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Nêgo Bispo, o quilombola que lavrava ideias

Valor Econômico, Brasil, p. A2
Autor: CHIARETTI, Daniela
16 de Jan de 2024

Nêgo Bispo, o quilombola que lavrava ideias
Filósofo e ativista político era Crítico do colonialismo ocidental

Por Daniela Chiaretti
16/01/2024

Uma grande amiga jornalista tem o hábito, no fim de cada ano, de fazer uma fogueira imaginária com termos que foram massacrados de tão usados e dão enjoo de ouvir. Nas chamas de 2023 queimaram "alinhar", "é sobre", "literalmente", "narrativa". A coleta de clichês que serão lançados ao "fogo" é um esforço de purificar ideias, criar "novas narrativas" e risadas. Ruy Castro escreveu uma coluna na Folha de S.Paulo ("Simples Assim") costurando frases com "lugar de fala", "empoderado", "novo normal", "robusto". Para quem quer "sair fora da caixinha", 2023 foi também o ano de publicação de "A terra dá, a terra quer", do pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos. Nas 107 páginas editadas pela Ubu, nada fica no lugar. Conceitos e termos, é tudo original em Bispo, simples e demolidor.
Conceito, aliás, é palavra que o filósofo e ativista político não usa. Deixa a expressão para as pessoas da academia. Prefere "denominar". Crítico do colonialismo ocidental, Nêgo Bispo, como ficou conhecido o poeta que nasceu em 1959 no vale do rio Berlengas, no Piauí, buscava a descolonização. "Ele não acreditava no sistema em que a gente vive. Propunha ações que subvertessem o sistema atual por meio da autonomia da ancestralidade quilombola", explica Milene Mia Oberlaender, coordenadora do programa de política e direito Socioambiental do Instituto Socioambiental.
Bispo era lavrador. Aos 10 anos começou a adestrar bois e entendeu que adestrar e colonizar são a mesma coisa. "Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-o de seus sagrados, impondo-lhes novos modos de vida e colocando-lhe outro nome", escreve. "O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta", argumenta. Como estratégia de defesa, os quilombolas resolveram "denominar também". A intenção era "contrariar as palavras coloniais como modo de enfraquecê-las".
Desenvolvimento, então, é descartada -a boa é envolvimento. Desenvolvimento sustentável não leva a lugar algum na perspectiva quilombola de Bispo e a expressão é trocada por biointeração; para o saber sintético, melhor o saber orgânico. "O saber orgânico, que engloba a forma como os quilombolas manejam seus territórios, em oposição ao sintético, é um dos marcos de Nêgo Bispo", diz a bióloga Raquel Pasinato, que trabalha com quilombos há 18 anos e é assessora técnica do programa Vale do Ribeira do ISA.
Lavrador de palavras, Bispo germinou confluência, dizia que cidade é o contrário da mata, que arte é "conversa das almas" e é diferente de cultura. "Nós não temos cultura, temos modos - modos de ver, de sentir, de fazer as coisas, modos de vida. A cultura é uma coisa padronizada, mercantilizada, colonial. Os colonialistas dizem que não temos cultura quando não nos comportamos do jeito deles. Quem não sabe tocar piano ou não sabe o que é música erudita, quem nunca frequentou um teatro, o cinema, para eles não têm cultura. Para nós, quem não sabe dançar no batuque, quem não sabe fazer uma comida, quem não se emociona com a cantiga de um pássaro não tem um modo agradável de viver."
Nêgo Bispo não dava folga. "Ecologia é uma palavra utilizada pelos acadêmicos. No quilombo, não existe ecologia, existe a roça de quilombo, a roça de aldeia, a roça de ribeirinho, a roça de quebradeira de coco. Por que a academia usa a palavra ecologia, e não agricultura quilombola? Por que não usa roça indígena?"
O primeiro da família a ser alfabetizado, Bispo foi incumbido, desde pequeno, a traduzir para a escrita o conhecimento quilombola que é transmitido de forma oral. Foi uma liderança da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, a Conaq, entidade criada em 1996 que reúne organizações em 24 Estados e luta pelos direitos das comunidades quilombolas no país. Foi do movimento sindical, do Partido dos Trabalhadores. Mas depois, cansou de tudo. Era preciso desconstruir, dizia.
"Nossa geração avó dizia que a gente planta o que a gente quer, o que a gente precisa e o que a gente gosta, e a terra dá o que ela pode e o que a gente merece", escreve Bispo. Em sua descrição do manejo das roças quilombolas vai se aprendendo o que é plantar culturas com ciclos diversos. Um milho de ciclo curto servia para ser comido mais rápido e assado, mas o de ciclo longo renderia plantas mais altas e assim, mais pastagem para os animais. Terra com muita leguminosa nativa recebia plantios de feijão; na que dava muita gramínea nativa, o cultivo seria de milho e arroz. "É a linguagem cósmica. É simples. Não é preciso fazer análises de solo porque a terra já diz o que está disposta a oferecer", ensina.
Segundo o IBGE, existem 5.972 localidades quilombolas no país. Um levantamento do MapBiomas mostrou que estão entre as áreas de menor desmatamento no Brasil. A grande luta é pela garantia de direitos e titulação de territórios.
"Somos povos de trajetórias, não somos povos de teoria. Somos da circularidade: começo, meio e começo. As nossas vidas não têm fim. A geração avó é o começo, a geração mãe é o meio e a geração neta é o começo de novo." Nêgo Bispo morreu em 3 de dezembro, em São João do Piauí, a 450 quilômetros de Teresina. Teve uma parada cardiorrespiratória. Visionário e referência intelectual quilombola, tinha 63 anos.

Daniela Chiaretti é repórter especial
E-mail: daniela.chiaretti@valor.com.br

Valor Econômico, 16/01/2024, Brasil, p. A2

https://valor.globo.com/brasil/coluna/nego-bispo-o-quilombola-que-lavra…

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