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No caminho até o Brasil, coiotes, fome e violência

O Globo, O País, p. 3-4
08 de Jan de 2012

No caminho até o Brasil, coiotes, fome e violência
Haitianos descobrem que sonho de vida melhor pode virar pesadelo

Cleide Carvalho
cleide.carvalho@sp.oglobo.com.br
Enviada especial
Brasileia (AC)

Anoitece em Brasileia e centenas de haitianos se espalham na Praça Hugo Poli, uma das principais da cidade, em animados grupos. Uns ocupam a quadra, outros arriscam manobras na pista de skate, vários conversam sentados em bancos ou ao redor dos quiosques. Em minutos, o burburinho dá lugar a sorrisos e longos abraços. É a chegada de três mulheres, que acabam de descer de um táxi puxando malas de rodinhas, em cujas alças ainda estão presos os tíquetes de companhias aéreas. Uma delas é Rosina François, de 27 anos; sua história se encaixa como uma luva no sonho haitiano de morar no Brasil, ganhar um bom salário e, aos poucos, trazer a família.
Rosina é mulher de Dominique Desne, 34 anos, que chegou ao país em novembro, pela fronteira do Acre, assim como centenas de outros haitianos, como O GLOBO revelou na última semana. Hoje, vive em Sorocaba, no interior de São Paulo. Funcionário de uma empresa de construção civil, ele trabalha como pedreiro, é registrado e mora num alojamento da firma no município vizinho de Votorantim. O salário é de R$1.100 por mês. Com horas extras, chega a R$1.700, suficiente para alugar uma casa para a família que, em breve, estará de novo reunida. Os próximos a chegar são os três filhos do casal, Loumensa, de 7 anos, Donalason, de 4, e Chenala, de 9.
- Vim porque vi que quem tinha vindo havia conseguido emprego para trabalhar - diz Dominique.
O sonho haitiano de trabalhar no Brasil e ganhar salários de até R$4 mil começa numa agência de viagens da República Dominicana, com a qual todos fecharam negócio, mas de cujo nome nenhum diz se lembrar. É lá que são vendidos os pacotes de imigração ilegal, a preços que vão de US$1.000 a US$2.600. O roteiro é conhecido: República Dominicana, Panamá e Lima. A partir da capital peruana, o trajeto é feito de ônibus, passando por Puerto Maldonado, até Iñapari, última cidade antes da fronteira com Assis Brasil, porta de entrada oficial ao território brasileiro pela rodovia Interoceânica, que liga o Brasil ao Oceano Pacífico, num trajeto de 1.700 km.
O Brasil dos sonhos dos haitianos não tem crise econômica, é carente de mão de obra e, de quebra, ainda há Ronaldo Fenômeno, ídolo dos jovens haitianos. Mas, em Iñapari, o sonho acaba: o trabalho da agência termina ali, a 113 quilômetros de Brasileia. O percurso pode ser feito de carro ou táxi em uma hora e meia. A diferença entre sonho e pesadelo é saber se a Polícia Federal brasileira permitirá a entrada sem o visto obrigatório, que deveria ter sido emitido no Haiti. Desde o Natal, a fronteira está liberada.
Relatos de roubo em travessia no mato
Quem chegou antes, entre novembro e dezembro, foi vítima de boatos de que a passagem sem visto estava impedida e caiu nas mãos de coiotes. Dois irmãos peruanos cobrariam US$50 para levar até a fronteira com a Bolívia, e outros US$50 para cruzar com os haitianos dentro da mata, numa caminhada de duas horas. Há quem diga que, para simular dificuldade, a dupla fazia os haitianos andarem em ziguezague. Na fronteira da Bolívia, houve quem cobrasse pedágio para evitar que fossem presos. Mais US$50. Os que não tinham dinheiro deixaram malas e objetos de valor.
A pé, carregando malas no meio do mato, haitianos contam ter sido também roubados e mulheres, estupradas. Houve até notícias não confirmadas de haitianos mortos no caminho.
Luciene Chachou, de 24 anos, e Joseph Christine, de 37, vivem o pesadelo. Cada uma pagou US$1.000 para vir. Ao chegarem em Iñapari, em dezembro, souberam que a fronteira estava fechada e aceitaram o trabalho dos coiotes. Na mata, diz Luciene, as duas foram agredidas e tiveram seus pertences arrancados. Após o susto, chegaram a Brasileia sem saber por onde começar e foram acolhidas por uma haitiana, que alugara uma casa, enquanto esperava pelo visto. Mas, esta semana, a mulher foi embora.
- Estamos na rua, não sabemos onde ficar - diz Joseph Christine, que só fala crioulo, sentada na praça ao lado da amiga e companheira de viagem.
Com a ajuda de um intérprete, ela conta que não gosta da comida oferecida pelo governo do Acre; acha as condições em Brasileia muito ruins e está decepcionada, porque a agência que vendeu "o pacote" disse a ela que, logo ao chegar, começaria a trabalhar. Há cozinheiros, padeiros, pedreiros e profissionais de todo o tipo entre os haitianos na praça de Brasileia.
O problema é que eles não têm como sair dali. Além da espera pelo visto humanitário, que demora até 45 dias, agora há o medo. No ano passado, grupos de haitianos receberam passagem do governo do Acre para ir até Porto Velho, em Rondônia, onde encontraram trabalho, principalmente ligados à construção de três hidrelétricas. Lá, muitos esperam ganhar dinheiro e seguir para o sonho maior: São Paulo.
Haitianos com diploma universitário ou com dinheiro não ficam no hotel da praça. Alugam casas e andam pelas ruas. Pelo menos 20%, calcula o governo do Acre, são estudantes que buscam vagas em universidades. Muitos deles têm Brasília como destino.
A notícia de um sucesso, como o de Dominique, ou recados da família que ficou no Haiti, de que um ou outro já está estudando ou bem empregado, alimenta a esperança de quem está em Brasileia. Fresner Jeune, de 29 anos já possui CPF e visto temporário, mas diz não ter dinheiro para seguir viagem. E tem muito medo de ficar na rua numa cidade grande. O que faria numa cidade de 11 milhões de pessoas como São Paulo? Quem o ajudaria?
- Você acha que dá para arrumar emprego em São Paulo? - pergunta, com olhar esperançoso.
Assim como Jeune, centenas de haitianos perambulam pelas ruas de Brasileia. O visto humanitário dado pelo governo, por enquanto, termina ali.

'Lá tem muito problema. Depois do terremoto, piorou'

Corpo a Corpo
Richard Seraphin

BRASILEIA (AC) - Aos 33 anos, o haitiano Richard Seraphin passa tardes conversando com amigos à beira do Rio Acre, numa praça bem perto da principal rua de comércio de Brasileia. O grupo de amigos, bem vestidos e simpáticos, é discreto. A tranquilidade, porém, contrasta com a história que trazem do Haiti para o Brasil.

Como você chegou ao Brasil?

RICHARD SERAPHIN: Trabalhei na República Dominicana, depois peguei visto e viajei para o Panamá e Quito. Paguei US$ 2.800 para vir até a fronteira do Peru com o Brasil. A viagem demorou seis dias.

O que você fazia no Haiti?

SERAPHIN: Trabalhava em hospital, com endoscopia.

Por que vir para o Brasil?

SERAPHIN: Lá tem muito problema. Depois do terremoto, piorou.

Você perdeu parentes no terremoto?

SERAPHIN: Treze pessoas da minha família morreram.

O que você espera do Brasil?

SERAPHIN: Vim para trabalhar. Quando conseguir emprego, vou voltar ao Haiti buscar minha família.

Quem está lá?

SERAPHIN: Sou casado, tenho mulher e três filhos. Um menino de 7 anos e duas meninas, de 12 e 5.

Há quando tempo está aqui em Brasileia?

SERAPHIN: Um mês e 15 dias. Estou procurando emprego, mas não acho.

O que você pretende fazer. Ficar em Brasileia?

SERAPHIN: Quero ir a Porto Velho, dizem que tem emprego lá. Quando conseguir dinheiro, vou para São Paulo. Quando conseguir mais dinheiro, busco minha família.

Saga dos haitianos rumo ao Brasil é retratada no drama de Francesas
Pais da menina de 1 ano penaram para ter filha a seu lado no Acre

Cleide Carvalho
cleide.carvalho@sp.oglobo.com.br
Enviada especial

BRASILEIA (AC) - Francesas tem 1 ano e 6 meses. Nasceu depois do terremoto que devastou o Haiti, mas a tragédia faz parte de sua história. Seus pais, Gisele Methelis, de 27 anos, e Ilfride Jean Mary, de 28, eram donos de uma loja de roupas e haviam viajado para a casa de parentes dois dias antes do tremor. Tinham casa, carro e renda suficiente para o plano de casar e ter filhos, mesmo num país que o mundo parece enxergar como um lugar sem alternativas. Quando retornaram da viagem, não tinham mais nada.
E a história de Francesas prossegue em Brasileia, numa casa de madeira à beira do rio Acre, onde a menina vive agarrada ao pescoço do pai. Ilfride chegou a Brasileia no começo de 2011. Como é também pintor, arrumou emprego na obra de uma escola. Com alguma renda, achou que era hora de trazer mulher e filha. Gisele veio, Francesas ficou no caminho.
Foi deixada pela mãe no colo de uma desconhecida no aeroporto da República Dominicana. Gisele não sabia que era preciso passaporte e pagar metade do valor da passagem aérea para que a criança, de colo, pudesse embarcar com ela. Sem saber o que fazer e com medo de perder os dólares pagos pela viagem, embarcou aos prantos, deixando a filha com a mulher que prometeu ajuda.
- Supliquei a ela que cuidasse bem da minha filha, que eu mandaria dinheiro todo o mês. Passamos a mandar R$ 300 por mês para ela cuidar do bebê. Ela ligava pedindo dinheiro para leite, roupa, sapatinhos. Nós mandávamos, mas quando a neném chegou, veio apenas com a roupa do corpo - conta Gisele.
Uma mentira para poder reencontrar a filha
Os meses se passaram, mas o casal não tinha dinheiro suficiente para buscar a criança. Foi então que o acaso colocou na história uma terceira pessoa. A irmã de Gisele ligou do Haiti perguntando se estava fácil arrumar emprego no Brasil. Uma conhecida da família queria vir. Gisele mentiu.
- Eu disse que era só vir que achava emprego. Menti porque queria que ela trouxesse minha filha - conta.
Foi assim, na certeza de uma vida melhor, que Chrismére Surcin, de 38 anos, embarcou para o Brasil. A família de Gisele ajudou na compra da passagem para que ela pegasse a menina na República Dominicana e a trouxesse a Brasileia.
Chrismére, com a menina no colo, chegou a Iñapari, no Peru. Ali, ficou sabendo que não conseguiria passar pela fronteira do Brasil sem ajuda. Pagou para passar pela mata à noite. A pé, com a criança e as malas. Na lama, perdeu a sandália, deixou rasgar uma mala e, com medo de se perder do grupo, largou para a trás parte do que trazia. Para piorar, Francesas, que vinha só com a roupa do corpo, fez cocô. Francesas chegou na véspera do Natal, de volta ao colo dos pais. Chrismére desabou a chorar.
Desde então, estão os três, adultos e a criança, à beira do rio até que ele suba. Na quinta-feira, faltavam 60 centímetros, na casa alugada por R$ 200 mensais. Ilfride, já rebatizado de "pintor Alfredo" pelos brasileiros, sai todo dia à procura de trabalho, mas não tem achado. E o que diz Chrismére, que só fala crioulo e não entende português ou espanhol?
- Tem dia que vejo que ela fica triste, mas não fala nada - diz Gisele.
A pedido do GLOBO, ela pergunta diretamente a Chrismére se ela voltaria ao Haiti se conseguisse passagem.
- Eu gostaria de voltar e trazer meu filho para estudar aqui - diz ela, segundo Gisele.

Invasão de começou em 2010
Boliviano foi o primeiro a notar haitianos em Brasileia

BRASILEIA (AC) - Foi um boliviano quem notou o primeiro grupo de haitianos em Brasileia. Refugiado político, Roger Zaballos vive do lado de cá da fronteira com seu país há três anos, com a mulher e os filhos. A família vendeu a casa que tinha na vizinha Cobija e, com o dinheiro, construiu uma no Brasil. No fim de 2010, olhou para dentro de um quartinho alugado no centro da cidade e viu uns seis rapazes.
- Fui para casa e minha mulher tinha feito um bolo. Resolvi ir lá levar, para saber quem eram. Cheguei com metade de um bolo e, quando entrei, vi que tinham 22 haitianos. Eles dormiam deitados no chão, como palitos de fósforo. E estavam com muita fome - conta.
A presença do grupo dos 22, no mesmo ano do terremoto no Haiti, mobilizou a população da cidade. Zaballos procurou o padre, acionou a Cáritas e a Acnur, a agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para refugiados.
- Demos a voz de alerta e, no dia seguinte, já tinham 45 haitianos na cidade - diz ele.
Os haitianos receberam doações de roupas, produtos de higiene pessoal e comida. A primeira doação oficial, conta o boliviano, foi da Cáritas, que enviou cestas básicas. A prefeitura de Brasileia se sensibilizou. Levou todos para o ginásio de esportes e, com a igreja, começou a fazer ali as refeições.
Segundo Zaballos, uma adolescente de apenas 16 anos, chamada Milene, destacou-se como líder na organização do grupo. O outro "companheiro" era Estache, de 45 anos. Juntos, passaram a organizar as tarefas.
Os apoiadores conseguiram que uma empresa de Porto Velho, chamada Multiservice, contratasse algumas pessoas para trabalhar na capital de Rondônia. Foram todos, até a adolescente, que conseguiu emprego em uma lanchonete.
Para eles, foi preciso explicar o bê-a-bá do Brasil, alertando inclusive sobre o fato de a menor estar sozinha, junto com vários homens. Nessa altura, início de 2011, já eram 100 no ginásio de esportes. A população reclamou que não podia mais usar as quadras; foi então alugado o hotel Brasileia, onde hoje estão 800 haitianos.
De setembro de 2011 para cá, o número de haitianos só cresceu, culminando com a entrada de 500 nos últimos três dias de 2011.
Nas contas de Zaballos, que ensinou espanhol para alguns, cerca de quatro mil haitianos podem ter entrado no Brasil pelo Acre. Ele diz que, embora o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) tenha emitido cerca de 1.600 vistos provisórios até dezembro, muitos haitianos já conseguiram o protocolo da Polícia Federal e viajaram para outros estados.

O Globo, 08/01/2012, O País, p. 3-4

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