VOLTAR

Negros da floresta

Isto É, Brasil, p. 44-45
29 de Set de 2004

Negros da floresta
Registros de beleza e cor retratam o cotidiano das comunidades quilombolas em meio à selva amazônica

Ana Carvalho

De tudo um pouco já se ouviu sobre a Amazônia e suas lendas. Mas a novidade para muitos é saber que não são somente índios e caboclos que escreveram e ainda escrevem a história da maior floresta tropical do planeta. A escravidão também manchou de sangue e contos fantásticos o lado mais verde do coração do País. Na segunda metade do século XVIII, escravos da etnia bantu, vindos da região Congo-angolana desembarcaram no Baixo Amazonas para servir de mão-de-obra nas fazendas de gado e cacau de Óbidos a Santarém. Mas a resistência guerreira e o aprendizado eficaz de exploração da mata foram suficientes para que esses negros rompessem os grilhões rumo à liberdade. Eles embrenharam-se na selva formando quilombos ao longo dos rios Trombetas e Erepecuru. As comunidades se estabeleciam sempre acima das cachoeiras, proteção da mãe natureza contra as expedições contratadas para trazê-los de volta e até eliminá-los.
Foi com tribos indígenas que os africanos, então foragidos, aprenderam os segredos da floresta. E nela, em local quase impenetrável, permanecem seus descendentes até hoje. O coração verde que abriga os quilombos pulsa no município de Oriximiná, noroeste do Pará. São 28 comunidades (cerca de seis mil pessoas com relação de parentesco) que ocupam uma área de seis mil quilômetros quadrados do maior município do Brasil. Oriximiná equivale à metade do Estado de São Paulo. Os quilombos são a menina-dos-olhos do fotógrafo Carlos Penteado. Desde 2001, ele registra o cotidiano, as cerimônias, a cultura dos quilombolas que vivem da pesca e da agricultura de subsistência. A fonte precária de renda é a colheita da castanha.
A existência dos negros da floresta será mostrada em centenas de fotos de Penteado a partir da quarta-feira 30 na Ímã Foto Galeria (rua Fradique Coutinho, 1.239, São Paulo). Ele fez cinco viagens ao quilombo, o primeiro a ser titulado no País em 1995. Segundo o fotógrafo, o trabalho começou quando a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP) - ONG que recebe apoio financeiro da Comunidade Européia e da ICCO, entidade não-governamental holandesa - o contratou para registrar o projeto de manejo de castanhas no território dos quilombolas.
O projeto, que forneceu infra-estrutura - como canoas motorizadas e armazenamento da produção - à principal atividade econômica, acabou despertando em cada comunidade a necessidade de ter um registro de sua existência para as futuras gerações e, também, para mostrar ao País o povo afro-brasileiro e meio índio, diante do mix cultural, da floresta. "Eles começaram a nos pedir uma memória visual. Todo o material será encaminhado a eles e exposto em São Paulo, na Ímã; em novembro a mostra estará na Assembléia Legislativa de São Paulo e em Belém", conta Penteado.
Lúcia Andrade, coordenadora executiva da CPI-SP, ressalta a importância do trabalho de Carlos Penteado fazendo reverberar o desejo dos quilombolas de Oriximiná: "Eles querem que o País saiba que eles existem." A cultura afro-indígena católica chama atenção. Uma das aiuê (festa em kimbundo, dialeto africano) mais importantes é a de São Benedito, que no candomblé é Ossaim, orixá da floresta, dono das ervas, o médico de todo o panteão afro. Ela ocorre no dia 6 de janeiro na comunidade de Jauari. Eles saúdam o padroeiro e as riquezas obtidas durante o ano.
Os quilombos de Oriximiná são preservados pela natureza até hoje. Para chegar ao município onde está localizada a área, só de avião ou dias de barco. Para uma comunidade quilombola visitar outra, por exemplo, são necessárias 12 horas de navegação. Com o tempo, a cultura original se transformou e o muito que lá existe tem que ser protegido não apenas pela floresta, mas pela memória nacional.

TRAJETÓRIA
Penteado é fotógrafo autodidata desde 1984. Manteve estúdio em São Paulo de 1986 a 1993. Durante três anos dedicou-se às artes, trabalhando com escultura em vidro. Em 2000 retomou a fotografia

Isto É, 29/09/2004, Brasil, p. 44-45

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.