para produzir remédios e vacinas. Cientistas da Embrapa trabalham no desenvolvimento, em alface, de uma vacina contra a diarréia viral - uma das maiores causas de mortalidade infantil no mundo. Os cientistas introduziram na planta, por meio de manipulação genética, um antígeno contra o vírus da diarréia e já se preparam para testar o produto em camundongos.

- A planta poderia ainda ser processada, transformada em pó e colocada em cápsulas - conta o coordenador do projeto, Elíbio Rech. - Comer a folha diretamente também seria possível, além de mais barato, mas haveria o problema da dosagem.

A grande maioria das biofábricas, no entanto, não é comestível. Exemplos são a soja cujas sementes têm anticorpos contra o câncer de mama e as variedades de milho produtoras de insulina e hormônio do crescimento, estas últimas objetos de estudo na Universidade de São Paulo (USP). É também o caso do projeto da Embrapa para criação de vacas transgênicas clonadas capazes de produzir o fator 8 de coagulação sangüínea humana em seu leite. O fator 8 é usado para tratar ferimentos e por hemofílicos.

- Esse leite não iria para a indústria alimentícia, mas sim para a farmacêutica, onde seria purificado e processado para uso em humanos - explica o coordenador do Projeto de Biotecnologia Aliada à Reprodução Animal da Embrapa, Rodolfo Rumpf. - São linhas de produção distintas.

Cientistas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por sua vez, dedicam-se ao desenvolvimento de modelos para a produção de uma vacina veterinária contra a febre aftosa em tabaco e berinjela.

- A idéia é produzir essa vacina na cana de açúcar, mas, por enquanto, estamos desenvolvendo a tecnologia para testes - diz o bioquímico Rogério Margis, da UFRJ.

O grupo de Margis tenta ainda desenvolver a tecnologia necessária para transformar grãos de pólen em vacina. A idéia seria inspirar o pó e garantir imunidade.

- Poderia ser uma vacina contra a hepatite B, mas, num primeiro momento, vamos fazer contra a raiva canina para mostrar que o sistema não oferece risco - observa.

Especialistas ainda avaliam riscos para saúde, meio ambiente e economia

Para os defensores dos transgênicos, eles são a maneira mais eficiente de aumentar a produção de alimentos e drogas a baixo custo. Mas o risco de contaminação da cadeia alimentar e a dificuldade de acesso à tecnologia causam temor.

Quando se produz um transgênico, o gene inserido no organismo a ser modificado é totalmente conhecido do cientista que realiza a operação. Mas o que ninguém sabe é exatamente onde vai parar o material genético introduzido.

- Essa é a grande preocupação da biossegurança - explica a pesquisadora Norma Rumjanek, especialista em biossegurança da Embrapa. - Como não há esse controle, pode-se estar silenciando um gene não perceptível de imediato que pode, por exemplo, transformar-se em substância tóxica para o homem.

Outro risco potencial dos transgênicos seria a introdução na cadeia alimentar de substâncias capazes de provocar alergias.

- Acho que é uma questão de rotulagem, de sabermos o que estamos comendo - defende o bioquímico Rogério Margis, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). - O consumidor tem que saber, por exemplo, que a cenoura modificada contém proteínas do leite. Mas não é porque algumas pessoas têm alergia a essas substâncias que devemos deixar de fazer plantas como essa.

Segundo especialistas, haveria ainda o risco de plantas ou animais destinados à produção de drogas serem consumidos pelo homem. Os defensores dos transgênicos alegam que as linhas de produção seriam totalmente distintas e não haveria risco de mistura.

- As plantas serão tratadas como biorreatores, elas não entram na cadeia alimentar. Além disso, poderíamos fazer a produção em ambientes confinados e usar plantas que o homem não come, como alfafa e tabaco - afirma o pesquisador Elíbio Rech, da Embrapa.

Há ainda a hipótese de criar transgênicos estéreis, evitando o fluxo gênico.

- O que temos constatado ao longo dos anos é que é praticamente impossível a convivência de cultivos tradicionais e transgênicos sem a contaminação por polinização ou mistura de grãos e sementes - sustenta o agrônomo Ventura Barbeiro, da ONG Greenpeace. - Um milho projetado para produzir hormônio, por exemplo, poderia contaminar o milho nativo. Haveria o risco de termos insulina em nosso prato. Não somos contra os transgênicos, mas defendemos seu uso em locais confinados.

Os transgênicos também ofereceriam riscos potenciais semelhantes ao meio ambiente. Uma planta projetada para resistir a determinada praga poderia ter um efeito indesejado sobre outros insetos, organismos do solo ou plantas, alterando a biodiversidade.

- No Canadá, três tipos de canola resistentes a herbicidas acabaram se cruzando e criou-se uma supercanola que se tornou uma das piores ervas daninhas que aquele país já enfrentou - exemplifica Barbeiro

Rogério Margis lembra que toda monocultura traz impacto ambiental.

. - Qualquer monocultura é artificial; as pragas existem porque não se trata de um ambiente natural - afirma Margis. - O que é melhor: borrifar inseticida por quilômetros e quilômetros ou ter uma planta com uma proteína capaz de matar uma praga?

Em seu último relatório, a Organização para Alimentos e Agricultura das Nações Unidas (FAO) alertou para um potencial risco econômico dos transgênicos. Enquanto a Revolução Verde foi financiada majoritariamente por governos e instituições públicas, a nova tecnologia está quase toda nas mãos de empresas privadas.

O temor da FAO é que os países pobres não tenham acesso aos benefícios da tecnologia. Dos 11 mil testes de campo já feitos com transgênicos, apenas 15% foram em países em desenvolvimento.

Caçadores de DNA descobrem receitas para reinventar os alimentos

Flávio Henrique Lino

Nos anos 60, um frango levava 80 dias para pesar dois quilos. Hoje, leva metade disso graças à seleção genética. Com o avanço da genômica, progressos na produção de comida ajudarão o homem a superar o fantasma da fome.

Na verdade, o processo de aprimoramento das espécies por meio da seleção genética artificial ocorre há milhares de anos, desde que nossos antepassados domesticaram os primeiros animais e aprenderam a plantar. A partir daí, misturas de cargas de genes diferentes têm sido feitas, por exemplo, com a intenção de obter um carneiro que dê mais lã, ou um milho com grãos mais macios, sempre a partir da observação de características externas. A diferença é que, na segunda metade do século XX, o que era um processo demorado feito pelo cruzamento natural das espécies começou a ser potencializado com o desenvolvimento da genômica, que investiga as características mais essenciais, as do DNA.

A nova ciência, ao desvendar a composição de genes de cada ser vivo, carrega promessas nunca antes sonhadas de reorganizarmos parte da vida no planeta de acordo com as necessidades humanas.

- A evolução na área de genômica permitirá acelerar os programas de melhoramento genético porque a seleção será baseada na informação de DNA e não na informação fenotípica (das características externas) - explica Luiz Lehmann Coutinho, um dos coordenadores do programa Genoma Funcional do Boi, realizado por centros de pesquisa de São Paulo.

Ele dá um exemplo. Para selecionar um touro que gere vacas leiteiras é preciso avaliar suas descendentes fêmeas e, se elas forem boas produtoras, ele será escolhido. É um processo ao contrário que avalia primeiro a descendência para, só então, chegar ao objeto de real interesse. Com os estudos genéticos, será possível verificar direto no touro se ele tem ou não os genes favoráveis à produção de leite, economizando tempo.

- Com um teste genético, o animal poderá ser selecionado mais cedo. Isso permitirá incluir em programas de seleção características que antes eram difíceis de serem medidas pela genética tradicional e ajudará a aumentar a qualidade dos produtos - salienta Coutinho.

Os benefícios são muitos. Além da qualidade, a produtividade e a resistência às doenças também poderão ser alvo de seleção a partir do genoma, gerando, por exemplo, animais com mais carne e menos gordura e vegetais mais resistentes a pragas que dispensem agrotóxicos.

O Brasil posicionou-se bem na genômica ao desvendar, em 2000, o genoma da variante da bactéria Xylella fastidiosa causadora do amarelinho, uma doença que ataca os laranjais. Foi o primeiro patógeno de plantas seqüenciado no planeta. Hoje há projetos em andamento em instituições nacionais para o seqüenciamento do boi, do frango, da cana, da uva, da laranja, da amendoeira, entre outros. Mas Coutinho alerta que outros países estão entrando na mesma área e diz que se o Brasil não investir, poderá ficar para trás.

Transformações bioquímicas na estrutura de plantas com o objetivo de realçar ou suprimir determinadas características também vêm sendo feitas com sucesso no Brasil. Foi por meio de uma alteração enzimática na cana-de-açúcar que a equipe de Glaucia Maria Pastore, da Unicamp, obteve um xarope com alta capacidade bifidogênica (que estimula o crescimento de bactérias benéficas à flora intestinal) para ser usado em iogurtes.

- O xarope se presta também a ser um adoçante que engorda menos mas tem gosto de açúcar - conta a pesquisadora. - Entre ser funcional e adoçante, optamos inicialmente pela primeira linha, que parecia mais interessante porque seu poder adoçante é bem menor.

Saiba Mais:
A evolução do pão

O pão é o principal alimento da História da Humanidade - quase todas as culturas do mundo, dos gregos aos hindus, desenvolveram suas próprias receitas. Segundo o clássico livro "Seis mil anos de pão" (Ed.Nova Alexandria), de H.E. Jacob, o pão se tornou o mais simbólico dos alimentos. Num mundo assombrado por uma epidemia de obesidade, o desafio se tornou produzir um pão saboroso que não engorde.

Dieta contra a herança genética
Regime da Idade da Pedra combate males da modernidade

Flávio H. Lino

O dia foi cansativo, mas compensador. Os homens conseguiram, após andarem 15 km, matar um mastodonte, garantindo carne para todos. As mulheres voltaram à caverna carregadas de frutas e raízes silvestres recolhidos numa manhã do ano 50000 a.C.

Embora vivessem bem menos e estivessem mais expostos às intempéries, nossos ancestrais pré-históricos tinham pelo menos uma vantagem sobre nós - garante uma corrente da ciência - no distante Paleolítico: uma dieta mais apropriada a seus genes e a seu estilo de vida. Por conta disso, não são poucos os defensores da idéia de que o homem moderno deveria aprender com os hábitos alimentares de dezenas de milhares de anos atrás, antes de as inovações tecnológicas da civilização introduzirem em sua dieta alimentos desconhecidos de nossos antepassados.

A premissa básica por trás da tese é que nossos genes foram moldados ao longo de centenas de milhares de anos em que o modo de vida da espécie foi quase que exclusivamente o de caçadores- coletores errantes, que viviam do que a natureza lhes dava em estado selvagem. Nesse cardápio não entravam alimentos originados da agricultura e da pecuária, nem os modificados pela indústria. Assim, o organismo humano estaria preparado para a ingestão de uma comida diferente da disponível nas prateleiras dos mercados. Numa outra maneira de ver a questão, o homem foi caçador-coletor por cem mil gerações, agricultor por 500, vive num mundo industrial há dez, e apenas as duas últimas cresceram comendo fast-food altamente industrializada.

O nutrólogo Stanley Boyd Eaton, da Universidade de Emory, em Atlanta, nos EUA, uma das maiores autoridades em nutrição evolutiva, argumenta que nossos genes estão nos programando hoje da mesma forma como vêm fazendo há 40 mil anos, e que 99,99% deles se formaram antes do advento da agricultura dez mil anos atrás. Dessa forma, assegura, quanto mais comermos como nossos ancestrais do Paleolítico, menos suscetíveis estaremos às "doenças da civilização", como os males cardíacos, o câncer, o diabetes.

Segundo o médico Johannes Scholl, do Instituto de Medicina Preventiva de Rüdesheim, na Alemanha, uma das conseqüências de tal descompasso entre genes e dieta é que a resistência insulínica (nível de açúcar mais alto no sangue), uma vantagem evolutiva da raça humana, está se transformando numa desvantagem.

- No Paleolítico, as pessoas às vezes tinham de agüentar fome por dias, e quem melhor conseguia passar por esse desafio era quem tinha resistência insulínica porque o cérebro não pode trabalhar sem glicose. Tal tipo genético tinha uma vantagem de sobrevivência - explicou ele ao GLOBO. - Nossos genes são de 60 mil anos atrás, não mudaram, mas o ambiente, a nutrição e a quantidade de atividade física mudaram, por isso a resistência insulínica agora é desvantagem para quem não faz exercícios, causando diabetes, obesidade.

A defesa da dieta paleolítica, no entanto, está longe de ser unânime. Muitos cientistas põem tanta ênfase no estilo de vida quanto na alimentação como receita de uma vida melhor. Para o antropólogo biológico William Leonard, da Universidade do Noroeste, em Chicago, o Homo sapiens não nasceu para ter um tipo único de dieta e uma característica da espécie é justamente a ampla variedade dos alimentos que consome, do Ártico ao Deserto do Saara. Ele encara a capacidade de criar dietas adaptadas às nossas necessidades como um marco da evolução e num recente artigo na edição brasileira da revista "Scientific American" decretou: "O desafio agora é o balanceamento entre as calorias que consumimos e as que queimamos".

Sedentarismo e fast-food empurram homem contra seu destino biológico
Cientistas já identificaram uma bomba-relógio no caminho da evolução do Homo sapiens. Após milhares de anos em que os hábitos alimentares ajudaram a selecionar genes, o homem moderno está remando contra a maré evolutiva.

Com carboidratos assumindo um lugar de maior destaque no cardápio do homem e este cada vez mais sedentário por conta das facilidades da modernidade, a civilização vê aumentar o número de obesos e das doenças relacionadas ao peso em excesso. Nos EUA, entre 1971 e 2000, o percentual de calorias consumidas por mulheres subiu 22% e por homens, 9%, segundo o Centro para Controle e Prevenção de Doenças. A obesidade entre os americanos mais que dobrou nas três décadas citadas e cerca de 400 mil pessoas já morrem anualmente por causa de complicações causadas pelos muitos quilos a mais que carregam, com um custo de US$ 75 bilhões ao país. No Brasil, esse número está em 65 mil, mas em trajetória ascendente.

Alguns especialistas apontam um vilão nessa história: a disseminação da crença de que bastava eliminar a gordura e substituí-la por carboidratos para ter uma vida mais saudável.

- Essa tem sido a base dos conselhos nutricionais dos últimos 30 anos, mas a mensagem pode ter sido mal interpretada e todos os problemas, na verdade, aumentaram. Quanto menos gordura, quanto mais light comem, mais gordas as pessoas se tornam - alerta o nutrólogo alemão Nicolai Worm, que tem vários livros sobre o tema e esteve recentemente no Rio para a Jornada de Medicina Preventiva.

A explicação do fenômeno tem duas vertentes. A primeira tem a ver com os próprios alimentos. Os carboidratos, que aumentam o nível de açúcar no sangue, produzem um efeito colateral de, em seguida, baixar o nível glicêmico, provocando uma sensação de fome. O que leva à ingestão de mais comida e mais calorias, num nível além do necessário para manter o organismo. É aí que entra a segunda vertente. Tal efeito colateral não seria, por si só, um problema se as pessoas queimassem as calorias excedentes, mas o estilo de vida sedentário do homem moderno faz com que elas se acumulem de forma nociva à saúde.

- Temos de encontrar um novo equilíbrio entre mais frutas, mais legumes, mais proteínas, menos carboidratos e mais atividades físicas - aconselha Nicolai Worm.

E os médicos fazem um outro grave alerta: além da obesidade adulta, a infantil também está em alta, assim como o diabetes em adolescentes, com cada vez mais crianças e jovens caindo vítimas dessas duas doenças. O Brasil já se igualou aos Estados Unidos no percentual de obesidade infanto-juvenil, com 15% de população entre 6 e 17 anos sofrendo de peso excessivo. O aumento nos últimos anos foi expressivo. Enquanto lá a obesidade infanto-juvenil teve uma subida de 60% desde a década de 80, no Brasil o crescimento foi de surpreendentes 240% no mesmo período, por conta do acesso maior da população a carboidratos baratos, como biscoitos, massas e refrigerantes e da disseminação de lanchonetes com comida fast-food com porções cada vez maiores.

- Se nossos jovens persistirem em seus estilos de vida, no futuro serão obesos com todas as doenças desencadeadas paralelamente à obesidade - alerta o especialista em medicina preventiva Gilberto Ururahy, diretor médico da MedRio Check-Up.

Alimentos light e diet, as armadilhas que fazem engordar os desavisados
Nas últimas décadas, os alimentos light e diet invadiram as prateleiras, anunciando o fim da obesidade. No entanto, o problema só fez crescer, indicando um descompasso entre as promessas da nova comida e seus efeitos.

A questão origina-se, segundo especialistas, no fato de que os produtos diet e light reduzem o teor de gordura e açúcar dos alimentos, mas não eliminam completamente suas calorias. Por lei, um produto é diet se elimina 10% de um determinado nutriente, no caso o açúcar. Já para ser considerado light, deve-se eliminar de 25% a 99%.

Só que, muitas vezes, para compensar a redução de um elemento, aumenta-se o percentual de outro. Uma barra de chocolate comum de 100 gramas, por exemplo, tem 750 calorias, ao passo que uma barra de chocolate diet do mesmo peso tem 675 calorias - ele tem menos açúcar, mas a gordura é maior, resultando numa redução de apenas 10% do teor calórico, insuficiente para alterar significativamente o consumo de calorias de quem luta para controlá-las.

O problema atual é que a maioria das pessoas ignora que os produtos light e diet podem reter um alto grau de calorias e, por isso, elas se sentem livres para ingerir quantidades grandes desses alimentos, sem maior controle. O resultado é que o consumo deles vem aumentando, e as pessoas continuam a engordar.

- A mensagem que se passou nos últimos anos é que se pode comer à vontade os produtos light e diet, mas não é assim. As pessoas acabam às vezes fazendo uma alimentação inadequada por falta da informação correta - explica o endocrinologista Amélio de Godoy Matos, chefe do Departamento de Nutrologia e Metabologia da pós-graduação da PUC e membro do comitê-executivo da Sociedade Internacional de Endocrinologia. - É preciso verificar o valor calórico dos alimentos para estabelecer o balanço energético.

Alguns especialistas alegam, ainda, que a criação de alimentos com substitutos de gordura pode ser uma faca de dois gumes. A explicação é que, se por um lado o substituto reduz o teor calórico, por outro, pode causar problemas de outra ordem. A olestra, por exemplo, um óleo de cozinha vegetal que substitui a gordura no preparo dos alimentos, pode causar diarréia e prejudica a absorção das vitaminas A, E, D e K pelo organismo.

- O quadro é complexo. As pessoas que trabalham na área de desenvolvimento de novos produtos entendem da natureza química da gordura e dos substitutos dela, mas não sabem nada de metabolismo ou bioquímica dos nutrientes... Precisamos de equipes multidisciplinares para lidar com a questão - afirma o professor Jaime Amaya Farfán, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp. (Flávio Henrique Lino e Roberta Jansen)

Saiba Mais
Tecnologia espacial

A comida desidratada dos astronautas continua com pouca chance de sucesso na Terra. Porém, novas tecnologias desenvolvidas para a vida no espaço podem encontrar lugar no mercado. Dentre elas está um miniespectrômetro de massa para analisar a composição de vinhos, uma geladeira portátil movida a energia solar e novas formas de conservar os alimentos sem roubar-lhes o sabor.

A silenciosa revolta dos bichos
Superpneumonia, vaca louca e gripe das aves representam novos desafios

Leonardo Valente
Doenças de animais sempre atormentaram criadores, mas não constumavam despertar o interesse dos consumidores. Não mais. Uma série de novos males de origem animal agora afeta seres humanos, espalha-se pelo mundo globalizado e traz o medo de epidemias.

Superpneumonia, mal da vaca louca e a gripe das aves preocupam produtores e consumidores. Os primeiros, às voltas com formas de evitar perda de animais e contaminação da carne. Os consumidores, em busca de segurança. Em comum, as três doenças compartilham o fato de serem causadas por agentes infecciosos que venceram a barreira das espécies e passaram a atacar o homem.

Segundo os especialistas, o risco de doenças contraídas pelo contato - caso da superpneumonia e da gripe - ou o consumo da carne de animais doentes - o exemplo da vaca louca - tem na globalização do mercado de alimentos seu principal aliado.

- O fenômeno traz uma mudança drástica na relação do homem com sua alimentação. Essas doenças se tornaram potencialmente graves devido à globalização, que pode transformá-las em epidemias mundiais. Carne com mal da vaca louca pode sair da Europa direto para restaurantes japoneses. Frangos asiáticos com gripe podem chegar ao Brasil, por exemplo - explica Cícero Pitombo, presidente da Associação Brasileira de Buiatria (ABB), que congrega pesquisadores de bovinos, ovinos e caprinos.

Ele diz que, apesar das particularidades de cada uma dessas novas doenças, elas compartilham a gravidade.

- O mal da vaca louca é uma doença degenerativa do cérebro. No Brasil, precisamos evitar que o gado tenha alimentação com ração de origem animal, pois essa é uma das grandes causas do problema - explica.

Já a gripe do frango e a superpneumonia, segundo a pesquisadora da ABB Marcia Cunha Abreu, são extremamente agressivas e com altos índices de mortalidade, principalmente em idosos e crianças:

- São doenças que se espalham rapidamente e precisam de medidas sanitárias e de saúde muito eficientes. No caso da gripe do frango, o grande problema é a capacidade de mutação do vírus, o que pode torná-lo extremamente perigoso para o homem.

Mas o perigo não vem só das doenças transmitidas por mamíferos e aves. Quando o cardápio é carne, a ameaça pode vir do mar. Do salmão, por exemplo. Considerado benéfico para o coração por ser rico em ômega 3, ele pode, quando criado em cativeiro, provocar câncer. É o que diz um estudo da Universidade de Indiana, nos EUA. O problema estaria na alimentação e na forma de vida do peixe em cativeiro, que o faria produzir 14 toxinas cancerígenas em quantidades mais altas que o salmão selvagem.

- O consumo do salmão de cativeiro aumenta consideravelmente as chances de uma pessoa desenvolver diferentes formas de câncer - acredita Ronald Hites, da Universidade de Indiana.

As três principais doenças associadas a animais

MAL DA VACA LOUCA

Causa: Acredita-se que seja provocada por prions, proteínas alteradas.
Origem: Desconhecida. Não se sabe por que as proteínas sofrem alterações e transformam-seem prions.
Transmissão: Suspeita-se que o contágio possa ocorrer por meio do consumo da carne de animais doentes.
Sintomas: As chamadas encefalopatias espongiformes causam buracos no cérebro, levando à perda de controle dos movimentos e demência.
Tratamento: Não há. A doença é letal.

SUPERPNEUMONIA

Causa: A síndrome respiratória aguda grave é provocada por uma nova variedade de coronavírus.
Origem: Não se sabe como o vírus passou de animais, possivelmente a civeta asiática, para seres humanos.
Transmissão: Ainda pouco conhecida. Supostamente por meio do contato com secreções respiratórias de doentes.
Tratamento: Com antibióticos. A taxa de letalidade é de cerca de 10%.

GRIPE DAS AVES

Causa: Novas variantes do vírus da gripe. A última epidemia foi provocada pelo subtipo chamado H5N1.
Origem: Não se sabe como o vírus passou de aves para o ser humano pela primeira vez.
Transmissão: É menos contagiosa em seres humanos do que a gripe comum. Mas há temor de que o vírus possa se tornar mais infeccioso.
Tratamento: Não há tratamento específico. A taxa de letalidade, ao que parece, é muito mais elevada do que a da gripe comum.

Engenharia genética se une a técnicas clássicas para tornar a comida segura
Oferecer alimentos mais seguros diante de tantos riscos de contaminação é possível. Da clássica pasteurização à manipulação genética, cresce a cada dia o arsenal da ciência para proteger o consumidor das ameaças.

Uma das últimas novidades da genética na busca por alimentos mais seguros foi divulgada por pesquisadores japoneses e americanos na revista "New Scientist". Eles começam a desenvolver embriões de vacas geneticamente modificados para não contraírem o mal da vaca louca. O objetivo é alterar a forma da proteína prion, a PrP, que estaria relacionada ao desenvolvimento da doença. A previsão é que os primeiros filhotes nasçam no ano que vem.

- A transgenia vai ser muito importante para conseguirmos linhagens de animais geneticamente resistentes a enfermidades - afirma o coordenador do Projeto de Biotecnologia Aliada à Reprodução Animal da Embrapa, Rodolfo Rumpf. - Acho interessante do ponto de vista do mercado, desde que o consumidor aceite.

Segundo Zander Barreto, especialista em segurança alimentar da Universidade Federal Fluminense, as doenças transmitidas por alimentos (DTAs) só são menos comuns que os resfriados. Por isso, as técnicas atualmente disponíveis para matar microorganismos patogênicos e conservar alimentos são imprescindíveis e devem ser consideradas pelo consumidor na hora das compras.

São quatro os métodos de segurança alimentar mais utilizados pelo mercado: a pasteurização, usada em laticínios; a frigorização, aplicada principalmente em carnes e derivados; a esterilização comercial, que é o uso de latas para armazenar produtos; e a irradiação, a mais sofisticada delas, que serve para diversos tipos de alimentos, principalmente frutas e verduras.

- A irradiação é um método eficiente de matar os germes e, ao contrário do que muita gente acredita, não deixa os alimentos radioativos - diz Barreto.

Todas as técnicas, de acordo com o especialista, têm como objetivo reduzir o risco de doenças e intoxicações, mas estão longe de serem suficientes para garantir isso.

- Hoje, sabemos que essas técnicas são importantes, mas que nada valem se os alimentos voltarem a ser expostos a microorganismos - adverte. - A segurança alimentar moderna se preocupa com toda a cadeia produtiva da comida. Desde a qualidade dos insumos que são utilizados para seu cultivo, até formas de colheita, transporte e armazenamento adequados.

Outro trabalho considerado cada vez mais importante para os especialistas em segurança alimentar é o estabelecimento de barreiras sanitárias para evitar a entrada de produtos importados contaminados.

- Além de cuidar dos alimentos produzidos aqui, é preciso controlar rigorosamente o que está sendo importado por meio de análises - salienta Barreto.

A revolução que vem da mata
Uma esperança contra a fome em frutas e legumes desconhecidos

Chico Otávio

Para convencer o consumidor a substituir o famoso arroz com feijão, bife e salada de alface com tomate por pratos a base de pupunha, uxi, camu-camu, caititu, umbu e outros nomes exóticos, cientistas brasileiros transformaram-se em mestres-cucas de laboratório. O desafio é mostrar que nossas florestas e outros ecossistemas são fontes substanciais de alimentos, embora sejam praticamente inexplorados. Das receitas dos mestres-cucas de laboratório, está saindo a solução para problemas decorrentes da má nutrição do brasileiro. Desconhecido pela maioria da população, o cardápio da mata pode ser saboroso, barato e nutritivo, além de oferecer uma fonte de renda a populações de pontos remotos do país. Safras imprevisíveis, preços altos, produção quase sempre insuficiente para atender até mesmo à demanda regional, desinformação e falta de hábito são problemas que, até agora, impediram que os alimentos silvestres chegassem à mesa, principalmente de quem passa fome.

Pomar da Amazônia guarda recordistas de vitaminas e inimigos do colesterol
Para que o brasileiro experimente farinha de pupunha, carne de caititu e cápsulas de camu-camu com alta concentração de vitamina C, as pesquisas espalhadas pelo país buscam conhecer o potencial nutricional dos alimentos, desenvolver o hábito de consumo e garantir meios para uma produção em escala comercial

A alimentação mundial depende hoje de poucas culturas. Embora existam 250 mil espécies de plantas no mundo (55 mil só no Brasil), apenas 33% delas já foram cultivadas. Cerca de 90% da população mundial têm sua alimentação baseada em apenas 20 espécies vegetais. Três delas - milho, trigo e arroz - respondem por 60% das calorias e 56% das proteínas consumidas pelo homem.

O mesmo ocorre com as frutas tropicais. No mundo há aproximadamente três mil espécies (no Brasil são encontradas cerca de 500 espécies). Mas, apesar da grande diversidade de espécies tropicais, só quatro são mundialmente conhecidas e têm mercado consolidado nos países ricos como fruta fresca (consumo in natura ): a banana, a manga, o mamão e o abacaxi.

No caso das frutas da Amazônia, só o açaí e a castanha-do-brasil têm expressão, com mercados regional e internacional consolidados. Mas há pelo menos 50 espécies frutíferas nativas da Amazônia com potencial para novas culturas. São exemplos açaí, cupuaçu (essas duas já são muito cultivadas), pupunha, bacaba, buriti, araçá-pêra, araçá-boi, patauá, pupunha, uxi, sapota-do-solimões, cubiu, biribá, abiu, cajá, muruci, cupuí, pajurá e guaraná.

José de Carvalho Urano, da Embrapa Pará, explicou que a área cultivada com fruteiras, na Amazônia brasileira, é pouco significativa. Por exemplo, enquanto as principais espécies frutíferas cultivadas na Amazônia ocupam aproximadamente 180 mil hectares, a área cultivada somente com citros, no Brasil, ultrapassa a barreira de 1 milhão de hectares.

Nos últimos anos, o açaí tem despertado maior interesse e começa a se tornar conhecida em outras regiões do Brasil e do mundo. A Amazônia já exporta para outras regiões do Brasil cerca de 12 mil toneladas da bebida açaí - um refresco de consistência pastosa, rico em antioxidantes, fitoesteróis (substância que reconhecidamente age no organismo humano baixando o nível de colesterol) e fibras (importantes para o bom funcionamento do intestinos).

Uma outra fruta, completamente desconhecida e pouco estudada, é o uxi, rico em fitoesteróis e em fibras, além de apresentar alto teor de vitamina E. É uma fruta consumida ao natural ou na forma de refrescos e sorvetes. O uxizeiro não é cultivado, pois não se tem ainda tecnologia para formação de mudas. As sementes demoram bastante para germinar. Algumas só germinam três anos após a semeadura.

Pesquisadores também se esforçam para fazer o camu-camu - arbusto das regiões alagadas da Amazônia com grande valor nutricional por apresentar altos teores de vitamina C e potássio - chegar aos grandes centros consumidores. Ele está sendo enxertado em diferentes plantas para melhorar sua adaptação ao cultivo em terra firme.

O estudo é de Eduardo Suguino, pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba. A pesquisa, iniciada em 1999, pretende ampliar o aproveitamento econômico do camu-camu.

A exploração de camu-camu no Brasil é feita de forma irregular. Só a população ribeirinha tem acesso ao vegetal, colhido para fazer suco, doce, xarope, licor, goiabada e geléia. O camu-camu é parente da jabuticaba. A primeira descoberta foi na Amazônia peruana, mas existe também na Amazônia brasileira. Seu fruto é do tamanho de uma jabuticaba. Enquanto o limão tem 0,1 grama de vitamina C por 100 gramas de polpa e a acerola tem de 1,3 a 1,7 grama por 100 gramas, o camu-camu chega a 2,8 gramas.

Nos Estados Unidos, no Japão e na França, o vegetal é bem conhecido, vendido em tabletes como vitamina C orgânica (em torno de R$ 120 um vidro com 10 cápsulas). Existe até uma marca registrada, a Camu Plus. Estes laboratórios compram a polpa congelada no Brasil, onde há três fábricas fornecedoras.

O habitat natural dele são as regiões alagadas, às margens dos rios amazônicos. O desafio é tentar produzi-lo perto dos grandes centros consumidores. Há duas tentativas em andamento em São Paulo, uma delas feita pelo agricultor Satoro Sassaki no Vale da Ribeira, onde plantou 5 mil pés de camu-camu. É uma região úmida, mas o camu-camu leva mais tempo para produzir os frutos (enquanto na Amazônia o prazo é de 2,5 anos, em São Paulo está em torno de quatro) e a produtividade também é inferior: três a cinco quilos por planta, contra os 10 a 15 quilos registrados na Amazônia.

- No campo, mesmo adubando, a planta tem mais exigências - disse o pesquisador, que estuda a possibilidade de enxertar o camu-camu em plantas da mesma família, como a jabuticaba, mais adaptada às condições climáticas da região.

Merenda escolar ecológica promete ajudar a salvar crianças da desnutrição
O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) criou um projeto para oferecer a crianças alimentos e frutos regionais que podem ajudar a combater desnutrição, anemia e falta de vitamina A

A nutricionista Lúcia Yuyama, coordenadora do projeto, explicou que a pupunha é proveniente da palmeira, cujos frutos variam de tamanho, cor e sabor. O projeto, financiado pelo Banco Mundial, utilizou a pupunha na merenda escolar como fonte para a recuperação de carências nutricionais.

Como a população tem o hábito de consumir a farinha de mandioca, os pesquisadores desenvolveram a farinha de pupunha e, para agradar à criançada, misturaram o produto no macarrão servido na merenda escolar. A pesquisa demonstrou que a farinha pode ser adicionada também ao mingau de tapioca, mingau de banana e na panificação.

Nem todos os alimentos silvestres são completamente estranhos à mesa dos brasileiros. Em Brasília, o engenheiro agrônomo José Flávio Lopes, da Embrapa-Distrito Federal, trabalha com hortaliças silvestres da família das cucurbitáceas, que engloba uma série de espécies nativas, como abóboras. Essas hortaliças silvestres se desenvolvem com facilidade no solo tropical.

O projeto de Lopes é colher amostras destas espécies com produtores locais, multiplicar as sementes e espalhar a cultura pelos quatro cantos do país. As sementes, que nunca sofreram qualquer processo de melhoramento genético, são levadas para a Embrapa e podem ser aproveitadas em outros lugares devido a sua resistência a pragas e doenças.

O banco de germoplasma do projeto já guarda três mil amostras de abóbora, mil de pepino e mil de melão e melancia, resultado de expedições feitas pelos pesquisadores em Goiás, Bahia, Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará.

- No Brasil, há uma valorização grande do que vem de fora. É uma questão cultural, embora o país tenha uma imensa reserva de recursos naturais - disse Lopes.

O biólogo Rudinei Mauro Arruda, da Embrapa Gado de Corte, no Mato Grosso do Sul, trabalha com o caititu ou cateto, uma espécie de porco selvagem, cuja carne já é muito consumida no Peru. Com o apoio de três países europeus (Espanha, França e Reino Unido), Brasil e Peru desenvolvem projetos para popularizar o consumo de caititu em suas próprias populações.

O caititu é um animal semelhante ao porco doméstico (este, importado da Europa), natural da Américas (ocorre do sul do Texas ao norte da Argentina). O peso máximo é de 20 quilos, mas a média de um adulto está em torno dos 15 quilos. Uma vantagem é o fato de ele consumir uma ampla gama de alimentos da região. Além disso, por mais paradoxal que pareça, o projeto tem um forte apelo ecológico, pois vai contribuir para a conservação de uma espécie que já desapareceu em algumas regiões do país.

O projeto está sendo conduzido desde 2002 e visa ao desenvolvimento de diversos sistemas de produção para a exploração sustentável do cateto na América Latina. A carne tem bom sabor, parecido com o do porco, porém, é mais seca e menos gordurosa. Já existem 21 criatórios no Brasil. Os preços ainda são altos, sendo que a bisteca chega a R$ 32,40. Normalmente é encontrado em restaurantes especializados.

Espécies do Cerrado e do Semi-árido abrem nova fronteira para nutrição
Em lugares de condições climáticas adversas, como no semi-árido nordestino, os alimentos silvestres podem servir de base para a agricultura familiar, pois já estão adaptados ao solo e não exigem insumos ou defensivos agrícolas.

Na Embrapa Semi-Árido, em Pernambuco, pesquisadores trabalham com espécies nativas com potencial para a agricultura familiar, sendo a principal delas o umbuzeiro. O engenheiro agrônomo Francisco Pinheiro de Araújo, responsável pelo projeto, disse que os negócios com umbuzeiro já giram em torno de US$ 7 milhões por ano.

O umbuzeiro é uma planta endêmica do semi-árido. Chega a atingir seis metros de altura e pode viver até 100 anos. Cada fruto contém 16 miligramas de vitamina C para 100 mililitros de suco. O consumo é feito em forma de suco, doce e geléia.

O projeto da Embrapa já distribuiu 10 mil mudas de umbuzeiro enxertado, que podem começar a produzir em quatro a cinco anos. Com isso, áreas nordestinas onde o umbuzeiro já havia desaparecido estão sendo repovoadas. Outro apelo importante é ausência de agrotóxicos no cultivo. Porém, apesar de todas as vantagens, poucos são os que experimentaram ou ouviram falar em umbuzeiro nos grandes centros consumidores do Sul e Sudeste.

- Além da questão cultural, enfrentamos a falta de produção, que hoje é extrativista e muito fragmentada. É preciso ter uma produção mais regular - disse Francisco.

Gláucia Maria Pastore, professora associada de bioquímica de alimentos e coordenadora do Laboratório de Bioaromas da Unicamp, afirmou que o Brasil poderia entrar competitivamente no mercado de alimentos funcionais se explorasse sua enorme biodiversidade praticamente intocada, sobretudo no que diz respeito a vegetais. Alimentos funcionais são aqueles que produzem efeitos metabólicos ou fisiológicos no homem, pela atuação de nutrientes no crescimento, desenvolvimento, manutenção e em outras funções normais do organismo humano. Esse tipo de comida tem uma função preventiva, porque o seu consumo produz menos gastos com saúde e hospitais.

Projeto em andamento no Cerrado selecionou cinco frutas praticamente desconhecidas para estudar seu potencial funcional (araticum, lobeira, banha-de-galinha, pequi, cagaita). Os cientistas buscam sobretudo por características antioxidantes - um dos mais cobiçados alvos dos alimentos funcionais, uma vez que poderiam impedir a degeneração das células.

- Não precisamos necessariamente de transgênicos, só com o que dispomos (biodiversidade) podemos ter produtos de valor agregado maravilhosos. Nossa abundância acaba sendo nossa ruína. Não sei se as pessoas estão levando isso a sério no Brasil. No Japão, não se desperdiça nem uma raiz - afirma.

Saiba Mais
Futuro orgânico

Especialistas não acreditam que os chamados alimentos orgânicos - cultivados sem produtos químicos - tenham um dia produtividade suficiente para matar a fome do mundo. Mas, segundo um estudo na revista "Nature", os orgânicos serão cada vez mais consumidos, a despeito do preço mais alto, em países ricos por consumidores em busca de qualidade. O país onde os orgânicos mais avançam é a Áustria.

A beleza que perfuma e não engorda

Uma das últimas fronteiras abertas em busca de alimentos melhores não está nos campos nem nos laboratórios, mas nos jardins. Consideradas apenas enfeites pela maioria das pessoas, as flores podem chegar à mesa no prato. Coloridas, elas têm vitaminas e não engordam. O botânico Gil Felippe, que dedicou boa parte de sua carreira à divulgação das maravilhas do mundo vegetal, se encanta ao lembrar do sabor dos amores-perfeitos, da forma caprichosa da chaguinha ou do perfume dos lírios. Em "Entre o jardim e a horta", (Ed. Senac) ele relaciona mais de cem espécies de flores comestíveis, que podem sair do jardim diretamente para o prato. Flores sozinhas não sustentarão ninguém, mas Felippe diz que pelo menos deixarão o prato mais colorido e a mesa, perfumada. Ele recomenda, por exemplo, albinas e ipês-amarelos e convida as pessoas a serem mais ousadas e visitarem o jardim quando pensarem numa salada.

O Globo, 09/06/2004, Especial "A Nova Comida", p. 1-24

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