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Navio na Amazônia tem cirurgia e lancha-ambulância para indígena desnutrido: 'Peixe puro não enche'

OESP - https://www.estadao.com.br/
21 de Out de 2024

Navio na Amazônia tem cirurgia e lancha-ambulância para indígena desnutrido: 'Peixe puro não enche'
'Estadão' acompanha missões da Marinha no coração da floresta; embarcação hospitalar leva ajuda médica a áreas remotas em Roraima. Alvo do garimpo ilegal, região abriga povo Yanomami

Gonçalo Junior

21/10/2024

Dos rincões da Amazônia, quem fica doente não tem como chamar ambulância. Mesmo que haja sinal de telefone, as estradas não existem. Muitas pistas de pouso são precárias e inseguras para aviões. O tempo pode ser instável para helicópteros, com chuvas repentinas e neblina forte. Navios e lanchas são a única opção para complementar o trabalho dos poucos postos de saúde em terra firme.

Assim são atendidas as comunidades que vivem ao longo do Rio Catrimani, afluente da margem esquerda do Rio Branco e um dos principais caminhos para a Terra Yanomami, a maior reserva indígena do País.

Mas não é qualquer barco que consegue cruzar as curvas em forma de "cotovelos" dos rios. Os 100 metros de largura ficam"estreitos" para grandes embarcações, pois impede algumas manobras.

Além disso, a profundidade dos rios é insuficiente. Neste caso, só é seguro navegar até a foz, o local onde ele deságua. É exatamente neste ponto em que se encontra o navio-hospitalar Carlos Chagas.

A embarcação é parte da Operação Catrimani II, liderada pelas Forças Armadas, para dar apoio a essa remota região de Roraima. Entre os 800 agentes, parte deles com armamento pesado, há também médicos, enfermeiros e dentistas.

O Estadão embarcou nessa missão, em junho, e conta os bastidores do trabalho da Marinha nessa série especial.

A tripulação fala por mensagens de WhatsApp com os líderes comunitários e aguarda os pacientes. É o que fazemos agora. Esperamos tão angustiados quanto a tripulação do navio. Estamos tensos porque está a caminho uma rabetinha, canoa com motor na parte traseira, com sete indígenas a bordo.

Já estão bem atrasados. Deveriam ter chegado no fim da tarde - e já são 21 horas. "Podem ter ficado parados esperando a chuva passar", sugere o capitão-tenente Tiago Carvalho, imediato do navio, similar a um substituto do comandante.

"São crianças com verminoses, infecções de pele: problemas difíceis de serem tratados na região por causa da falta de especialistas"

Ana Paula Belo

Enfermeira

Fábio Luiz Wankler, professor de Geologia na Universidade Federal de Roraima (UFRR), afirma que o rio tem uma navegação de quase 200 km em linha reta. Mas, pelas características do canal, essa distância pode dobrar ou triplicar em termos de percurso real.

"É como um deslocamento Rio-São Paulo, mas sem estrada, só com florestas", explica um oficial. Por isso, a demora.

O barco finalmente chega por volta das 22h30, após mais de oito horas de navegação. A rabetinha faz emergir no escuro sete indígenas magros e miúdos, entre 20 e 74 anos, conforme a equipe médica explicou depois. Não há desespero nem choro; apenas silêncio, esboços de sorriso, pequenos acenos.

Os indígenas são das comunidades Caju, Tabatinga e Castanho/Curral, todas da Terra Indígena Yanomami, a 120 milhas náuticas ou 240 quilômetros distantes de onde estamos. Os olhos arregalados e as palavras mínimas expressam a dificuldade de entender o português.

Tento algumas perguntas, mas as respostas vêm picadas: "sede" e "muita chuva". Eles vêm de uma região praticamente isolada, com uma das mais baixas taxas demográficas do Brasil. Em Caracaraí, são 0,44 habitantes por km², segundo o Censo de 2022 do IBGE. Em Boa Vista, são 72,71 hab/km².

Um dos indígenas franze a testa já enrugada e quer se fazer entender. Os gestos simplificam e vão até onde as palavras não chegam: ele passa a mão na barriga, indicando que é ali que dói. É a fome.

Diante do crescimento do garimpo e da falta de atendimento médico, a população indígena vive grave insegurança alimentar e calamidade na saúde. Além da explosão da malária, a crise é agravada por doenças trazidas pelo contato não controlado com homens brancos, como gripe e covid-19.

A mineração irregular também afasta animais, contamina os rios com mercúrio e mata peixes. A Operação Catrimani II inclui um navio de guerra, o Raposo Tavares, que leva agentes equipados com óculos de visão noturna, lancha blindada e metralhadoras para localizar balsas de garimpeiros ilegais.

Os crimes ambientais degradam a floresta, casa dos indígenas, que também é essencial para frear a crise climática. É isso que torna mais extremos e frequentes fenômenos como a tempestade que devastou o Rio Grande do Sul ou as queimadas que varreram o interior de São Paulo e o Pantanal este ano.

Apesar do decreto de emergência em saúde na reserva Yanomami, o número de mortes de indígenas na região aumentou 5,8% no ano passado e a gestão Luiz Inácio Lula da Silva (PT) liberou em março R$ 1 bilhão extra para novas ações. O Ministério dos Povos Indígenas diz que entre 2023 e este ano caiu 33%, mas não detalhou os dados.

E, segundo o Ministério da Saúde, o Centro de Reabilitação Nutricional Yanomami foi estabelecido para acolher e tratar pacientes desnutridos. Segundo a pasta, o número de profissionais de saúde subiu de 690 para 1.497, "o que permitiu que cerca de 5,2 mil indígenas voltassem a receber assistência".

Marinha leva raio X, farmácia e gabinete de dentista
O Ministério dos Povos Indígenas diz ter acordo com uma empresa aérea para a distribuição de alimentos e prevê entregar oito mil cestas por mês na região. As cestas contemplam hábitos alimentares de cada local.

A pasta afirma ainda que, junto de outros ministérios, entregou três mil kits de ferramentas agrícolas e de pesca, além de 184 equipamentos para casas de farinha. E distribuiu sementes e mudas de plantações, para atender a pedidos das comunidades, que querem ter seu cultivo e sua autonomia.

Erivelton, o barqueiro, explica em português vacilante que as macaxeiras vão demorar a crescer. "Peixe puro não enche", resume.

"Eles estão desnutridos, bastante abaixo do peso. Vamos fazer exames para verificar se estão com anemia ou alguma doença de base", explica o médico Haniel Costa.

O caso de um idoso de 74 anos chama a atenção da equipe médica por que os primeiros exames mostram um princípio de diabete, possivelmente pelo contato com a alimentação dos não indígenas (consumo de açúcar e refrigerantes), sugerem os médicos.

A enfermeira Ana Paula Belo conta que outros problemas comuns estão ligados à falta de saneamento básico. "São crianças com verminoses, infecções de pele, problemas difíceis de serem tratados na região por causa da falta de especialistas".

Quietinhos, os indígenas vão passando pelos dois ambulatórios, dois gabinetes odontológicos, laboratório, farmácia, sala de raios X, duas enfermarias do navio. É uma estrutura capaz até de salvar pessoas com enfarte, AVC, ferimento por bala e realizar pequenas cirurgias; as ocorrências mais comuns são os partos.

A embarcação, de 47 metros, também tem estrutura para pouso de helicóptero, que pode transportar pacientes mais graves que passam por estabilização a bordo. O navio Carlos Chagas, cujo nome homenageia um dos maiores cientistas e sanitaristas brasileiros, iniciou sua operação há cerca de 40 anos.

Esse atendimento é ainda mais importante porque é raro. Só duas vezes por ano. "Complementa o SUS", diz a odontologista Maria Luísa Lins, que costuma fazer 10 atendimentos por dia.

"O principal desafio é o regime dos rios. Nem sempre eles estão cheios e navegáveis. Outro problema é a distância. O tempo nem sempre é suficiente para chegar a certas localidades", conta o médico Costa.

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