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'Nossos produtos naturais são um enorme capital'

O Globo, Razão Social, p. 4-6
Autor: SILVA, Marina
03 de Set de 2007

'Nossos produtos naturais são um enorme capital'

Por Amélia Gonzalez
Enviada especial a Brasília

Entrevista : Marina Silva, ministra do Meio Ambiente

Entrevista já estava no meio quando a assessora da ministra Marina Silva pediu para interromper. Estava acontecendo em enorme incêndio em Itatiaia, no Rio, e pediam apoio da ministra para conseguir dois helicópteros. Ela se inquietou, lamentou, deu dois telefonemas e resolveu o assunto. Outros telefonemas e interrupções aconteceram. A ministra do Meio Ambiente é uma pessoa requisitada, solícita, e quando está com apenas um interlocutor, tem voz doce e suave. Mas a repórter teve chance de ver Marina Silva, naquela mesma manhã, em reunião com empresários. Ali ela não poupou a garganta e a veemência para falar a uma platéia 90% masculina sobre desenvolvimento sustentável. Uma das questões levantadas, é claro, foi o processo de licenciamento ambiental. Sem discussões: - É uma conquista da sociedade brasileira e tem trazido ganhos para todos nesta entrevista ela fala sobre o movimento de responsabilidade social e as relações de empresários com o governo.

O Globo : O governo está comemorando a redução do desmatamento na Amazônia. De que maneira as empresas, que hoje se mostram tão preocupadas com o meio ambiente, têm participação nessa redução?

Marina Silva : O que posso dizer é que essa redução foi resultado de uma ação de forças pesada do governo. Nós conseguimos levar o assunto para o centro do governo e envolvemos 13 ministérios na elaboração de um plano para a Amazônia de combate ao desmatamento em cima de três eixos estruturantes: ordenamento territorial fundiário, combate às práticas ilegais e apoio às atividades produtivas e sustentáveis. É claro que nessa parte do apoio às atividades produtivas e sustentáveis vamos encontrar uma diversidade de setores que tem dado uma parcela de contribuição. Mas, no caso da Amazônia o nosso maior desafio ainda é fazer com que o desmatamento deixe de ser uma ação quase que exclusivamente de força para ser um processo estruturante vinculado à dinâmica do próprio desenvolvimento econômico social.

O Globo : É nessa hora que entram as empresas?

Marina Silva: Já temos uma série de atividades que podem ser feitas com base sustentável: o apoio ao turismo, o manejo florestal sustentável .
Existem algumas empresas que fazem manejo florestal, existem boas práticas de turismo na Amazônia que já estão acontecendo e até há um ensaio do setor agrícola que está buscando a certificação.Para buscar certificação, precisam obedecer a um conjunto de ações, como o combate a formas sociais degradantes no trabalho, recuperação de áreas degradadas, o uso semiintensivo das áreas já convertidas para evitar avançar sobre novas áreas. Esse é o processo em curso que com certeza vai fazer parte da segunda parte do plano do governo.

O Globo : É como se o governo tivesse arrumando a casa para os empresários investirem?

Marina Silva: É um processo altamente virtuoso porque, para que as empresas possam se instalar com boas práticas sociais e ambientais têm que pegar um território limpo.
Afinal, é impossível uma empresa que quer fazer as coisas ambientalmente corretas, socialmente justas, competir com aquelas que fazem grilagem de terra, que praticam trabalho escravo, que fazem extração irregular de madeira ou qualquer outra prática. Desde que nós começamos esse trabalho conseguimos aumentar no setor florestal uma grande quantidade de empresas certificadas.

O Globo : E a quantidade de floresta nativa certificada aumentou também?

Marina Silva: Até 2002 nós tínhamos cerca de 300 mil hectares de floresta nativa certificada na Amazônia. Com essas ações todas, as pessoas corretas ganharam condições de investir e hoje já são 3 milhões de hectares de floresta certificada na Amazônia.
Com a aprovação da lei de gestão de florestas públicas e a criação do Serviço Florestal Brasileiro esse número vai aumentar significativamente. É o que eu chamo de a segunda parte. O estado, fazendo sua obrigação, torna o espaço competitivo para aqueles que querem se instalar de forma duradoura e não apenas fazer uma economia de rapina social, de rapina ambiental, que não leva a nada.

O Globo : Quais os números que merecem tanta comemoração?

Marina Silva: Chegamos a 27 mil km de floresta desmatada em 2004, em 2005 esse número caiu para 18 mil, em 2006 para 14 mil e em 2007 vai para 9.600. São três anos consecutivos de queda e a previsão é que essa é a maior queda.

O Globo : É possível falar em desenvolvimento e preservação de meio ambiente?

Marina Silva: É possível. E sem isso nós estaremos comprometendo significativamente as economias dos países ricos e pobres, mas de uma forma muito particular as economias em desenvolvimento. O Brasil tem 50% do seu PIB baseado na sua biodiversidade. Destruir esse imenso patrimônio é destruir 50% da base material do nosso PIB. Ninguém sai destruindo suas indústrias, seu capital de desenvolvimento. E nossos produtos naturais são um capital enorme, é o que nos faz ter vantagem competitiva com outros países. Somos grandes produtores de grãos em função dessas vantagens, somos grandes produtores de carne em função dessas vantagens.
Destruir essas vantagens é prejudicar a nossa economia.

O Globo : Mas nós vemos muita destruição...

Marina Silva: O problema é que as pessoas ficam focadas no lucro de apenas alguns anos e comprometem os recursos de milhares e milhares de anos. A crise ambiental que estamos vivendo hoje, com as mudanças climáticas, está obrigando a uma reavaliação dessa visão extrativista. Ela não tem base científica, não tem base ética, não tem base técnica para se sustentar. O grande esforço civilizatório que se está fazendo é de uma inflexão no sentido de fazer com que a equação desenvolvimento seja igual a viabilidade ambiental e a viabilidade ambiental possa também promover o desenvolvimento. As duas coisas fazem parte uma da outra e nesses últimos quatro anos temos trabalhando muito fortemente para isso. Estabelecemos diretrizes que orientam a nossa ação.

O Globo : Quais são essas diretrizes?

Marina Silva: Uma delas, que é muito forte, é do controle da participação da sociedade. Esse resultado é fruto de um trabalho intenso que levou mais de 500 pessoas à cadeia; de desconstituição de 1.500 empresas criminosas; à inibição de 66 mil propriedades de grilagem; à apreensão de um milhão de metros cúbicos de madeira, aplicação de R$ milhões em multas. Tudo isso colabora para a redução desse índice de desmatamento. Mas também é fruto de uma forte percepção da sociedade, que começou a exigir cada vez mais transparência sobre essa questão do desmatamento.

O Globo : A demanda social teve um papel importante, então.

Marina Silva: Claro. Por que não se conseguiu fazer isso há dez, vinte anos? Há vinte anos estavam matando Chico Mendes e a Polícia Federal e a Polícia Militar do Exército eram utilizadas não para expulsar os grileiros e fazendeiros que estavam derrubando ilegalmente floresta, mas para cumprir os mandados judiciais contra os seringueiros e os índios que estavam defendendo a floresta. Hoje é exatamente o contrário. A operação Curupira que aconteceu em 2005 foi o esforço de uma investigação de 22 meses de parceria do Ibama com a Polícia Federal que fez com que nós tivéssemos ali um contingente de 32 agentes do Ibama e 480 policiais federais. E eu fiquei extremamente emocionada com aquilo porque, na minha juventude, o que acontecia era que o estado brasileiro, pago pelos nossos impostos, dava cobertura aos que estavam destruindo a floresta.
Índios, seringueiros, pescadores, não tinham nenhum tipo de apoio ou política pública. Então, é uma demanda da sociedade, e quanto mais transparente nós formos, quanto mais controle da sociedade, mais serão importantes os nossos resultados.
Quando as pessoas começarem a exigir que os produtos, para entrar nas prateleiras do mercado, não podem prejudicar o meio ambiente, com certeza as empresas todas acharão um jeito de fazer com que isso aconteça. E todos os políticos acharão um jeito de se comprometer e colocar na sua plataforma o compromisso com a sustentabilidade econômica, social, ambienta, cultural, ética.

O Globo : Muitos empresários se queixam das compensações. Isso vai mudar?

Marina Silva: No governo anterior foi estabelecido uma metodologia e um teto de até 5%. Quando nós entramos aqui verificamos que a metodologia que estava estabelecida tinha uma série de problemas, ela incidia sobre itens que já haviam sido mitigados.
Se não for feita a subtração daquilo que são recursos utilizados para melhorar ambientalmente a qualidade do empreendimento, você estará fazendo uma dupla incidência no ponto de vista ambiental. Fizemos uma revisão de metodologia para ter mais objetividade. Estamos aguardando agora a decisão, que está na Casa Civil. A proposta que nós fizemos foi de um teto de até 3%. O certo é que existem alguns danos que não são mitigados em relação à perda da biodiversidade, em relação à perda de paisagem. Nesses casos, você tem o mecanismo de compensação ambiental.

O Globo : Os críticos têm medo que as empresas tomem o lugar do Estado. O que a senhora acha disso?

Marina Silva: Uma das questões que os empresários colocam muito é que eles não podem arcar com todos os custos sociais dos empreendimentos porque este é um papel do Estado. Mas é preciso diferenciar: as questões para mitigar impactos sociais são do empreendimento. O que for da natureza do Estado deve ser feito pelo Estado.
Temos um exemplo: na BR-163 (que liga Cuiabá a Santarém) os problemas sociais estão sendo tratados por políticas públicas, questões ligadas a benefícios sociais que aquelas populações nunca tinham recebido. Não advogamos que as empresas devam fazer o papel do Estado, mas que é possível fazer parceria, isso é possível. Além do mais, aquilo que elas estão querendo fazer como responsabilidade social não é uma coisa de mão única porque as empresas acabam utilizando isso no seu marketing, associando à sua imagem.

O Globo : Há como diferenciar as empresas que fazem ações por puro marketing daquelas sérias?

Marina Silva: Os empresários que se firmam e ganham credibilidade o fazem em função de uma visão. Os que fizerem pensando apenas na vantagem de imagem acabam não conseguindo firmar credibilidade em seus produtos. E existem aquelas que extrapolam, pegam parte de seu lucro e passam a fazer investimento no setor ambiental. E não são só as empresas estrangeiras, não. Já recebemos doações de até R$ 1 milhão de dólares de corporações nacionais.

O Globo : Essa parceria entre empresas e Estado é o melhor dos mundos?

Marina Silva: Eu acho que o mundo que a gente precisa construir é aquele em que o setor público tenha responsabilidade social e o privado não esteja visando apenas à produção de dinheiro. Pode parecer sonhador, mas de nada vai adiantar o acúmulo de dinheiro se daqui a alguns anos, com o esquentamento do clima, países inteiros desaparecerem.

O Globo : Vai demorar a chegar? MARINA SILVA : As pessoas estão percebendo que parte dos nossos investimentos devem ser devolvidos para a preservação da natureza. Não adianta nada acumular dinheiro em meio a um país que continua analfabeto, violento, completamente degradado socialmente. Essa responsabilidade com o interesse público é também da cultura empresarial. No Brasil temos inúmeros exemplos, como o Instituto Ethos, que trabalham para alargar essa percepção até para os setores que eram refratários. Hoje está se discutindo no Mato Grosso a certificação para a agricultura. Até bem pouco tempo eu fui lá fazendo esse discurso e foi difícil a aceitação.

O Globo : Mas ainda há problemas. Por exemplo: por que nenhuma empresa se interessou em asfaltar a BR-163? Porque não é lucrativa?

Marina Silva: Não sei exatamente o que aconteceu.
Em 2002 foi anunciada a feitura da estrada em consórcio privado. Quando nós chegamos, pedimos um tempo porque a estrada seria de alto impacto ambiental, com danos irreparáveis para as comunidades locais, o meio ambiente. E trabalhamos o programa de desenvolvimento sustentável da BR, que fez todo um arranjo de combate à grilagem, de criação de unidade de conservação, de demarcação de terra indígena, de apoio às práticas produtivas sustentáveis. E com isso se viabilizou uma licença numa situação de governança ambiental. O consórcio privado perdeu o interesse pelo empreendimento e foi criado paralelamente um consorcio sócio-ambiental, que está funcionando muito bem.
A licença foi dada, com o apoio de diferentes segmentos da sociedade, para 800km mas o que está sendo asfaltado são 80km. E hoje o consorcio sócio-ambiental cobra que se faça a estrada, é claro, porque é importante para o desenvolvimento regional. É uma dinâmica nova. Existiu uma situação de lucro desenfreado no início.
Aparentemente seria uma vantagem para alguns. Mas, ao contrário, em um prazo curto aquilo ali estaria completamente colapsado. A opção do governo foi fazer um processo estruturado e duradouro, ainda que tivesse que assumir com as responsabilidade sociais, ambientais, e agora com o próprio asfaltamento.

O Globo : Al Gore, com o vídeo "Verdade inconveniente", ajudou a criar uma consciência em alguns...

Marina Silva: Sim, os relatórios do IPCC também criaram impacto na opinião pública. Os governos têm que correr atrás da opinião pública, as empresas estão correndo atrás da opinião pública, e ela exige medidas.
Em última instância, é uma visão civilizatória que está sendo colocada para todo mundo de forma horizontalizada: quem pode mais, deve fazer mais.

O Globo : O papel do terceiro setor tem sido importante?

Marina Silva: Imagina se não tivessem atuado ao longo dos últimos 20 anos? Esses núcleos vivos da sociedade são alimentadores de um sistema maior que muitas vezes se conforma aonde a bola está.

O Globo : O Brasil é apontado, em pesquisas, como um país que está na linha de frente na questão da responsabilidade social. Por quê?

Marina Silva: Os países em desenvolvimento têm muito forte a necessidade da cooperação. Faz parte da nossa cultura, da nossa história. E se essa cooperação adquire um sistema mais abrangente, ela perde esse caráter de caridade. É porque nós estamos trabalhando num processo de longo prazo, é porque os países ricos já têm suas economias conformadas, já atenderam as necessidades básicas, elementares dos seus cidadãos, e nós ainda não.

O Globo : O que a senhora acha da obrigação de reduzir a emissão de carbono?

Marina Silva: Eu sempre repito que nós não temos que fazer um cavalo de batalha em relação a isso. Hoje nós criticamos as emissões históricas dos países desenvolvidos, a grande quantidade de emissões que eles têm e o que os antepassados nos deixaram de herança. Mas, daqui a 20, 30 anos, serão outra geração estará cobrando de nós. E eu não quero o direito de cometer os mesmos erros. Eu quero ser ajudada para que a nossa matriz energética continue limpa. Eu quero ter tecnologia para que a nossa biodiversidade possa ser utilizada em bases sustentáveis, eu quero que os nossos biocombustíveis sejam uma alternativa econômica social.

O Globo, 03/09/2007, Razão Social, p. 4-6

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