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Nos trilhos da Maria louca

Isto E, Comportamento, p.52-55
02 de Fev de 2005

Turismo
Nos trilhos da Maria louca
Minissérie da Globo coloca Rondônia no roteiro de viagens. Locomotivas abandonadas dividem a paisagem com seringais, aldeias indígenas e hotel de selva
Camilo Vannuchi – Guajará-Mirim (RO)
"A locomotiva avançava lentamente, soltando fumaça. Era uma bela máquina, como um animal do período jurássico. (...) A vida fervilhava de maneira promíscua e os homens enlouqueciam naquele cenário cenozóico.”
A paisagem pré-histórica descrita por Márcio Souza em Mad Maria – romance lançado em 1980, que tem como pano de fundo a história da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré – ainda é visível ao longo do antigo trajeto da ferrovia. Centenário, o gigante maldito de 366 quilômetros que deu origem ao Estado de Rondônia e consumiu a vida de pelo menos seis mil trabalhadores em cinco anos de obras foi reduzido (pelo descaso oficial e pelos tentáculos da selva) a trechos esparsos de dormentes caducos. Sua idade, a julgar pelo avanço da floresta sobre os trilhos, parece muito maior que os 93 anos decorridos desde a inauguração, em 1912. Hoje, meia dúzia de locomotivas enfrentam sol e chuva nas praças centrais de Porto Velho e Guajará-Mirim, pontos de partida e chegada dos antigos comboios. Em ambas as cidades, as estações foram convertidas em tímidos museus com utensílios e documentos de época. A estréia da minissérie da Globo na semana passada promete intensificar o fluxo de visitantes em Rondônia, da mesma maneira que, 13 anos atrás, a novela Pantanal fez crescer o turismo em Mato Grosso do Sul.
A composição avançava descarregando suas negras volutas de fumaça como nuvens de uma pequena tempestade em formação, o limpa-trilhos aberto em leque, engolindo as linhas metálicas paralelas.” (Mad Maria)
Nas margens dos rios Madeira e Mamoré, o charme está na possibilidade de travar contato com um Brasil profundo onde a nostalgia impera. É fácil se transportar para o período em que a coleta de látex significava lucro certo e os índios caripuna dominavam a região. Em 2005, visitar locais normalmente esquecidos pela mídia é reencontrar uma modernidade precocemente decrépita, riscada dos livros de história. Quando a emissora de tevê apresentou o projeto da minissérie, o senso de oportunidade levou o governo do Estado a gastar cerca de R$ 600 mil na restauração de uma locomotiva, na construção de 2,5 quilômetros de trilhos e na logística necessária para manter na área das locações a equipe da Globo e o pessoal de apoio. O dinheiro foi investido na recuperação do nosso patrimônio e permitirá que todo o Brasil conheça nosso Estado. Hoje, ele não está sequer nos catálogos das principais operadoras do Brasil”, justifica Alexandre Pereira, superintendente estadual de turismo.
Para quem acompanha há décadas o avanço da ferrugem sobre as máquinas, não é certo fazer alarde da restauração de uma única locomotiva. Só a no 20 foi restaurada. As outras estão aí, ao relento”, reclama Dionísio Schockness, 83 anos, ex-maquinista na Madeira-Mamoré e diretor do Museu Ferroviário de Porto Velho entre 1985 e 1991. Filho de um imigrante de Granada, nas Antilhas, que veio ao Brasil em 1910 para trabalhar nas obras, Schockness pede a devida atenção das autoridades. Essa gravação foi mesmo uma novela. Tiraram a locomotiva no 20 de Guajará-Mirim, trocaram seu número para 5 e a levaram de carreta até Abunã (a 140 quilômetros) para a filmagem. Agora, o governo diz que só vai devolver a locomotiva à cidade quando for recuperado um trajeto turístico sobre os trilhos a partir da antiga estação de lá”, conta. De fato, o governo promete lançar em fevereiro um passeio de maria-fumaça por sete quilômetros a partir de Porto Velho até o distrito de Santo Antônio e, ainda neste semestre, outro percurso entre Guajará-Mirim e o distrito de Iata (27 quilômetros). Até lá, a tal locomotiva da minissérie ficará aos cuidados de uma equipe de segurança privada, em Santo Antônio.
 
Enquanto isso, há quem transforme o péssimo estado de conservação dos trilhos em aventura na selva. O filho de maquinista José Máximo Lemos, 47 anos, conhecido em Guajará-Mirim pelo apelido de Zé do Apito, construiu um trole de madeira capaz de transportar seis turistas por 14 quilômetros de ferrovia. Seu plano é ir além, limpandoo caminho no meio da mata. Os trilhos ainda estão lá, mas a floresta avança sobre eles e o acesso fica difícil”, diz. No trajeto, tomando-se o devido cuidado para afastar do rosto galhos e cipós, é possível observar placas antigas de quilometragem, postes de telégrafo e árvores centenárias com cinco metros de diâmetro.
Na frente, ia a equipe de homens encarregada de abrir a picada. (...) Mas a selva não deixava que penetrassem nela facilmente, resistia, interpunha obstáculos floridos e rendados.” (Mad Maria)
As opções de turismo no eixo Madeira-Mamoré independem da lendária ferrovia. Seus principais atrativos são a diversidade de fauna e flora, a pesca de tambaqui, tucunaré e piranha, a extração de castanhas e látex, os passeios de voadeira por igarapés e o artesanato indígena. O hotel de selva Pakaas Palafitas Lodge, inaugurado em 2000 na confluência dos rios Mamoré e Pacaas Novos, cativa ecoturistas com o charme de suas confortáveis cabanas cobertas de palha. Da piscina, é possível observar o encontro das águas. Guias do hotel levam os hóspedes a passeios pelos rios e a um seringal. Sou filho e neto de seringueiros. Dos 12 aos 15 anos, ajudei meu pai”, diz Franciscleudo Ferreira da Silva, o Pilim, 30 anos, que pilota a voadeira do hotel e ensina os turistas a extrair o látex. É ele também quem leva os hóspedes para conhecer o povoado indígena de Cajueiro, que se transforma rapidamente em loja de artesanato à chegada dos visitantes. As mulheres de etnia wari (ou pacaas novos) se encarregam da produção e da venda. Cada uma leva uma semana para fazer uma cesta. Antes, a gente vendia farinha na cidade, mas o preço caiu e não vale a viagem”, conta Alda Oronao, 54 anos, fundadora do povoado e mãe de 12 rapazes, misturando o português com o txapakura nativo.
Quando algum civilizado chegava na maloca, todos vinham recebê-lo e mostrar amizade para amansar o branco. É que os velhos diziam sempre que de todas as tribos os civilizados eram os mais bravos e perigosos.” (Mad Maria)
Após tamanha incursão no mundo do espetáculo, os maiores perigos são o homem branco permanecer insensível aos atrativos turísticos da região e as autoridades locais não se mobilizarem para atender à demanda.
O repórter viajou a convite da Ambiental Expedições
Exuberância na tela
Celina Côrtes
Sábia a decisão da equipe da minissérie Mad Maria, dirigida por Ricardo Waddington, de gravar as cenas de floresta na Amazônia, cenário que garante as altas temperaturas necessárias à trama. A atmosfera insalubre e exuberante está perfeita, com momentos de rara beleza, a exemplo da cena dos operários sobre os trilhos, com seus instrumentos de trabalho. Impossível não lembrar de 1900, de Bernardo Bertolucci. Outra referência que vem à mente é A missão, de Roland Joffé. A excelência vista nas cenas amazônicas se mantém na cidade, com cenários e figurinos impecáveis. Antônio Fagundes, na pele do ministro de Viação e Obras Públicas J. de Castro, dosa bem os arroubos do poder com a doçura da paixão que se anuncia. É de grande sensualidade sua troca de olhares com Luiza (Priscila Fantin), que esbanja charme e beleza. Talvez fosse desnecessário o ventilador esvoaçar seus cabelos em uma cena sem vestígio de vento. O contraste entre ela, futura amante, e a esposa, vivida por Cássia Kiss, é ainda maior pelo marcante conservadorismo da mulher oficial.
O espectador fica com a mesma sensação da própria equipe, que, brincando, chama as cenas gravadas no Rio de Janeiro de a outra minissérie”. O contraste ambicionado pela direção é nítido: luxo e miséria. Fábio Assunção encarna com desembaraço o médico idealista Richard Finnegan, auxiliado pelos dez quilos que subtraiu da silhueta para tornar o personagem mais verossímil. Ana Paula Arósio também convence na pele da pianista Consuelo. Com apenas dois meses de aula de piano, ela conseguiu interpretar O guarani, de Carlos Gomes. Tony Ramos faria o americano Percival Farquhar com mais realismo se a produtora de arte, Ana Maria Magalhães, não tivesse optado por eliminar os sotaques, por serem muitos os idiomas falados na trama. O primeiro capítulo já mostra que a adaptação, feita por Benedito Ruy Barbosa do livro de Márcio Souza, vai ser diversão da boa. Basta manter o ritmo que alterna pitadas de romance, suspense, aventura e drama.

Isto É, 02/02/2005, p. 52-55

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