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No ar, a Rede Wayuri

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26 de Jan de 2021

No ar, a Rede Wayuri
Na Amazônia, um coletivo de diversos povos indígenas faz jornalismo contra interesses do homem branco e as fake news

Por Laís Duarte
26 Jan 2021

Dizem que as notícias voam. Mas como permitir que atravessem uma imensidão de terras, águas e árvores que compõem a Amazônia? Comunicação por lá é desafio quase tão grande quanto contabilizar a maior biodiversidade do planeta. E é justamente quem protege essa biodiversidade que dá voz aos fatos amazônicos. A pontinha do mapa do Amazonas, no noroeste do estado, é conhecida como a "cabeça do cachorro" por conta de seu formato . Mas bem que poderia ser Torre de Babel. Não há outro canto do país onde tantas línguas se fundam, se conversem, se entrelacem. Na região de São Gabriel da Cachoeira vivem 420 comunidades indígenas, de 23 etnias, que falam 19 idiomas. E por isso a cidade tem como línguas oficiais: nheengatu, yanomami, tukano, baniwa e o português. Na venda da esquina, na secretaria de educação, em qualquer comércio ou repartição pública há sempre quem fale múltiplos idiomas. Para fazer com que as notícias da cidade cheguem às populações das aldeias mais distantes, nasceu em 2017 a Rede Wayuri. "A comunicação sempre foi uma preocupação aqui. Em 2016, na época das eleições, começaram a surgir muitas fakes news sobre demarcação de terras indígenas, sobre os direitos dos povos tradicionais. Precisávamos narrar a versão verdadeira, mostrar o ponto de vista dos indígenas. Fizemos um diagnóstico de comunicação junto com o Instituto Socioambiental, que é nosso parceiro. O resultado mostrou a necessidade de criar uma forma de comunicação que estivesse também presente nas comunidades. Nasceu assim a Rede Wayuri", conta Raimundo Benjamin, baniwa responsável pela comunicação da FOIRN, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.

Wayuri, em nheengatu, significa trabalho coletivo, mutirão. Para marcar a estreia, o maior artista da região, Feliciano Pimentel Lana, líder do povo Desana, morto aos 84 anos pela Covid-19, registrou com seus traços magistrais o símbolo: a imagem de um comunicador rionegrino animado falando ao microfone, em frente à montanha Bela Adormecida, cartão postal do Alto Rio Negro.

Unida pela Amazônia, a equipe conta com 26 comunicadores de 10 povos. Divididos entre aldeia e cidade, a rede tem correspondentes espalhados pela gigantesca bacia hidrográfica do Rio Negro, um território maior do que Portugal. Há repórteres às margens do Içana, Ayari, Uaupés, Tiquié, Jurubaxi e no Baixo, Médio e Alto Rio Negro. Cada calha conta com correspondentes locais, com a função de enviar para a capital indígena, a sede urbana de São Gabriel, informações importantes de sua "área de cobertura". Em São Gabriel, comunicadores se desdobram na produção, redação e tradução das notícias. A locução e edição dos boletins também é atribuição deles, no corre-corre do factual. Gravado no celular e editado em software livre, o áudio final é colocado em plataformas modernas como o Soundcloud e o Spotify, mas decola mesmo para os ouvintes do Rio Negro pela distribuição via WhatsApp. Como muitas aldeias não contam com acesso à internet, as notícias viajam por dias de barco, compactadas em pendrives. Minúsculos folhetins, imensos na quantidade de informações. "Nas terras indígenas se espalham graças à rádios-postes. É um megafone preso em um poste, ligado à uma mesa de áudio. As pessoas são reunidas para ouvir os boletins e saber o que está acontecendo", explica Claudia Ferraz Wanano, locutora-repórter-editora da rede.

Carros de som se tornam veículos de informação, literalmente, quando a notícia é urgente. O combate à Covid-19 e à malária, por exemplo, exigiu que os informes ganhassem as ruas. "A informação salva vidas. Durante a pandemia percebemos que os indígenas tinham muita dificuldade para compreender as orientações médicas repassadas em português. Cada correspondente traduziu para o seu idioma. Explicamos como cuidar das famílias, respondemos as dúvidas, tudo nas línguas indígenas", orgulha-se Claudia. "A informação salva vidas. Durante a pandemia percebemos que os indígenas tinham muita dificuldade para compreender as orientações médicas repassadas em português. Cada correspondente traduziu para o seu idioma. Explicamos como cuidar das famílias, respondemos as dúvidas, tudo nas línguas indígenas" Claudia Ferraz Wanano Distribuindo notícias aos 4 ventos pelos informativos em áudio, as cartilhas nas línguas tradicionais, o envio diário de boletins pela radiofonia da FOIRN, o famoso canal 790 do Alto Rio Negro, os comunicadores da floresta foram fundamentais para ajudar as autoridades sanitárias a educar a população, controlar a disseminação e evitar que o número de mortes fosse ainda maior. "O importante da rede é abarcar, é contemplar toda essa diversidade. As notícias são geradas por comunicadores indígenas pertencentes a várias etnias, produzindo conteúdo nas suas línguas e com seu sotaque, seu jeito, com as suas expressões, com a sua forma de narrar. Eu, por exemplo, como jornalista não-indígena, que veio para cá para trabalhar com a formação dessa rede de comunicadores, tenho o desafio de trabalhar a técnica do jornalismo, orientar e apoiar esse coletivo, mas ajudar a construir um jeito de fazer comunicação que é amazônico, que é indígena, e que tem o sotaque do Rio Negro", define Juliana Radler, do Instituto Socioambiental.
O trabalho em mutirão rendeu ao coletivo o reconhecimento da ONG francesa Repórteres Sem Fronteiras. A equipe da Rede Wayuri está entre os exaltados "Heróis da Informação", lado a lado com profissionais consagrados da imprensa mundial. Mas enquanto repórteres mundo afora contam com 5G ou com internet por fibra óptica para fazer a notícia chegar rápido aos espectadores, os comunicadores da floresta operam milagres diários para transmitir a informação. Sem internet banda larga, a melhor conexão no município é via satélite oferecida pelo Gesac, satélite brasileiro público, sigla de Governo Eletrônico - Serviço de Atendimento ao Cidadão. Para se ter uma ideia, essa conexão não ultrapassa pífios 10 mega e sempre está sujeita às intempéries climáticas. Bastou o tempo fechar e a internet cai, o que acontece quase todo dia na floresta com maior densidade de chuvas do planeta.

O acesso é fraco, frágil e caro. Os pacotes de internet de 1 mega, em São Gabriel da Cachoeira, custam cerca de R$ 300 por mês e o cliente mal consegue ver um vídeo no YouTube. Em São Paulo, por exemplo, o consumidor paga R$ 100 por 120 mega de fibra óptica. A internet móvel ainda não dá conta do recado, pois, apesar das grandes demanda, expectativa e necessidade, há poucas antenas instaladas pelas operadoras e pouco interesse em resolver o dilema amazônico da comunicação eficiente. As consequências não atrapalham apenas o avanço da informação por distâncias enormes, mas também as aulas dos professores, o trabalho na prefeitura, o acesso da população aos programas sociais, ao sistema de saúde, etc. A alternativa é usar aplicativos como o ShareIT, sem necessidade de internet, e por aí os áudios vão ganhando o território e chegando aos ouvintes.

Embrenhados na mata Para noticiar o que acontece por lá, além de acesso às letras, é preciso preservar a força ancestral da floresta. É preciso também paciência e fazer da canoa extensão do próprio corpo. Claudia viu transformar suas perspectivas trabalhando na rede. Ela é parte do povo Wanano. Estudou Letras na Universidade Estadual do Amazonas, em São Gabriel da Cachoeira, cresceu ali. Mas nenhuma aula de geografia ou mapa a preparou para os caminhos sinuosos dos afluentes do Rio Negro. Para fazer uma reportagem e participar de uma oficina para comunicadores com a etnia Koripako, no Alto Içana, ela descobriu os próprios limites numa viagem que durou dias. "É a comunidade mais distante que já visitei. É uma viagem que você só faz se puder contar com a colaboração do outro. Fomos pelo rio. Depois desembarcamos com toda a bagagem. Seguimos por uma trilha no meio da mata, à pé, com o peso da mochila nas costas, debaixo de sol e chuva. Atravessamos cachoeiras. Pegamos outro rio. E eu só pensava que aquela minha dificuldade temporária é rotineira para os parentes da floresta, mães carregando seus filhos, homens em busca de suprimentos. Mas foi muito gratificante", conta. "Eu nunca tinha ido à Terra Indígena Yanomami, mas conhecia a fama da viagem ser muito difícil. Em 2017 descobri que é sofrido mesmo. Me desafiei a enfrentar as dificuldades desses povos" Cláudia Ferraz Wanano Quando o desafio não vem do rio, está na estrada. "Eu nunca tinha ido à Terra Indígena Yanomami, mas conhecia a fama da viagem ser muito difícil. Em 2017 descobri que é sofrido mesmo. Me desafiei a enfrentar as dificuldades desses povos. Saímos de São Gabriel da Cachoeira às 7 horas da manhã de carro por uma estrada horrível. Depois pegamos uma voadeira (um barco rápido à motor) pelo Rio Negro. Chegamos lá às duas da manhã do outro dia, mas valeu a pena. Me marcou muito ver esse outro território, outra cultura, outro modo de vida, e o céu mais lindo da minha vida. Nunca vi tantas estrelas", reflete ela.
Brasil poliglota Se existe um lugar do Brasil com mais poliglotas por metro quadrado deve ser aqui. Raimundo fala baniwa, português, kuripako e espanhol. Arranha o nhengatu, e aprendeu tudo no sobe e desce do rio, numa região onde a floresta une etnias, onde Colômbia e Brasil se misturam sob o verde. Ele nasceu na comunidade Taiaçu Cachoeira com vocação para o estudo. Não há nada que ele mais goste na vida do que aprender. Tanto que se tornou capaz de ensinar, professor indígena na escola Baniwa Kuripako, um lugar especial por permitir o acesso das crianças e adolescentes às letras e à internet. "O único ponto de acesso à rede estava lá. Eu era responsável pela internet em um turno e participava do curso de formação promovido pelo Ministério das Comunicações no outro. A gente aprendia informática básica e comunicação. Tinha oficinas online e também aulas presenciais na cidade. Foi aí que eu conheci a equipe da FOIRN", relembra ele.
A rede mundial de computadores tinha acabado de fincar raízes na Amazônia. Era 2006! O trabalho dele era ser multiplicador, garantir a inclusão digital da população. Como ferramenta para essa tarefa superlativa o professor contava com um computador e a energia elétrica de um gerador por algumas horas do dia. "A juventude gostava muito e eu me sentia responsável por usar a tecnologia para um bom fim. Criamos um jornal da escola, um blog, fazíamos oficinas de audiovisuais. Isso me levou à FOIRN", conta ele. Por conta da habilidade com as línguas e o viver na floresta Raimundo virou tradutor na comunidade Tunuí Cachoeira, que fica a 4 dias de barco de São Gabriel. Quatro dias e noites inteiros dentro de um barco levado pelas águas do rio Içana, noroeste do Amazonas. Quando as aulas presenciais exigiam, lá ia ele rio afora cruzar distâncias imensas em busca do conhecimento. "Eu gosto muito de estudar. Comecei a faculdade de marketing e pretendo continuar. O estudo exige tempo", conclui Raimundo. O tempo agora é de dedicação à Rede Wayuri.

Eleições Pela primeira vez os repórteres fizeram a cobertura das eleições municipais de 2020, entrevistando os candidatos à prefeitura. Dos 6 concorrentes, 4 eram indígenas. Todos foram sabatinados pela equipe para falar de suas propostas para a cidade e as comunidades indígenas. E a cobertura ainda foi além: "Falamos um pouco sobre voto consciente, sobre a importância do voto do dia 15 de novembro, para que os eleitores não jogassem fora esse direito. Também fizemos um podcast especial abordando as candidatas indígenas, mulheres aqui da nossa região que concorreram à câmara de vereadores", conta Claudia. No dia do pleito, os locutores assumiram os microfones da rádio FM da cidade para mostrar desde a abertura das urnas até a conclusão da apuração. Usar a informação para construir pontes e valorizar culturas é função da Rede Wayuri num momento em que as culturas indígenas se veem muito ameaçadas. A Covid-19 avança sobre os povos tradicionais, mas as ameaças existem muito antes do vírus. Desmatamento e garimpo ilegais, contaminação por mercúrio, violência tiram as vidas dos defensores do maior tesouro do país, a floresta que resiste em pé, graças à sua gente ameaçada. "Os povos indígenas estão em situações de grande vulnerabilidade, de ameaças aos seus direitos adquiridos sobretudo a partir da Constituição de 1988. Há invasões aos seus territórios, há tentativas religiosas de conversão dos povos indígenas, que colocam em risco as suas culturas. Então, a comunicação é um meio de fortalecimento da cultura, de mostrar para a sociedade não-indígena a importância dos saberes dos povos originários. É uma forma de assegurar que eles tenham seus direitos garantidos e a liberdade de exercer suas tradições", ressalta Juliana Radler. O acesso à tecnologia não afasta os indígenas de suas tradições. Aproxima cada aldeia de sua história e seus direitos. Oferece a eles a possibilidade de você gravar CDs e eternizar as músicas de cada etnia, criar filmes indígenas. "A gente vê hoje em dia uma produção cada vez maior de filmes com temáticas indígenas, como recentemente 'A Febre', que ganhou o festival de Brasília. Uma história falada em tukano, gravada aqui no Amazonas. Todas essas ferramentas tecnológicas da informação e da comunicação podem vir a favor da valorização cultural dos povos originários do Brasil, em defesa dos seus direitos", diz a jornalista do ISA.
Fake news da mata As notícias falsas podem matar. Foi o que a equipe da rede aprendeu na cobertura da pandemia do novo coronavírus. Era preciso falar aos povos tradicionais e se fazer entender. "A quantidade de fake news começou a preocupar as lideranças. Meus pais mesmo são mais velhos, não entendem a informação que recebem em português. Era preciso assumir a narrativa para assegurar a sobrevivência", conta Raimundo. O combate aos boatos virou foco dos comunicadores da floresta. "Muitas vezes as mentiras são colocadas nas mídias por pessoas que têm interesses econômicos nas terras indígenas. Então, quando você vê, por exemplo, um representante da Frente Parlamentar Agropecuária dizendo que os índios agora só querem plantar soja, temos agora a possibilidade de ver a Rede Wayuri entrevistar o presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro e dar uma resposta. Um homem branco não pode falar em nome das quase 305 etnias que temos no país", comenta Juliana Radler.

"Um homem branco não pode falar em nome das quase 305 etnias que temos no país" Juliana Radler

Microfone ligado, câmera à postos. "A comunicação é uma ferramenta importante para abrir os olhos dos povos indígenas, escancarar as ameaças. Através da informação damos visibilidade a nossa luta", como conta Claudia Ferraz. Gravando, a Rede Wayuri conquista um furo de reportagem: reescreve a história dos indígenas do Brasil. Dessa vez, contada pelos próprios indígenas. "A comunicação provoca reflexão e gera consciência. Esperamos mostrar às pessoas que a Amazônia preservada é vital para os povos tradicionais e também para o mundo", destaca Raimundo. A luta dos indígenas para manter a maior floresta tropical do planeta de pé deve ser manchete no mundo inteiro.

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