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'Nós Yanomami apresentamos uma grande descoberta para os cientistas'

Instituto Socioambiental Medium https://medium.com
Autor: Roberto Almeida
01 de Jul de 2019

Quando vista do espaço, a Reserva Florestal Adolpho Ducke, na periferia de Manaus (AM), parece um enorme quadrado verde prestes a ser engolido pela mancha urbana. Gerida pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), a área de estudos do Programa Programa de Pesquisa em Biodiversidade, equivalente a 10 mil campos de futebol, é um grande laboratório ao ar livre que já rendeu dezenas de teses de mestrado e doutorado.

Duas mulheres, Floriza da Cruz Pinto Yanomami e Maria de Jesus Lima Yanomami, respectivamente presidente e conselheira da Associação de Mulheres Yanomami Kumirãyõma, conheceram o grande quadrado verde no início de 2017. Caminharam, procuraram, procuraram e não encontraram aquilo que sempre encontram na mata perto de onde moram: um fio preto que só tem nome na língua yanomami. O përisi.

Encontraram, como relembra Floriza, só mesmo a "cunhada (natohipë) do përisi", um fungo semelhante no formato, o que ajudou a etnomicóloga Noemia Kazue Ishikawa e o pós-doutorando (CAPES) em botânica Jadson Oliveira, ambos do Inpa e anfitriões das yanomami, a entenderem que o parentesco entre as espécies indicava, de fato, que o përisi era um rizomorfo. Isto é, uma estrutura de fungo que se assemelha a uma raiz.
"Foi assim que os dois universos, o Yanomami e o acadêmico, se conectaram", relembra Marina Vieira, pesquisadora do Instituto Socioambiental (ISA), que facilitou o contato entre as yanomami e o Inpa.

A única certeza até então era que as mulheres Yanomami usavam um fio preto, entremeado ao cipó claro e a partes pintadas com urucum, para gerar grafismos únicos em sua cestaria. No livro Urihi A: A terra-floresta Yanomami (2009), de Bruce Albert e William Milliken, há uma breve menção ao përisi como rizomorfo - sem qualquer detalhamento.

Ironicamente, em vez de atrair a atenção dos compradores, por vezes o fio acabou confundido com plástico tanto por indígenas como por não-indígenas. Descrevê-lo em uma pesquisa tornou-se um imperativo para as mulheres da associação.

"Eu mesma achei que fosse plástico", diz Noemia Ishikawa, sorrindo com gosto, em um restaurante de Manaus. Uma das principais estudiosas de fungos do país, ela ri alto quando lembra que não se deu conta. "Eu tenho um cesto há anos que nunca perdeu o brilho. E pensava: não é possível que isso seja natural. Mas era. É nesse ponto que eu entendo que houve uma inovação por parte das mulheres Yanomami."

Segundo relatos das próprias Yanomami da região de Maturacá, o uso do përisi na cestaria, inédito entre povos indígenas, remonta à década de 1970, e não a tempos imemoriais como era de se imaginar. Ou seja, utilizar um fungo escuro, de até um metro de comprimento, resistente e brilhante pode ter sido uma solução recente e inovadora para, em última instância, mudar toda a cadeia produtiva do artesanato local.

Pouco tempo depois da expedição na Reserva Florestal Adolpho Ducke, em Manaus, a Associação de Mulheres Yanomami Kumirãyõma convidou Noemia e Jadson a conhecer os locais de coleta do përisi no Igarapé Batatal, próximo à comunidade Maturacá, Terra Indígena Yanomami, onde moram. E, por meio de uma carta, enviou e eles amostras do përisi para avaliação.

"Por meio desta carta, solicitamos a colaboração de vocês na identificação das amostras coletadas durante a pesquisa. Também solicitamos que as amostras sejam devolvidas à nossa associação assim que a identificação for concluída", diz o texto.
As mulheres yanomami não imaginavam que, em 2019, a descrição dessa nova espécie de fungo iria se tornar um livro: Përisi - o fungo que as mulheres yanomami usam na cestaria, em edição bilíngue Yanomami - Português.

E que elas, representadas por Floriza e Luiza Góes de Lima Yanomami, seriam celebradas no Museu da Amazônia, em Manaus, orgulhosas de sua pesquisa e de seus cestos, em evento com participação de pesquisadores e da imprensa, como autoras de uma descoberta científica.

Beleza, saúde e alegria
É impossível falar da região do Maturacá, oeste da Terra Indígena Yanomami, onde vivem Floriza, Luiza, Maria de Jesus e tantas outras yanomami, sem falar no Parque Nacional Pico da Neblina (clique aqui para ver no mapa). O pico, chamado de Yaripo pelos Yanomami, é o ponto mais alto do Brasil, com 2.995 metros de altitude. Desejo de escaladores do mundo inteiro, fica poucos quilômetros ao norte do Maturacá.

A visitação, que sempre ocorreu de maneira informal, e muitas vezes ilegal, está fechada. A previsão para uma primeira expedição é 2020. O roteiro desenhado pelo projeto Yaripo - Ecoturismo Yanomami está estruturado, e o plano de visitação foi aprovado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), gestor do parque. Os guias serão os próprios Yanomami e há uma longa lista de espera (saiba mais).
Uma das áreas de coleta do përisi, no Igarapé Batatal, fica a poucas horas de voadeira ao sul da comunidade, descendo pelo Rio Cauaburi, afluente do Rio Negro.
Ou seja, uma região de fronteira onde vivem quase 2 mil Yanomami, que sofre com o garimpo ilegal de ouro e passou por maus bocados com o turismo descontrolado, vetores de destruição e epidemias, começa a emergir a partir da valorização do conhecimento tradicional dos Yanomami, que se fortalecem seja pelo trabalho dos guias até o Yaripo, seja pelo trabalho da cestaria com o përisi.

"As pessoas que vêm para o Yaripo vão comprar mais na cidade [em São Gabriel da Cachoeira (AM), ponto de partida dos visitantes]. As lojas vão vender mais, a economia vai se movimentar. E a nossa também, porque os guias vão fazer seu trabalho e receber, e as mulheres vão poder vender os cestos para quem vier conhecer", diz Francisco Xavier Yanomami, presidente da Associação Yanomami do Rio Cauaburi e Afluentes (Ayrca), que gere o projeto Yaripo.
As mulheres Yanomami de Maturacá contam que, durante muito tempo, levavam seus cestos para vender em São Gabriel da Cachoeira sem sucesso. Desvalorizados, elas conseguiam, no máximo, trocar por um pouco de comida ou uma peça de roupa. "As pessoas diziam: 'Ih, naka (irmã, em yanomami), baixa o preço, está muito caro'", relembra Floriza, com desalento.

A virada de chave aconteceu em 2015, com a fundação da Associação das Mulheres Yanomami Kumirãyõma, em conexão direta com o Departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), principal entidade indígena da região. Entre as ações, o departamento ofereceu uma oficina para melhorar o acabamento da cestaria, e compra parte da produção de cestos por meio da loja Wariró, em São Gabriel da Cachoeira, gerida pela Foirn.

O avanço que as mulheres yanomami conseguiram em apenas quatro anos de trabalho emociona Almerinda Ramos de Lima, diretora-executiva da federação. "A mulher indígena é agricultora, artesã, tem filhos e trabalha na associação para representar a todos sem ganhar nada com isso", resume. "É espírito de luta pela coletividade."

A apresentação do livro Përisi diz: "Kumirãyõma é um espírito feminino que traz beleza, saúde e alegria para as mulheres". E continua: "A motivação para o desenvolvimento desta pesquisa [sobre o fungo] foi reacender o interesse das mulheres mais jovens pelos conhecimentos tradicionais relacionados à confecção das cestarias."

Trançados com esmero
Dia 22 de junho, a II Assembleia Eletiva das Mulheres Kumirãyõma caminha para seu segundo dia no Ginásio Padre Antônio Góes, da Missão Salesiana, ao lado da comunidade Ariabu, Terra Indígena Yanomami.

Cercada por mulheres, Elidiane Góes Yanomami anota e organiza os cestos recebidos das mulheres das comunidades de Nazaré, Maturacá e Ariabu para serem levados à GaleriAmazônica, importante ponto de venda no centro histórico de Manaus (AM), e então vendidos para o público em geral.
"Francisca, 1 Xotó com përisi/2 Wii com përisie cipó com urucum", diz, por exemplo, o caderno de controle de produtos, que se acumulam aos poucos, trazidos pelas mulheres de suas casas.

As mulheres yanomami tradicionalmente fazem os cestos Wii, mais altos, usados para carregar mandioca, e o Xotó, mais baixo e aberto, para guardar alimentos em casa. Há ainda variações que elas aprenderam com outros povos indígenas do Alto Rio Negro e com os não-indígenas, como o cesto com tampa, chamado de Motorohima.

Todos fazem parte da iniciativa Origens Brasil®, que promove relações comerciais éticas e transparentes (saiba mais). Todos eles podem levar o përisi. O fungo aparece trançado em linhas simples, duplas, triplas, na horizontal, vertical ou diagonal. Alguns grafismos remetem aos desenhos de couros de cobras, como a jiboia e a sucuri. Mas não há uma rigidez de estilo. Há espaço para a inovação.

Elidiane, sempre que recebe uma peça diferente, levanta-a orgulhosa e diz à reportagem do ISA: "E esse aqui, hein?" É uma versão de Xotó com alças, pintado com urucum e adornado com përisi. Ou, ainda, um Wii inteiro vermelho de urucum com grafismos feitos com përisi.

Luiza Góes de Lima Yanomami, uma das principais pesquisadoras do përisi, entrega a Elidiane os dois Motorohima, cestos com tampa, que produziu para serem vendidos em Manaus. Trançados com esmero, firmes e resistentes, a qualidade do acabamento se deve à habilidade da artesã em combinar o cipó e o përisi.
O dinheiro obtido com a venda da cestaria ajuda a complementar a renda das famílias yanomami da região. Algumas guardam as quantias até acumular o suficiente para ir até a cidade mais próxima, São Gabriel da Cachoeira, para comprar utensílios, roupas e panelas que facilitem suas vidas no dia a dia.
Em um dos pontos mais importantes do dia na assembleia, Luiza, Elidiane e as demais pesquisadoras que trabalharam na iniciativa são chamadas pela presidente da Kumirãyõma e se alinham para receber em primeira mão o resultado de seu trabalho nos últimos anos: o livro Përisi - o fungo que as mulheres yanomami usam na cestaria.

O momento é definitivo, e mostra que elas são donas de seus saberes.

Aos sabedores, o protagonismo
A ciência convencional conseguiu, até o momento, descrever cerca de 140 mil espécies de fungos. Um número tímido perto do potencial de até 3,8 milhões de espécies estimadas por pesquisadores. No caso do përisi, o fungo esteve por muito tempo diante de micólogos, antropólogos, biólogos, entre outros, até ser de fato descoberto e catalogado. E dificilmente teria sido não fosse a iniciativa das mulheres yanomami.

O fungo, após extenso processo de identificação e catalogação, recebeu seu nome científico. "Junto com os cientistas, concluímos que përisi é uma espécie de Marasmius [gênero de fungo] nova para a ciência, e decidimos batizá-la com o nome yanomami, assim seu nome em latim será Marasmius yanomami. É um nome que valoriza o conhecimento yanomami sobre a floresta", afirmam as mulheres da associação no livro.

Para a etnomicóloga Noemia Kazue Ishikawa, do Inpa, que acompanhou o processo desde o início, a ciência estudada pelos pesquisadores da academia provou-se útil para o registro dos saberes indígenas. E o registro, por sua vez, colabora na cadeia de comercialização das cestarias e na geração de renda das mulheres yanomami.

"É importante destacar o protagonismo das Yanomami no registro do conhecimento delas", ressalta. "Além disso, é uma espécie nova de fungo descrita e lançada em um livro 'popular' e não em um artigo científico, o que é um passo além das expectativas iniciais de qualquer pesquisador."
Noemia, entusiasta das pesquisas interculturais com povos indígenas (e por isso o prefixo etno- antes de micóloga), já participou do trabalho com os cogumelos entre os Sanöma, um subgrupo Yanomami da região do Auaris, que se tornou um livro premiado (Ana Amopö: Cogumelos Yanomami) e, mais ainda, um produto alimentício reconhecido: o Cogumelo Yanomami.

A experiência, segundo ela, trouxe um entendimento.

"Há saberes que nem sabemos que existem sabedores deste saber. São os saberes que não estão em livros, artigos ou internet", afirma a pesquisadora. "Mas são saberes que estão sendo mantidos ou sendo gerados no interior da Amazônia por povos que vivem e geram conhecimento distantes da academia científica convencional."

Serviço:
O livro Përisi - o fungo que as mulheres yanomami usam na cestaria é vendido pela Associação de Mulheres Yanomami Kumirãyõma.
Ele pode ser encontrado na GaleriAmazônica, em Manaus.
Para adquirir, escreva para: galeria@waimiriatroari.org.br
Telefone: (92) 3302-3633
Siga a GaleriAmazônica no Instagram: @galeriamazonica
Os cestos Yanomami podem ser encontrados em:
MANAUS (AM):
GALERIAMAZÔNICA
Rua Costa Azevedo, 272. Largo São Sebastião, Manaus (AM)
(92)3302-3633, galeria@waimiriatroari.org.br
www.facebook.com/GaleriAmazonica
MUSA - MUSEU DA AMAZÔNIA (MUSA Jardim Botânico)
Av. Margarita, 6.305. Jorge Teixeira - Manaus, AM
Tel. (92) 3582-3188
www.museudaamazonia.org.br
SÃO GABRIEL DA CACHOEIRA (AM)
WARIRÓ - Casa de Produtos Indígenas do Rio Negro
Tel.: (97) 3471-1450
https://www.facebook.com/CasaDeProdutosIndigenasWariro/
BOA VISTA (RR):
RORAIMA ADVENTURES
Rua Coronel Pinto, 97.Centro. Boa Vista - RR.
https://roraimaadventures.com.br/
SÃO PAULO (SP):
INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL
www.socioambiental.org
MERCADO DE PINHEIROS - BOX AMAZÔNIA/MATA ATLÂNTICA
Rua Pedro Cristi, 89 - Pinheiros - SP
www.mercadomunicipaldepinheiros.com
www.institutoata.org.br/pt-br/biomas.php
LIVRARIA DA TRAVESSA (IMS PAULISTA)
www.travessa.com.br
AMOA KONOYA ARTE INDÍGENA
Rua João Moura, 1002 - Jardim América - São Paulo - SP
Tel: 55 11 3061 0639 | E-mail: amoakonoya@amoakonoya.com.br
FUCHIC
E-commerce e 02 lojas físicas
https://www.fuchic.com.br/
PARATY (RJ):
C.A.N.O.A ARTE INDÍGENA
www.facebook.com/arteindigenacanoa
E-COMMERCE:
TUCUM
www.tucumbrasil.com
DA FLORESTA DELBORGO
www.delborgo.com.br

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