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"Nós não vamos mais sair", promete líder indígena da Raposa Serra do Sol

Brasil de Fato - www.brasildefato.com.br
Autor: Jonathan Constantino e Vanessa Ramos
20 de Jun de 2008

Macuxi Dionito de Souza denuncia a violência de latifundiários e reclama da incompetência do governo

AFIRMAÇÕES COMO "as terras indígenas representam um risco à soberania nacional", "é muita terra para pouco índio" ou, ainda, "as terras indígenas tornam inviável o desenvolvimento do Estado de Roraima!" são, na verdade, falácias. Essa foi a tônica dos seminários "A questão indígena no Brasil a partir da Serra do Sol - Roraima", realizado no dia 29 de maio, e "Raposa Serra do Sol: um desafio à teologia", ocorrido um dia depois, também em São Paulo (SP). O primeiro evento contou com a presença de Dionito José de Souza, coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), de dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, Lúcia Helena Rangel, antropóloga da PUC-SP, e do padre Lírio Girardi, do Instituto Missões Consolata. Com exceção de dom Odilo, os demais participaram do seminário do dia 30, que teve ainda a participação do teólogo Paulo Suess. Na tarde do dia 30, após o evento, o macuxi Dionito de Souza concedeu ao Brasil de Fato a entrevista que segue.

Brasil de Fato - O que aconteceu exatamente no dia 5 de maio na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS)?

Dionito José de Souza - A base da Polícia Federal (PF) se encontrava lá na Vila Surumu, em Pacaraima (RR), e também na reserva São Marcos. O pessoal da aldeia saiu cedo para começar a fazer as casas, porque nós entendemos que está ocorrendo apenas a suspensão da retirada dos não-índios, mas a terra ali é toda dos indígenas. Então, fomos para lá, porque não tinha revogado nada de decreto. E quando todos chegaram para fazer esse trabalho foram surpreendidos pelos pistoleiros do Paulo César Quartiero (presidente da Associação dos Rizicultores de Roraima e prefeito de Pacaraima-DEM), que atiraram nas pessoas, com bombas caseiras e tiros de espingarda. Não sei se a polícia estava passando por ali ou se estava na base deles, a uns 6 quilômetros. O que aconteceu foi que a polícia chegou depois e socorreu as pessoas atingidas (ao todo, dez indígenas foram baleados).

Fale da PF e dos homens do Paulo César.

A PF sabia que os homens do Paulo César andavam armados antes do que ocorreu no dia 5 de maio. Nossos próprios parentes viam os pistoleiros armados. Andavam com espingarda nas costas; na assembléia- geral dos tuxauas (caciques) eles soltaram uma bomba caseira. Mas a PF não conseguiu ter autorização do juiz para fazer o desarmamento. Eles queriam flagrar, mas quando os capangas viam a polícia, não mostravam as armas, ficavam escondidos. Foi quando aconteceu isso, no dia 5 de maio. Segundo a polícia, quando ela chegou lá, eles foram embora. Se fosse um indígena, eles tinham ido atrás. Do local do incidente, há livre acesso de carro até a fazenda. Poderiam pegar os sujeitos, desarmá-los e prendê-los. Mas, "não, vamos esperar a lei, a justiça que manda", "eu não posso fazer isso", alegam. Mas aconteceu tudo isso, não flagraram nem nada, esperando a decisão da justiça. Depois prenderam, mas já estão todos soltos (Quartiero foi para a cadeia no dia 6 e libertado no dia 15), então não adiantou nada. Não adianta ter uma lei e uma polícia aqui que não reage. Assim não funciona.

E como vocês conseguiram registrar o ocorrido?

A polícia já estava na área, não no momento exato, mas nós temos câmeras fotográficas e filmadoras, e existe entre nós quem já esteja aprendendo a fazer esses registros (filhos, primos e irmãos). Esses materiais nós continuamos tendo, compramos câmeras e também ganhamos em prêmios e no projeto da PDPI (Programa Demonstrativo dos Povos Indígenas, do Ministério do Meio Ambiente). E agora nós estamos registrando diariamente os acontecimentos e o nosso trabalho. Temos nossas assembléias, encontros, reuniões de mulheres e de professores e a gente grava tudo. Possuímos cinco câmeras que são digitais e, nesse momento, pelo menos, seis meninos aprendendo a trabalhar com isso. Claro que ainda não são profissionais, estão começando.

A extensão da Raposa Serra do Sol é de 1,67 milhões de hectares, determinados em 1993 e homologados em 2005. Quando os arrozeiros iniciaram as ofensivas contra a população indígena da TIRSS com agressões e outras manifestações de violência?

A partir de 2002. Primeiramente, quando você se baseia na lei, acaba, como eu vi numa entrevista hoje, falando a verdade e seguindo a verdade. Só que eu acho que essas coisas aconteceram porque toda a conversa do governo, da Funai (Fundação Nacional do Índio) e da própria Polícia Federal (PF) pedia "vamos nos manter calmos", enquanto as coisas estavam crescendo lá dentro. E os arrozeiros foram trabalhando. Ninguém entendia, pois o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) não fazia nada em relação à degradação do meio ambiente. Todos esgotaram sua paciência, pois eles [arrozeiros] foram crescendo com suas criações, e nós aguardando com paciência. Mas eles cresceram porque a justiça falhou. Então, quando começamos a reagir, há dois ou três anos, após terem se passado o primeiro ano em que os arrozeiros deveriam sair voluntariamente, de acordo com o decreto da homologação, iniciaram-se as reações por parte deles.

Como vocês começaram a reivindicação pela retirada dos arrozeiros?

Quando eu cheguei na coordenação do CIR, comecei a dizer o seguinte: "Olha, ou nós temos lei, e essa lei funciona, ou então agora nós teremos que fazer alguma coisa para que eles respeitem a lei!". Então, começamos a trabalhar aos poucos, conversando com as comunidades e nos mobilizando. Começamos a cobrar, indo para Brasília, e o governo federal determinou que eles (arrozeiros) deveriam se retirar. Agora, quando a polícia veio para retirá-los, teve a suspensão da operação. E eles continuam lá. O problema que vem acontecendo, essa violência, não é de agora, por causa da homologação, mas por causa das terras indígenas. Desde que entraram os invasores na TIRSS, vieram para matar os indígenas, seja com bombons envenenados, com bombas e outras formas. Nunca mais tivemos sossego.

Então a violência sofrida por vocês não é de hoje?

Não. No passado, nós tivemos problemas graves com um fazendeiro chamado Jair. Ele possuía mais de 75 km de terra e ocupava a TIRSS com a fazenda dele. Ele prendia muita gente, tocava fogo nas nossas casas e nós sofríamos com isso. O jagunço dele matava as pessoas. Mas ele saiu da Raposa Serra do Sol e já morreu. Depois, chegou o Paulo César, que tem dado continuidade a esse massacre aos povos indígenas. Então, não é de agora que sofremos com isso, pois, no passado, até a própria Funai ateava fogo nas casas de palha dos índios. Nós reagimos e começamos a trabalhar sério contra essas ações, denunciando, inclusive, internacionalmente. Eles [Funai] não gostavam, "porque vocês não denunciam para o governo brasileiro?", perguntavam. Nós temos denúncias em vários lugares do Brasil, nas organizações indígenas que existem para tomar providências em relação a essas coisas que acontecem nas terras indígenas, mas como não eram ouvidas, nós denunciamos lá fora, na ONU [Organização das Nações Unidas], na OEA [Organização dos Estados Americanos], e eles ficaram com medo.

O que a mídia deveria divulgar, verdadeiramente, para a população brasileira?

O mais importante é reconhecer que há pessoas de má vontade ou que têm o plano de matar os índios. Isso é muito complicado aqui no Brasil. Por exemplo, você vê o Paulo César. Um cara que joga bombas, destrói as pontes, espalha mentira na mídia, leva pistoleiros e desafia a própria polícia, na cara dela, esculhamba. A polícia vê as bombas e não consegue prender, não consegue dominar uma pessoa. Quer dizer, onde está nossa justiça?

Sobre essa questão da soberania, a mídia tem falado bastante sobre o argumento de que a demarcação em área contínua é um risco. Como você vê isso?

Bom, não existe risco de soberania. Tem muitas terras indígenas registradas e homologadas em faixa de fronteira, por exemplo, a terra ianomâmi é logo aqui em São Marcos, no Amazonas. Não acaba o Brasil, não diminuiu o país. Continuou como terra brasileira e vai continuar assim. É terra indígena, com reconhecimento do governo federal. Essas terras são da União e a União somos nós. Além disso, a PF falou para mim que eles [arrozeiros] pretendiam decretar o Estado de Roraima autônomo. Aí sim eu vejo um risco para soberania nacional, aí sim vai chover de estrangeiros.

Como seria garantida a segurança da fronteira?

Nós somos "povo brasileiro" e não nos sentimos isolados ou que o país vá correr algum risco. A questão é que tem de se manter a ordem e, nesse caso, nós temos o exército, a polícia, nós temos a lei, a nossa Constituição Federal, temos um governo que tem que tomar conta. Não se pode dizer que a TIRSS representa um grande risco. Mas, se o exército não tem plano para isso, é claro que há um risco. Agora, é claro, tem que botar ordem na casa. Estamos aí para ajudar até na fiscalização, na vigilância da nossa terra, porque, como nós sabemos, no passado, foram os indígenas quem seguraram Roraima como território brasileiro.

E a respeito dos argumentos que dizem que a Raposa Serra do Sol afetará a economia de Roraima?

Pois é, nós temos um Estado que é muito rico em terra. Se você plantar, todas as terras ali são produtivas, e nessa parte de economia do Estado, não vamos interferir, não vamos atrasá-lo e nem empobrecê-lo. Agora, o que está acontecendo é que ele [invasor] está perdendo tempo, Já poderia estar se instalando e montando uma equipe de trabalho para dar continuidade em sua produção de arroz.

Quais as outras agressões que vocês têm sofrido na TIRSS?

Falando nisso, foram soterrados os lagos que dão muito peixe ali. Lá é um "baixão" muito bom e, no inverno, no tempo de chuva, ele enche de água e forma lagos que dão muito peixe. Só que destruíram as matas ciliares, ficou ruim, não tem peixe, os lagos foram todos soterrados. Há as comunidades do Javali e toda essa região é banhada pelos rios Cotingo e Surumu, e existem várias comunidades ao longo, mesmo perto desses rios, que sofrem na pesca, sofrem nos igarapés, pois quando jogam agrotóxicos, as crianças ficam tudo com dermatite. E ainda vem o arrozeiro e joga veneno com avião por cima das aldeias, sacaneando mesmo.

E como você vê essas situações?

São situações em que, além do sujeito usar e abusar, quer fazer mais. A gente não consegue conviver com uma coisa dessas, não aceita e temos que ter respeito à nossa Constituição. Se há uma lei dando garantia de defendermos os nossos costumes, os nossos direitos, acho que tem que ser defendido, não deixar que qualquer pessoa venha fazer coisas erradas ou desafiar uma lei, afrontar a todo nosso país.

A mídia corporativa faz estardalhaços e tem divulgado que há grupos indígenas a favor dos arrozeiros e contra a demarcação em área contínua, que eles vão passar fome sem o arroz dos arrozeiros. É verdade?

Bem, eu ainda não pensei como é que eu vou processar os mentirosos e as pessoas que ficam manipulando os indígenas a falar essas coisas, porque não existe nenhum indígena que, como os arrozeiros, tenha grandes estoques de arroz. Que possa dizer, por exemplo, "está aqui meu arroz, consegui através do invasor aqui, por isso que eu quero que eles fiquem". Não tem isso. Eles são usados, comprados com churrasquinho, R$ 10... Não tem como dizer que os indígenas defendem os arrozeiros, eles são pagos, manipulados para falar isso e acabam dizendo com se fosse verdade.

Depois que aconteceu o incidente do dia 5, quais são as expectativas da população indígena da Raposa Serra do Sol em relação à homologação? Vocês estão organizando alguma mobilização interna?

Nossa mobilização existe desde que eles suspenderam a operação de retirada dos não-índios. Não parou mais. Nós estamos fazendo uma nova aldeia no lugar do incidente e colocamos o nome dela de "Dez Irmãos". Eles vão continuar morando ali, fazendo a aldeia para ficar permanentemente. Nós temos chegado até com mil pessoas lá e revezamos. Uns vão embora e outros vêm, porque são 19 mil indígenas e, portanto, não tem como nos cansar. Estamos trabalhando nas roças, plantando nossas coisas nas aldeias, mas paramos e vamos dar apoio, em solidariedades aos que foram baleados. Existe todo esse movimento que nós estamos acompanhando e que vai ser acompanhado até o final, até o dia do julgamento que, sendo a favor ou não, nós não vamos mais sair.

Quem é
Do povo macuxi, pertencente à aldeia Maturuca e residente da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, Dionito José de Souza é coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR). Ele já atuou como segundo tuxaua (semelhante a cacique), coordenador regional dos agentes de saúde, membro da Comissão Pós-Conferência Nacional dos Povos Indígenas, membro do Conselho do Distrito Sanitário Leste de Saúde e, atualmente, colabora também como agente de saúde.

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