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Negociata agrária

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: GRAZIANO, Xico
25 de Nov de 2003

Negociata agrária

Xico Graziano

R$ 132.000.000. Isso mesmo: 132 milhões de reais! Esse é o preço que o governo federal está pagando para implantar no Paraná seu primeiro grande projeto de reforma agrária. Escandaloso.

Situada no município de Rio Bonito do Iguaçu, a Fazenda Araupel se dedica ao plantio de pinheiro e eucalipto, matéria-prima utilizada na fabricação de papel e celulose. Com área total de 53 mil hectares, incluídos os reflorestamentos, representava a maior reserva particular de mata nativa na Região Sudeste. Até ser invadida pelo MST, pela primeira vez, em 1996.

Iniciou-se então uma impiedosa devastação florestal. Em 1999, o Incra adquiriu, por acordo, 28 mil hectares da área, destinando-a para a implantação de dois projetos: o assentamento Ireno Alves e o Marcos Freire, beneficiando cerca de 1.400 famílias. Sobrevivem da extração ilegal de madeira nobre.

Preservacionistas denunciam, há anos, o crime ambiental, talvez o maior cometido em nome da reforma agrária. Justo na surrada mata atlântica. Milhares de caminhões de araucária e outras madeiras de lei carregaram toras sem qualquer admoestação do Ibama ou do Instituto Ambiental do Paraná. A denúncia, devidamente consubstanciada, vem da ONG Terra de Direitos, de Curitiba. A revista jurídica "Consulex" traz a imagem da devastação, por satélite: 17 mil hectares foram surrupiados.

A ganância dos sem-terra, todavia, parece infindável. Em outubro, pressionado por novas invasões, o ministro Miguel Rosseto anunciou, em Curitiba, a aquisição de novos 25 mil hectares, remanescentes da Fazenda Araupel. Foi uma festa.

O MST comemorou. O povo vai pagar a conta. Cada uma das 1.580 famílias a ser beneficiada custará, de saída, R$ 83,5 mil aos cofres públicos.

Tem mais. Somando-se os créditos, destinados para a implantação do projeto, com as despesas administrativas do Incra, cada família assentada custará, no mínimo, R$ 100 mil. Uma nota preta.

Façam a comparação: com a bolsa-família valendo, no máximo, R$ 80, os sem-terra da Araupel valem 104 anos de benefício social para um excluído da cidade. Faz sentido?

Configura uma insanidade econômica. Fora a rapina ambiental. Da área agora adquirida, 9 mil hectares se encontram em APP, Área de Preservação Permanente. Outros 5 mil hectares estão totalmente reflorestados. Mesmo com todas as promessas de preservação, ninguém duvide: vai acabar tudo na motosserra. Ou no velho fio do machado.

Custo-benefício é palavrão no modelo da reforma agrária brasileira. A idéia original, formulada nos anos 60, exigia punir o latifúndio, desapropriando-o. Com a divisão da propriedade rural se esperava o desenvolvimento econômico. Isso, claro, não tem preço.

Amordaçada pela ditadura militar, a reforma agrária permaneceu duas décadas no papel. Em 1985, com a Nova República, começaram as desapropriações, no escopo do primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária. Sua roupagem, todavia, havia mudado: tratava-se de resgatar a dívida social do país.

De econômica, a reforma agrária virou política social. Altruísta, nunca se verificou seu resultado prático.

Mais recentemente, na metade do primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, técnicos do BNDES e do próprio Incra questionaram o elevado custo do distributivismo agrário. Naquela época, em 1997, os cálculos indicavam um custo médio de R$ 40 mil cada família assentada. Caríssimo.

Atacando de frente as superindenizações e os precatórios fraudulentos, comuns nas desapropriações, o governo reduziu as despesas. Em 2001, afirmava que o custo diminuíra para R$ 20 mil, na média nacional. Esta variava entre R$ 7 mil no Pará até R$ 50 mil no Paraná.

Com a modernização da agropecuária, terras ociosas cedem lugar à produção. Seu preço se eleva. A expansão da soja e do algodão, especialmente, fez triplicar os preços da terra nas regiões de fronteira agrícola, em Mato Grosso, Maranhão, Tocantins. Quer dizer, nada mais restou barato na reforma agrária brasileira.

Nos estados do sul-sudeste, as fazendas ociosas desapareceram, felizmente, impossibilitando a desapropriação para fins de reforma agrária. Doravante, somente vinga a compra negociada, e cara, através de escritura pública. Bom para o vendedor.

Foi o que aconteceu com a Fazenda Araupel. Venderam áreas de preservação permanente que nunca poderão ser exploradas. Incluíram ainda florestas artificiais que demoram décadas para serem aproveitadas. Uma boa negociata.

Resumo: dos 25 mil hectares adquiridos, restarão apenas 8,7 hectares para cada família tentar a sorte nas agruras da roça. Francamente, não vale a pena.

Será que as famílias não prefeririam um bom emprego, em vez de mísero e caríssimo sítio? Quantos dos invasores podem ser classificados, mesmo, como sem-terra? Será que o recurso público, vultoso, não encontraria uma alternativa mais eficaz para cuidar da miséria?

Intrigam, as perguntas. Angustiam, as respostas.

Quem conhece as táticas do MST sabe que a organização coloca a faca no pescoço das autoridades e exige o cumprimento de suas ordens. Autoritariamente. Esticam o conflito, espertamente, até próximo do ponto de ruptura. No final, sempre levam.

Não tem lógica, nem futuro, uma reforma agrária assim. Financeiramente, é impagável. Econômicamente, é inviável. Tecnicamente, é insustentável. O distributivismo da terra, superado pela História, perdeu seu rumo. Periga virar uma mamata.

Em nome da miséria, torra-se o dinheiro público. No futuro, quem pagará a conta?

Xico Graziano foi presidente do Incra e secretário de Agricultura de São Paulo. E-mail: xicograziano@terra.com.br

O Globo, 25/11/2003, Opinião, p. 7

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