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No olho da tempestade

O Globo, Especial, p. 2-4
05 de Jun de 2009

No olho da tempestade
Novos estudos alertam que escassez de água agravará pobreza, desigualdade, doenças e aquecimento global

Carlos Albuquerque e Rogério Daflon

São apenas duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio para muita coisa: beber, comer, banhar, regar, lavar, produzir, irrigar, crescer, viver. Riqueza mais valiosa do planeta, a água, porém, é maltratada, poluída e desperdiçada. Encontrar o ponto certo do seu uso é um dos grandes desafios da atualidade, num momento em que, com o crescimento da população, aumenta a demanda pela água e seus serviços básicos, agravando um panorama de escassez. Relatório da Unesco de 2009 sobre o tema alerta: sem medidas contra o desperdício e a favor do consumo sustentável, a dificuldade de acesso à água potável se agravará no mundo.
- A grande demanda, o uso intenso em agricultura, indústria e residências e as mudanças climáticas, tudo pressiona os estoques de água do planeta - diz a pesquisadora alemã Claudia Ringler, do International Food Policy Research Institute, baseado em Washington. - A boa notícia é que temos ferramentas para reverter esse quadro.

A Unesco diz que cinco bilhões de pessoas podem sofrer com a falta de saneamento básico até 2030. Na África, meio bilhão de pessoas já padecem com o problema. Cerca de 80% das doenças nos países em desenvolvimento estão ligadas à água, causando três milhões de mortes precoces a cada ano. Cinco mil crianças morrem de diarreia por dia no planeta, sendo que 10% dos casos poderiam ser evitados com medidas básicas de higiene e saneamento.
- A água precisa ser bem tratada, utilizada e conservada. Essa é uma necessidade mundial - afirma Claudia Ringler. - O problema é que, quase sempre, a água é considerada uma questão secundária em relação a outros temas classificados, nos círculos políticos, como mais importantes, o que é um absurdo. Todo mundo deveria saber que sem água, não há vida.
África sob risco
O aquecimento global vai tornar mais agudo esse quadro de escassez, afetando áreas de cultivo e a produção de alimentos. A previsão faz parte dos mais recentes relatórios do Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), divulgados em 2008. Segundo os estudos, o continente africano vai ser um dos mais afetados nessa questão, com diminuição de recursos hídricos e de irrigação, que tornarão mais agudos os notórios problemas de falta de alimentos na região.
- Ainda falta a percepção geral de que a água é um indicador das mudanças climáticas em todo o mundo, tanto para o excesso como para a escassez - diz Samuel Barreto, coordenador do Programa Água para a Vida, do WWF.
- A água vai nos ajudar a verificar as alterações climáticas apontadas pelo IPCC, e isso vale também para os eventos extremos, como ciclones e enchentes, que deverão aumentar de frequência e intensidade nos próximos anos. Falar de água, hoje, é falar de segurança mundial.
Não é à toa que o termo "diplomacia das águas" tem sido usado quando o assunto é, por exemplo, a gestão de rios fronteiriços (Amazonas, Nilo ou Congo, por exemplo), prevista por uma convenção da ONU, em 1997, mas ainda não ratificada. Como lembra Barreto, inundações mais frequentes e secas mais intensas vão mudar a situação hídrica de várias regiões do planeta, inclusive o Brasil.
- O mundo possui leis, tratados e políticas de água, que precisam ser urgentemente implementados. É uma questão de prioridade máxima, que deveria entrar imediatamente na agenda dos governos. O Brasil, por exemplo, tem uma das mais avançadas políticas de água do mundo, mas ela precisa ser efetivamente implementada.
A boa gestão desse valioso recurso natural, dizem os especialistas, é a diferença entre a prosperidade e a ruína ambiental.
- A Índia, por exemplo, teve uma política de águas desastrosa, que esgotou seus recursos hídricos - lembra Claudia Ringler. - Já Israel deve ser tomado como bom exemplo de gestão. Por causa da sua situação geográfica, o país desenvolveu um sofisticado sistema de irrigação. O que precisamos é de investimentos em produtividade agrícola, produzir mais gastando menos. É a equação chave dessa questão crucial para o mundo.

Brasil vai lucrar se souber como aproveitar sua riqueza hídrica, a maior de todo o planeta. Recursos são mal distribuídos no país

Nenhum lugar do mundo tem tanta água quanto o Brasil. O país, onde vive apenas 3% da população mundial, detém cerca de 13% da água do planeta, 74% desse percentual na pouco povoada região amazônica. Numa perspectiva de escassez, num futuro não tão distante, o conceito de desenvolvimento sustentável se torna crucial. É o que apontam estudos do Laboratório de Hidrologia e Estudos do Meio Ambiente da Coppe/UFRJ. Com bases nos dados do relatório da Unesco, eles realçam a vantagem comparativa do país em relação à maioria das nações.
- Se juntarmos Europa, Ásia e África, teremos 86 % da população e 55% da água do mundo. Essa desproporção dá uma vulnerabilidade hídrica imensa a esses três continentes - afirma o diretor-geral do Laboratório de Hidrologia da Coppe, Paulo Canedo. - O Brasil pode ter um papel decisivo, principalmente na agricultura, pois, diante da escassez de água de outros países, muito deles vão importar nossos alimentos.
Tal potencial aumenta com a vocação agrícola do país, confirmada pelo fato de que 70% da água cap$no Brasil são usados na agricultura, como destaca o professor da Coppe e ex-presidente da Agência Nacional des Águas (ANA), Jerson Kelman.
- Esse percentual é referente à água captada e não a toda a água do país - deixa claro Kelman.
Pouca navegação
Para esse potencial ser mais bem aproveitado, porém, é necessário cuidar bem da água que abastece não apenas o campo, mas também nossos centros urbanos. Segundo Benedito Braga, diretor ANA, o mau uso da água passa por políticas públicas que precisam ser mais bem direcionadas.
- O governo federal subsidia a exportação de soja produzida na Região Centro-Oeste em quase US$ 1 bilhão anualmente por causa do frete rodoviário. Esse gasto poderia ser evitado com a navegação pelos rios Tapajós e Tocantins - diz Braga, vice-presidente do Conselho Mundial da Água.
Para Braga, é triste ver cidades como o Rio e São Paulo buscarem água cada vez longe porque seus principais rios estão poluídos.
- Há um imenso prejuízo econômico com isso. Se o Rio Tietê não estivesse tão poluído em sua parte urbana, ele poderia ser utilizado para abastecer parte da cidade de São Paulo - diz o diretor da ANA. - Situação semelhante acontece com o Rio de Janeiro, que está indo cada vez mais longe em busca de águas não poluídas para o abastecimento.
A poluição dos mananciais, fruto principalmente de esgotos maltratados, leva a um dado inquietante: o Brasil não vai atingir a meta do milênio no que se refere a tratamento de água, ou seja, saneamento.
Solução distante
Estimativas do governo federal mostram que seriam necessários R$ 180 bilhões para atingir as Metas do Milênio das Nações Unidas no ano de 2015, ou seja, para que ao menos a metade dos brasileiros tenha acesso à água potável e ao saneamento básico.
- Por enquanto, apenas 20% do esgoto são tratados antes de serem despejados nos rios urbanos. Só devemos atingir a meta em relação à água potável para metade dos brasileiros. Mas o problema de saneamento continua muito grave - diz o diretor da ANA.
As águas brasileiras não sofrem só com esgoto. A escassez de florestas nas margens dos rios se soma à contaminação por produtos químicos, à erosão dos solos e ao crescimento desordenado das populações ribeirinhas, que se instalam em áreas de risco. Isso tudo se agrava na proporção da lentidão do poder público para resolver esses problemas crônicos.
- É lamentável, por exemplo, o que ocorreu em Santa Catarina, com a recente aprovação de medidas para a redução das matas ribei$, o que pode agravar as consequências de novas chuvas fortes no estado - diz Samuel Barreto, coordenador do programa Água para a Vida, do WWF.
Barreto acredita que a preservação e o uso sustentável da água devem ser mais divulgados, inclusive com campanhas públicas.
- Precisamos divulgar a questão da escassez da água, principalmente junto às novas gerações, para que o tema esteja presente nas próximas eleições. Não podemos mais falar em desenvolvimento sem pensar no uso sustentável da água

Uma história de águas turbulentas

Rogério Daflon

A cidade do Rio de Janeiro tem uma longa história de erros quando o assunto é água. Em janeiro de 1502 se iniciou a linha do tempo de equívocos. Foi quando navegadores portugueses fitaram a Baía de Guanabara e, encantados, deduziram que se tratava de uma foz de um grande rio... Tal raciocínio desembocou na ideia de chamar a terra nova de Rio de Janeiro. Com 187 rios, 42 canais, 10 riachos, quatro arroios, duas valas, seis valões, segundo dados do Instituto Pereira Passos (IPP), a metrópole teria um bom potencial hídrico hoje, não fosse a poluição que vai com a correnteza. O curso d'água que deu nome ao povo do lugar é um exemplo emblemático desse desleixo. Batizado por indígenas em 1503, o Rio Carioca, outrora fonte de água potável e símbolo da Cidade Maravilhosa, acumula lixo e esgoto.

Diretor do Associação Brasileira de Recursos Hídricos e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Flávio Mascarenhas se impressiona com o triste destino do Rio Carioca.
- Ele deságua numa estação no Aterro do Flamengo e, na sequência, na Baía de Guanabara. Chega tão poluído à estação que não há como a maioria dessa carga poluidora deixar de ir para a Baía.
Mascarenhas explica que o Rio Carioca começa no Maciço da Tijuca, segue pelo bairro de Santa Teresa, passa por comunidades carentes e chega imundo em outro lugar histórico, o Largo do Boticário.
- Depois, o Rio Carioca corre subterrâneo por bairros como Laranjeiras, nos quais recebe ligações de esgoto de prédios e residências de classe média até chegar ao Aterro do Flamengo.
Gerente de Qualidade Ambiental do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), Fátima Soares associa a poluição dos cursos d'água à ocupação desordenada na Região Metropolitana do Rio.
- Onde há um adensamento populacional grande, os rios estão num estado muito ruim.
Boca banguela
Fátima identifica os estragos da poluição dos rios na Baía de Guanabara, uma "boca banguela", segundo o antropólogo Claude Lévi-Strauss, que não viu nela beleza alguma. Ela destaca a costa oeste da Baía, que engloba o Centro do município, São João de Meriti e Nilópolis, para onde correm rios como Irajá, Acari, Pavuna e Iguaçu, além dos canais do Mangue e do Cunha.
- São os rios mais degradados. E chegaram a esse ponto com o aumento da ocupação desordenada. A velocidade da ocupação não foi acompanha por obras de infraestrutura sanitária - diz Fátima, acrescentando que, na costa leste da Baía, a situação também é triste, com rios como Alcântara e Canto do Rio que levam a poluição de São Gonçalo e Niterói para o mar.
Fátima ressalta que o nível de poluição da Baía cai quando suas águas recebem os rios da Área de Proteção Ambiental de Guapimirim.
- Ali a qualidade da água é melhor. São rios que deságuam na costa norte e nordeste da Baía, como o Magé, Guapi e Macacu.
A poluição dos cursos d'água do Grande do Rio exemplifica o que ocorre em outros grandes centros urbanos do país. Benedito Braga, diretor da Agência Nacional de Águas (ANA), diz que há uma equação que produz um resultado ruim para todo mundo.
- As companhias estaduais precisam equilibrar receita e despesa e, por isso, não investem nas regiões pobres dos centros urbanos em relação à coleta e ao tratamento de esgoto. Seria fundamental que o governo federal desse subsídios para que exista qualidade de água nos rios próximos a populações de baixa renda, mas sobretudo para diminuir doenças relativas à falta de saneamento básico. Haveria, com isso, uma diminuição da demanda por leitos hospitalares e, consequentemente, menos gastos com a saúde pública - afirma.
Difícil solução
Diretora de Gestão das Águas e do Território do Inea, Rosa Formiga, diz que há um plano do governo estadual para coleta e tratamento de esgoto de todo o estado do Rio em dez anos.
- É um pacto de saneamento. Os recursos seriam da ordem de R$ 800 milhões por ano no período de dez anos. E eles preveem solucionar também outro grave problema do Rio: o lixo jogado em nossos rios. O pacto também terá de incluir educação ambiental, para que as pessoas tenham consciência do mal que é jogar lixo nos rios - afirma Rosa Formiga.
Secretária estadual do Ambiente, Marilene Ramos diz que o importante desse projeto é que ele foi feito para ser tocado a longo prazo.
- Após vários levantamentos, chegou-se à conclusão de que com R$ 8 bilhões em dez anos faz parte dos problemas de saneamento do estado estarão resolvidos. Não será uma tarefa fácil - calcula a secretária, que cita a Estação de Tratamento de Esgotos de Alegria, no Caju, inaugurada em janeiro deste ano, como um dos projetos que diminuiu a poluição.
Há outras ações em curso. Uma delas visa a resolver o problema das enchentes na Baixada Fluminense, no Grande Rio, e a recuperação ambiental das bacias dos rios Iguaçu, Botas e Sarapuí. Trata-se do Projeto Iguaçu, do governo do estado do Rio, com investimentos do PAC de cerca de R$ 270 milhões.
- O Projeto Iguaçu recuperará a região e a população poderá ficar livre das enchentes e ter áreas de lazer, que vão substituir as moradias irregulares ribeirinhas, nas quais as pessoas correm grandes riscos - promete o professor da Coppe/UFRJ Paulo Canedo, autor do projeto.
A maioria das obras de saneamento do Rio de Janeiro beneficiará a Baía de Guanabara. Se tais promessas deixarem de ser um sonho distante, a impressão do antropólogo Lévi-Strauss de que a Baía é um lugar horroroso vai cair no vazio. Feia ela não é. Na verdade, é maltratada.

O Globo, 05/06/2009, Especial, p. 2-4

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