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No liminar do massacre

OESP, Notas e Informações, p. A3
28 de Jan de 2004

No limiar do massacre

Com a inexorabilidade de uma tragédia grega, em que as múltiplas advertências nada pesam, ante o curso incontido do Destino, a situação de conflito entre produtores rurais e índios caiovás-guaranis, que invadiram e ocupam 14 fazendas, desde dezembro, entre os municípios de Iguatemi e Japorã, em Mato Grosso do Sul, está chegando ao limiar de um choque armado.
Os terríveis ingredientes das armas e das razões já estão bem dispostos, de lado a lado. Ruralistas, que estão se armando, acusam os índios de estarem trocando o gado de suas fazendas, de que se apropriaram, por armas no Paraguai. Carlos Tórmena, dono da Fazenda Chaparral, traduziu bem o clima de revolta dos produtores rurais ao exclamar: "É um absurdo, será que não existe justiça neste país? Nosso gado está sendo levado para o Paraguai e a polícia diz que tenho de tirar foto para tomarem providências. É o fim de qualquer esperança." O presidente do Movimento Nacional de Produtores, João Bosco Leal, entregou ao governador em exercício, Egon Krakhecke (PT), e ao secretário de Segurança Pública, Dagoberto Nogueira Filho, uma lista de vendedores de armas paraguaios dispostos a confirmar a denúncia à polícia - além de outras provas que pretende apresentar depois da prisão dos responsáveis.
A desembargadora Consuelo Yoshida, do Tribunal Regional Federal (TRF) da 3.ª Região, manteve sua decisão de suspender a reintegração de posse das fazendas invadidas, ao negar agravo impetrado por um dos fazendeiros, sob o argumento de que mudando sua decisão contribuiria "para instabilidade e acirramento de animosidade entre indígenas e fazendeiros". Mas os índios não se dispõem a atender ao seu apelo para permanecerem acampados por dias fora dos limites das fazendas - embora junto a seus portões -, enquanto se processam as negociações pretendidas pelo governo e pela Justiça. Em parte porque interpretam a decisão do TRF como favorável à sua posse definitiva - como observou o prefeito de Japorã, Sebastião Aparecido de Souza, um reconhecido "defensor dos índios", na região, que fez a precisa descrição do cenário de alto risco que lá está montado, conforme matéria de nossa edição de terça-feira.
O prefeito é um dos que consideram iminente um massacre de índios na região, diante da ameaça de fazendeiros de forçar a desocupação das 14 fazendas invadidas. Disse ele que os cerca de 4 mil caiovás-guaranis pretendem enfrentar quem for retirá-los, seja a polícia ou os fazendeiros. "Eles não estão dispostos a recuar um milímetro e pode ser o maior massacre de índios da história do Brasil." Com a autoridade de quem participa das negociações da Procuradoria da República e da Fundação Nacional do Índio (Funai) com os caiovás-guaranis, para cumprir a ordem de desocupação, adverte Sebastião Souza que, "se não sair logo o acordo, vai ser difícil evitar o confronto".
Certamente os maiores estímulos à posição de intransigência dos índios são a simpatia que sabem ter sua causa perante a mídia internacional e, especialmente, as teses dos antropólogos da Funai, que lhes avalizam o direito ao domínio daquelas áreas - mesmo antes de que a lei e/ou a Justiça o reconheçam. Pelo estudo entregue à Funai pelos antropólogos Rubens Tomás de Almeida e Fábio Mura, as propriedades rurais que os índios caiovás-guaranis ocupam ao redor da Reserva Porto Lindo (MS) pertencem, de fato, a seus antepassados. É claro que houve, pelo menos, uma desastrada precipitação na comunicação de tais conclusões aos índios - que transformou em poderosa bandeira reivindicatória o que ainda não estava definido pela sociedade, por meio de seus representantes.
Atente-se para estas outras observações do prefeito de Japorã: "A culpa da encrenca é do Incra, que ignorou a presença dos índios e dividiu as áreas para assentamento de colonos. Os caiovás foram empurrados para Porto Lindo.
Numa área de 1.648 hectares, vivem quase 4 mil índios, o que tem levado a aldeia a uma situação de miséria." Realmente, esta é uma situação de verdadeiro cortiço rural. A ampliação da reserva para 9,6 mil hectares pode ser justa, desde que se respeite - com a devida indenização - o direito dos fazendeiros locais. E sobretudo desde que isso não passe a ser considerado pelos indígenas de várias regiões do País como a largada para a "recuperação" de todo o território que "perderam" para os caras-pálidas portugueses, desde o Descobrimento.

OESP, 28/01/2004, Notas e Informações, p. A3

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