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Nossos vizinhos africanos

O Globo, Sociedade, p. 27
10 de Mai de 2017

Nossos vizinhos africanos

Cesar Baima

RIO - Quando os primeiros humanos modernos (Homo sapiens) surgiram na África, há cerca de 200 mil anos, é bem provável que outras espécies de humanos ainda habitassem o continente. Até agora, porém, os registros fósseis não traziam evidências da convivência de nossa espécie com outras mais arcaicas na região. Mas análises recém-concluídas dos restos de uma destas espécies humanas antigas encontrados em uma rede de cavernas na África do Sul indicam pela primeira vez que isso teria acontecido de fato. Conhecidos como Homo naledi, eles teriam vivido entre 236 mil e 335 mil anos atrás naquela área, época que coincide com a que se acredita que o Homo sapiens evoluiu na África subsaariana.
- Ninguém imaginou que estes hominídeos arcaicos, de cérebro pequeno, pudessem ter existido por tanto tempo e num período que é exatamente o momento que achamos que os humanos modernos estavam surgindo aqui na África - resume Lee Berger, pesquisador da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, e líder do projeto responsável pela descoberta original dos fósseis do Homo naledi em 2013, sua primeira descrição formal em 2015 e agora sua datação, contextualização e anúncio do achado de ainda mais restos da espécie em outra caverna do complexo de Rising Star, cerca de 50 quilômetros a Noroeste de Joanesburgo, relatados em uma série de três artigos publicados ontem no site científico de acesso aberto "eLife".
A constatação de que os fósseis do Homo naledi são tão recentes surpreendeu os cientistas. Inicialmente, eles imaginavam que a espécie, um mosaico de características anatômicas associadas aos humanos modernos com outras típicas de hominídeos mais arcaicos, era bem mais antiga, remontando a pelo menos 1 milhão de anos. Com altura estimada em 1,5 metro em postura ereta e pesando em média 45 quilos quando adultos, os H. naledi, por exemplo, tinham mãos com dedos extremamente curvos, adaptadas tanto para o uso de ferramentas quanto para escalar árvores, ajudadas por um torso largo similar ao de hominídeos mais arcaicos. Já seus pés são praticamente indistinguíveis dos de humanos modernos, e junto com suas longas pernas indicam que eles eram capazes de caminhar eretos grandes distâncias. Seu cérebro, no entanto, ainda era muito pequeno, do tamanho aproximado de uma laranja, ou o equivalente ao de um gorila atual. Os dentes, por sua vez, também são pequenos, sendo assim mais parecidos com os nossos do que os de outras espécies humanas antigas.
- Quando primeiro identificamos os fósseis, a maior parte dos paleoantropólogos no local ficaram convencidos de que eles teriam 1 milhão ou 2 milhões de anos de idade, mas agora mostramos que eles são muito mais recentes - lembra Paul Dirks, professor da Universidade James Cook, na Austrália, que liderou o processo de datação dos restos envolvendo 19 outros cientistas de laboratórios e instituições ao redor do mundo. - Isto significa que um hominídeo arcaico persistiu na paisagem da África por um período muito substancial de tempo, muito maior do que os paleoantropólogos previam ser possível.
Alguns, no entanto, suspeitaram que os fósseis poderiam ser mais recentes. Foi o caso de Marina Elliott, também pesquisadora da Universidade de Witwatersrand e um dos "astronautas subterrâneos" originais do projeto que descobriram os primeiros fósseis na caverna de Dinaledi ("estrela" em sesoto, língua bantu oficial na África do Sul e no Lesoto), que se esgueiraram por uma passagem de apenas 18 centímetros de diâmetro para colher os restos.
- Escavei centenas de ossos do Homo naledi e desde o primeiro que toquei percebi que havia algo de diferente na sua preservação, que eles pareciam pouco fossilizados - conta.
Impacto nos estudos de arqueologia e evolução
A possibilidade de que os Homo naledi tenham sido "vizinhos" de nossos antepassados Homo sapiens na África também tem um forte impacto nas pesquisas paleoarqueológicas no continente, exigindo uma revisão da noção de que todas as ferramentas desencavadas lá e datadas a partir de aproximadamente 200 mil anos atrás teriam sido produzidas pelas mãos dos humanos modernos.
Além disso, a descoberta de mais restos de Homo naledi numa caverna próxima no complexo de Rising Star reforça a ideia de que a área, remota e de difícil acesso, era usada como um tipo de "cemitério" por esse grupo de humanos arcaicos, indicando a adoção de práticas funerárias que até recentemente se pensavam serem exclusivas dos humanos modernos. Batizada Lesedi ("luz", desta vez na língua setswana, também da família bantu e muito falada na região), essa caverna é ainda mais difícil de ser alcançada do que a de Dinaledi, forçando os pesquisadores a engatinharem, escalarem e depois se espremerem por uma passagem de apenas 25 centímetros de diâmetro para recuperar os fósseis.
Em Lesedi, os cientistas encontraram mais de 130 fragmentos de ossos e pedaços de esqueletos que acreditam pertencerem a no mínimo três indivíduos, dois adultos e uma criança, todos com características que os colocam também como indubitavelmente pertencentes a exemplares do Homo naledi. Um dos adultos, apelidado Neo ("presente", também em setswana), é inclusive um dos fósseis de hominídeos tecnicamente mais completos já encontrados na África. Ele teve o crânio reconstruído num trabalho meticuloso que deu aos pesquisadores o primeiro vislumbre de como era a aparência da espécie.
- Não podemos mais presumir que sabemos que espécie fez quais ferramentas, ou mesmo presumir que foram os humanos modernos os inovadores responsáveis por avanços críticos na tecnologia e no comportamento observados no registro arqueológico da África - afirma Berger. - Se havia ao menos uma outra espécie lá fora compartilhando o mundo com os humanos modernos na África, é bem provável que houvesse outras. Precisamos apenas encontrá-las.
Diante de tantas implicações trazidas pelos novos detalhes sobre os Homo naledi, especialistas brasileiros destacam que a publicação destes estudos era esperada ansiosamente pelos pesquisadores na área.
- A datação mais recente do H. naledi com certeza vai alimentar vários debates - considera Silvia Reis, bioarqueóloga do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ. - Se conseguirem extrair e analisar parte do DNA, provavelmente teremos que repensar vários elementos (sobre a evolução dos humanos modernos).
Na mesma linha segue Danilo Vicensotto Bernardo, coordenador do Laboratório de Estudos em Antropologia Biológica, Bioarqueologia e Evolução Humana do curso de Arqueologia da Universidade Federal do Rio Grande (RS):
- Se as datações, e as interpretações, de Berger e colaboradores estiverem corretas, a sequência e cronologia de eventos e novidades evolutivas na linhagem humana podem ser diferentes daquelas que acreditamos até aqui.
Colaborou Mariana Alvim

O Globo, 10/05/2017, Sociedade, p. 27

https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/descoberta-sobre-homo-naledi…

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