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No reino das arvores de pernas tortas

CB, Opiniao, p.25
Autor: LEITÃO, Sérgio
15 de Set de 2005

No reino das árvores de pernas tortas
Sergio Leitão
Advogado, é diretor de Políticas Públicas do Greenpeace
O último dia 11, domingo, foi dedicado ao cerrado, bioma que é berço das três maiores bacias hidrográficas do país: Amazonas, São Francisco e Paraná-Paraguai. Espalhado por mais de 12 estados, o cerrado vai do Maranhão até o Paraná, atravessando Tocantins, Goiás, Distrito Federal, Minas Gerais, Mato Grosso, Piauí, Bahia, Pará, Rondônia, São Paulo e Mato Grosso do Sul, com manchas de vegetação em Roraima e Amapá. Ocupa uma área de cerca de 1,9 milhão de km2,1/4 do território nacional, e é considerado uma das 25 regiões mais ricas do mundo em biodiversidade. Infelizmente, é também uma das mais ameaçadas do planeta.
0 cerrado abriga 1/3 de toda a biodiversidade brasileira e 5% de toda a fauna e flora mundiais. Nele podem ser encontradas até 10mil espécies de plantas, mais de 161 de mamíferos, 837 de aves, 150 de anfíbios e 120 de répteis. Mesmo com essa imensa riqueza, o cerrado ainda é pouco conhecido dos brasileiros. No imaginário da população, projeta-se, quando muito, a fotografia de algumas árvores retorcidas, que não enchem os olhos de quem busca uma vegetação exuberante. Porém, suas belezas são reveladas pouco a pouco a quem se propõe a caminhar, como Guimarães Rosa, por suas veredas, que escondem um conjunto de diferentes formações, variando de matas densas a campos naturais.
A partir dos anos 60, segundo o geógrafo Pedro Novaes, a construção de Brasília, a adoção de políticas agressivas de desenvolvimento e o investimento em obras de infra-estrutura criaram uma dinâmica econômica que propiciou a abertura de extensas áreas de cerrado à expansão da agricultura. Isso fez com que o bioma passasse a ser visto como um dos celeiros nacionais: na região Centro-Oeste se produz hoje 50% da soja do país - 13% de toda a soja produzida no planeta, contra 6% produzidos no início dos anos 70.0 cerrado responde também por 20% de toda a produção nacional de milho, 15% de arroz e 11% de feijão.
Entretanto, a expansão do agronegócio, que agora avança na direção da Amazônia, deu-se a um custo devastador. Hoje, segundo a Embrapa, restam menos de 5% de áreas de cerrado, cerca de dois mil hectares. A destruição criminosa afeta também os recursos hídricos - berço de nossas águas, hoje ameaçadas pela erosão causada pela agricultura intensiva e pelo uso indiscriminado da irrigação.
A preservação do que resta do cerrado passa pela adoção de medidas urgentes, como a criação de unidades de conservação de proteção integral e a efetiva implantação das unidades já criadas - para evitar a cansativa repetição dos desastres que acometem, por exemplo, o Parque Nacional das Emas, em Goiás. O parque foi de novo vítima de um grande incêndio, que poderia ter sido evitado caso o seu Plano de Manejo tivesse sido executado.
Também se impõe o combate ao desmatamento e à queima descontrolada de madeira para a produção de carvão, esta última especialmente em Minas Gerais, onde, segundo dados da Funatura, mais de 40 siderúrgicas consomem 75% do carvão produzido no país. A produção de carvão vegetal é responsável por imensa perda de biodiversidade, além de contribuir para o aumento das emissões de gases do efeito estufa, com grande impacto sobre as mudanças climáticas que abalam o planeta.
Proteger o cerrado é ainda proteger a sua imensa diversidade sócio-cultural, representada por 42 povos indígenas, além de comunidades quilombolas e outras populações tradicionais que são um retrato autêntico dessa região. É o caso, por exemplo, do caipira, cujas tradições culturais, marcadas pela religiosidade e pela música, representam parte da alma do cerrado - e do Brasil, com a moda de viola, as folias do Divino Espírito Santo e Santos Reis.
0 governo federal poderá aproveitar a realização da Convenção da Diversidade Biológica (CBD), que terá lugar em Curitiba (PR), em março de 2006, para assumir um compromisso formal com o bioma. Espera-se que o governo possa apresentar um programa de proteção e recuperação do cerrado, com medidas efetivas que saiam do discurso para a prática.
Mudar esse quadro de destruição depende da sociedade brasileira, que precisa lançar um olhar mais generoso e enxergar a beleza das plantas, dos bichos e das gentes que vivem no cerrado. Pensemos no que diz o poeta Nicolas Behr: "Nem tudo que é torto é errado. Veja as pernas do Garrincha e as árvores do cerrado".

CB, 15/09/2005, p. 25

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