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Autor: Ademir Correa
04 de Ago de 2020
"A assistência à saúde das populações indígenas não pode mais ser uma adaptação grosseira de programas para brancos que tentamos fazer funcionar", diz em entrevista exclusiva o neurologista Erik Jennings Simões sobre a ameaça da covid-19 na Amazônia
Ademir Correa
04 Ago 2020 - 08h03 Atualizado em 04 Ago 2020 - 08h03
O neurologista Erik Jennings Simões é responsável, desde 2003, pela saúde do povo Zoé (etnia de contato recente). Piloto de pequenos aviões, ele visita comunidades como um dos cinco médicos responsáveis pelo atendimento de uma área de 500 mil m2 da Amazônia brasileira e está na linha de frente do tratamento do coronavírus entre os povos indígenas.
Este é um dos piores momentos vividos para as comunidades indígenas?
Sem dúvida um dos piores momentos, pois as populações indígenas estão lutando contra a virulência da covid-19 e das políticas do Estado Brasileiro que, neste momento, enfraquece instituições como IBAMA, ICM-bio, FUNAI e Ministério Público Federal, que são fundamentais na proteção territorial e cultural desses povos.
Você falou da possibilidade de um genocídio e um etnocídio indígena no Brasil. Você tem esperança de que isso não aconteça?
Infelizmente o genocídio já está em curso. A mortalidade por covid-19 nas populações indígenas da Amazônia está sendo 150% maior do que na população em geral, e a letalidade sempre em torno de duas vezes mais que da população não indígena, segundo dados do IPAM (Instituto de Pesquisa da Amazônia). O número de indígenas mortos pela covid-19 já ultrapassa o total de mortes de alguns países da América Latina. Trata-se de uma urgência humana, social e ambiental estancarmos a sangria exposta por esses índices. Precisamos assistir os indígenas doentes e tentar evitar que o contágio se propague para as populações isoladas e de recente contato para que o etnocídio não aconteça em larga escala.
O que justifica esse descaso das autoridades com essas populações?
Em minha opinião, o descaso é proposital. Os povos indígenas sempre foram vistos como um estorvo ao modelo de desenvolvimento que a sociedade nacional sempre quis impor. As classes dominantes do país nunca aceitaram que 13% do território nacional esteja fora da lógica do capital. Trata-se de uma investida histórica, que ultimamente tem se fortalecido com concepções religiosas que fazem parte do governo. Além disso, a falta de planejamento de ações sociais e de saúde contextualizadas para as culturas indígenas faz do próprio Governo Federal um dos principais vetores de contágio da covid-19 para essas populações. Muitos povos contraíram a infecção no deslocamento para a cidade com o intuito de receber auxílio social. Em outras áreas o vírus foi levado por agentes do Estado, como profissionais de saúde e militares em ações humanitárias sem testagem adequada. Outros foram contaminados por invasores ilegais. Isso levou as Organizações Indígenas a entrarem com uma ADPF (Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental) no Supremo Tribunal Federal. É uma ferramenta jurídica prevista na Constituição que pode ser usada sempre que, por ação ou omissão, o Estado Brasileiro estiver violando algum preceito fundamental, como: direito à vida, à saúde ou à dignidade humana. Essa é uma ação histórica, uma vez que os advogados são indígenas. É a primeira vez que os povos indígenas buscam seus direitos na justiça usando seus próprios advogados.
Existem ações possíveis para reduzir o impacto do coronavírus na Amazônia?
Sim, existem. A primeira e mais importante é a proteção territorial das comunidades. Não podemos pensar em saúde sem proteção territorial. Não podemos pensar em barreira sanitária com 20 mil garimpeiros ilegais dentro de território Yanomani, por exemplo. Também é fundamental aumentar a resolução das ações de saúde dentro desses territórios. A assistência à saúde das populações indígenas não pode mais ser uma adaptação grosseira de programas para branco que tentamos fazer funcionar para indígenas. Não consigo admitir que no lugar de investirmos em tecnologia e recursos humanos dentro dos territórios indígenas, estamos construindo e reservando leitos para as etnias em hospitais de campanha nas grandes cidades. A APIB construiu recentemente, com ajuda de técnicos e profissionais da saúde, um Plano Emergencial para Enfrentamento da covid-19. Nesse plano, existe um conjunto de ações que podem reduzir o impacto da infecção nessas populações. Um dos pontos importantes é o fortalecimento da SESAI (Secretaria de Saúde Indígena), uma das maiores conquistas dos povos indígenas do Brasil, que possui milhares de profissionais de saúde, com uma capilaridade de ações na Amazônia sem precedente na história, mas que precisa sanar lacunas assistenciais que se tornaram patentes por ocasião da pandemia.
https://gq.globo.com/Corpo/Saude/noticia/2020/08/neurologista-que-atend…
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