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Nos grilhoes do paraiso: incrustada entre duas areas de preservacao ambiental e sem area demarcada, comunidade quilombola do Cambury padece na indigencia

Isto E, Especial, p.86-88
26 de Nov de 2003

Nos grilhões do paraíso Incrustada entre duas áreas de preservação ambiental e sem área demarcada, comunidade quilombola do Cambury padece na indigência
Ana Carvalho e Ricardo Giraldez (fotos)

Liberdade: Os irmãos Wellington, 16 anos, e Luciano, 13, esperam por dias melhores. Eles ajudam a família trabalhando como guias. Genésio, líder da comunidade (à dir.), quer voltar a plantar, mas antes é preciso ser o dono da terra

O rio do Cedro corre depressa e corta como artéria o coração do Cambury, um pequeno povoado de remanescentes de quilombo no extremo norte do litoral paulista, que pulsa com o batuque das águas das cachoeiras, mas padece com a arritmia da indigência e a falta de atenção das autoridades. No paraíso verde, de águas claras, que se escoa no mar esmeralda da região, não há estrada, saneamento e luz elétrica. O que existe é a fome, o preconceito e o abandono. O distrito, que pertence ao município de Ubatuba, abriga não mais do que 300 moradores. No quilombo, chamado de favela pelos que não se aceitam como descendentes de escravos e preferem ser chamados de caiçara ou índio, moram pouco mais de 130 pessoas, a maioria crianças e adolescentes. É em nome deles que Genésio dos Santos, 76 anos, líderda Associação dos Remanescentes do Quilombo Cambury, luta. Da linhagem dos Basílio, um dos núcleos familiares de escravos que habitam a região desde 1700, ele apóia-se em seu cajado para tirar do cativeiro a comunidade que lidera.

Sobrevivência: Crianças do quilombo aprendem na escolinha local a preservar o ambiente transformando lixo em arte

O sonho de progresso se desenhava em 1970, com o fim da construção da BR-101 (Rio Santos), mas acabou transformando-se em pesadelo para o pessoal do quilombo, principalmente após a criação dos parques Nacional da Bocaina (1972) e Estadual da Serra do Mar (1977). A caça e a lavoura foram proibidas e as sucessivas ameaças de despejo começaram a acontecer tanto por parte das autoridades ambientais como pelos grileiros da região, donos de grande parte das terras do Cambury. O mais necessário aqui é o direito ao trabalho, como era no passado, no tempo dos meus avós. A pessoa nascia, se criava e lá pelos oito, nove anos já estava na lavoura com o pai e a mãe. Mas esta terra foi tombada sem a gente saber. O meio ambiente proíbe nós de desfrutar a terra e deixa a gente com fome. Com todo respeito: deixa a gente plantar uma semente, nós temos direito!, defende Genésio.
O reconhecimento antropológico feito pelo Instituto de Terras de São Paulo de que o Cambury é de fato um quilombo não é o fim da linha na luta pela demarcação da terra. Entre os moradores do local há forte resistência de parte da comunidade que reside junto ao mar em admitir-se negra e oriunda de escravos que romperam os grilhões do cativeiro e saíram em busca da liberdade fugindo de fazendas em Paraty (RJ). Mas em casa que falta o pão, todos, no caldeirão da miscigenação caiçaras, indígenas e negros , se sentem donos da razão. Admitindo a incontestável negritude, eles acreditam que ficarão prejudicados e a união, matriz da força, como ensinou o quilombo vizinho, o Campinho, em Paraty, já demarcado há três anos, se perde. A comunidade, analfabeta em quase sua totalidade, fica à mercê dos interesses escusos de grileiros, políticos e até de pastores evangélicos que dominam a região.
 
Sem roça, não há mandioca: nove casas de farinha foram fechadas. Só a de Alcides resiste

Enquanto não há consenso, não há terra e não há estrada, principal via de escoamento da pesca. São três quilômetros de terra da Rio Santos em direção à praia em precárias condições mesmo quando o tempo está bom. Em época de chuvas, o pescado, principal fonte de renda, se perde, uma vez que o caminhão frigorífico não consegue retirar a carga e não há luz ou gerador para manter o produto. É também a chuva que impede as crianças de ir à escola. O rio enche e não há pontes para atravessá-lo. A ONG SOS Povos da Mata Atlântica começou a desenvolver um trabalho de capacitação na região, incentivando a geração de renda, principalmente para a juventude, por meio do ecoturismo e da preservação, através da educação artístico-ambiental, projeto desenvolvido por um dos gestores, o coreógrafo Ivaldo Bertazzo. O empresário Vittorio Rossi Jr., outro integrante do conselho gestor da entidade, ressalta a importância da iniciativa do presidente Lula, que assinou na quinta-feira 20, Dia Nacional da Consciência Negra, em pleno Palmares (AL), três decretos: o que cria o Conselho Nacional de Igualdade Racial, o que regulamenta a terra dos remanescentes dos quilombos e o que lança a política de igualdade racial. Estes atos simbolizam, de fato, a transição de duas eras. Após 115 anos da Lei Áurea, apenas 36 dos 743 quilombos mapeados tiveram área titulada. Nossa luta é devolver a dignidade e resgatar a cultura do povo do Cambury. Mas enquanto os grilhões do preconceito permanecem atando o sonho de liberdade e de inclusão social, a luta dos muitos zumbis brasileiros continua tendo como bandeira a afirmação do presidente Lula, que resume a situação dos negros brasileiros remanescentes da mais hedionda das culturas, a escravidão: A Lei Áurea abriu a porta da senzala, mas escondeu a chave da cidadania.
A equipe usou uma caminhonete S10 4x4, cedida pela GM, para chegar ao quilombo

ISTO É, 25/11/2003, p. 86-88

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