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Natureza a serviço da ciência

OESP, Caderno Especial, p. X1-X6
07 de Ago de 2008

Natureza a serviço da ciência
Com a maior biodiversidade do planeta, o Brasil se vê diante de um grande potencial de desenvolvimento de medicamentos, mas precisa conhecer melhor sua fauna e sua flora

Biodiversidade, essa desconhecida
Estudos estimam que cerca de 90% das espécies brasileiras ainda não foram descobertas

Giovana Girardi

O Brasil é o país mais biodiverso do mundo, abrigando cerca de 20% da biodiversidade do planeta, mas ainda desconhece a maior parte de suas plantas, animais e microrganismos. As cerca de 200 mil espécies já descritas por aqui não devem representar mais do que 10% do total, segundo estimou, em 2006, o pesquisador Thomas Lewinsohn, da Unicamp, que coordenou uma avaliação do conhecimento da biodiversidade brasileira para o Ministério do Meio Ambiente (MMA).

"E, se mantivermos o ritmo atual de descobertas de novas espécies, levaremos de 800 a 1.000 anos para conhecer tudo", diz o diretor de Conservação da Biodiversidade do ministério, Braulio Dias. "Ou melhor, esse é o tempo para descobrir o básico, a taxinomia. Porque para conhecer toda a biodiversidade, a ponto de poder aproveitá-la em benefício da sociedade, estamos ainda mais longe."

Mamíferos e aves são os grupos mais conhecidos, seguidos de répteis, anfíbios e peixes, mas, mesmo assim, não é raro ainda descobrir um novo macaco na Amazônia ou um anfíbio na mata atlântica. Só no ano passado foram descritos 17 novos sapos, rãs e pererecas no Brasil. Por outro lado, as espécies pequenas que vivem nas copas das árvores, além de invertebrados, microrganismos e espécies marinhas estão entre as mais desconhecidas.

"Deveríamos ter a ambição de ser o maior produtor de ciência em biodiversidade do mundo. Estamos sentados em cima dessa riqueza potencial, mas ela só deixará de ser potencial para ser real se investirmos em pesquisa. No mínimo dobrar o esforço científico nos próximos anos", afirma Dias.

Para cientistas que estudam a área, somente com mais pesquisas é possível vasculhar o tão aclamado potencial farmacológico da nossa biodiversidade e fornecer, com isso, mais informações para protegê-la da destruição. "Não adianta tentar conservar para o futuro, se não houver um avanço no conhecimento dessa biodiversidade. As duas coisas têm de andar juntas", afirma o biólogo Carlos Alfredo Joly, da Unicamp, que há mais de 20 anos estuda a biodiversidade da Serra do Mar.

Ele alerta, porém, que, apesar de haver um interesse nacional em aumentar as pesquisas na área, os cientistas ainda enfrentam dificuldades (mais informações na página 7). "A legislação atualmente até facilita o processo de coleta de fauna e flora. Uma vez obtida a autorização no Sisbio (novo Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade, em funcionamento desde o ano passado), o pesquisador está livre para coletar. Mas não tem autorização para fazer bioprospecção", reclama Joly.

Trabalhando com o programa Biota, inventário da biodiversidade paulista patrocinado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), o biólogo tem feito varredura de plantas da mata atlântica e do cerrado no Estado. Outros grupos fazem o mesmo para animais. Em outro projeto, ele avalia a diversidade de espécies entre o nível do mar e o topo da serra, no litoral paulista. "O material está sendo identificado e guardado para quando tivermos autorização para fazer a bioprospecção, porque por enquanto está difícil, é um atraso gigantesco."

SOLUÇÕES PARA SAÚDE

Mas, de fato, o que dá para esperar de aplicação prática para a humanidade? Para o médico Aaron Bernstein e o bioquímico Eric Chivian, ambos da Faculdade de Medicina de Harvard, a resposta não é nada trivial. No livro Sustaining Life (Sustentando a Vida), lançado em maio nos Estados Unidos, eles defendem que a própria saúde dos seres humanos depende da biodiversidade. E que a idéia de que a cura do câncer pode estar escondida em alguma floresta brasileira não é absurda.

Na obra, eles lembram que alguns remédios clássicos para o tratamento de tumores já vieram de matas de outros países, como a Catharanthus roseus (conhecida como pervinca de Madagáscar), ameaçada de extinção no país. A planta é fonte de duas drogas para o tratamento das formas mais comuns de câncer infantil (leucemia linfoblástica e linfoma de Hodgkin).

Outro exemplo significativo é o Taxol, um dos medicamentos mais eficientes que existem contra o câncer de ovário, descoberto a partir de uma árvore típica da costa noroeste dos Estados Unidos.

A dupla defende no livro que as recentes discussões sobre perda da biodiversidade estão focadas nas conseqüências ecológicas, assim como nos efeitos éticos, sociológicos e econômicos que ela pode trazer, mas pouco tem se avaliado os impactos que a perda de espécies terá na saúde humana.

Chivian cita como exemplo os ursos polares, ameaçados pelo aquecimento global. Esses mamíferos ganham e perdem peso com facilidade ao longo da vida, sem ficar doentes. "Ao perdermos esses animais podemos perder, também, o melhor modelo para estudar doenças relacionadas à obesidade", observa o bioquímico.

Glossário
BIODIVERSIDADE - São todas as espécies de animais, plantas e microrganismos que compõem a fauna e a flora nativas do país

RECURSOS GENÉTICOS - Numa definição abrangente, são todas as moléculas que fazem parte do organismo, incluindo seu DNA, RNA, enzimas e outras proteínas

BIOPROSPECÇÃO - A busca de moléculas naturais que tenham alguma aplicação comercial, principalmente na indústria de fármacos, cosméticos e alimentos

BIOPIRATARIA - O roubo ou o uso não autorizado de um recurso genético da biodiversidade brasileira para fins comerciais

CONHECIMENTO TRADICIONAL - É a "sabedoria" acumulada dos povos tradicionais (como indígenas e quilombolas) sobre o uso da biodiversidade. Por exemplo, o conhecimento sobre o emprego de plantas medicinais

REPARTIÇÃO DE BENEFÍCIOS - Conceito segundo o qual os povos tradicionais devem receber parte dos benefícios (financeiros ou não) obtidos a partir do uso do seu conhecimento

PESQUISA BÁSICA - A produção de conhecimento científico sobre a biodiversidade, sem objetivos comerciais, como pesquisas sobre ecologia e identificação de espécies, que compõem o dia-a-dia da biologia e orientam as políticas de conservação

COLETA - A atividade básica de coletar animais e plantas na natureza para identificação e realização de pesquisas. É a prática mais primordial e rotineira do estudo da biodiversidade

MEDIDA PROVISÓRIA 2.186 - Motivo da discórdia entre pesquisadores e governo. A MP, baixada em 2001, tinha como intuito combater a biopirataria. Mas acabou por prejudicar a própria pesquisa com a biodiversidade nacional. Com ela, nenhum cientista podia mais encostar numa folha ou numa formiga sem antes provar sua "inocência" e pedir autorização ao governo (mais informações na página 7)

ANTEPROJETO DE LEI - O próprio governo percebeu o problema e tenta criar uma lei amigável à ciência. Mas o tão aguardado anteprojeto de lei, que deveria corrigir as incoerências da MP, se mostrou uma colcha de retalhos que tenta atender a todas as partes envolvidas, mas não agrada ninguém

Droga contra câncer em teste
Hospital Albert Einstein avalia remédio feito com planta medicinal

Giovana Girardi

De uma garrafada tipicamente nordestina pode nascer o primeiro medicamento 100% brasileiro para o tratamento de cânceres. O produto foi desenvolvido a partir de uma planta conhecida como avelós e se mostrou eficaz em testes in vitro e com animais. Agora ele começa a ser avaliado clinicamente em pacientes no Hospital Albert Einstein, em São Paulo.

A árvore, presente no Brasil e em outras partes do mundo, há anos é manipulada em chás e nas tais garrafadas - misturas feitas com plantas consideradas medicinais pelo conhecimento popular e usadas para os mais diversos fins.

O suposto potencial antitumoral do avelós havia despertado a curiosidade de cientistas, mas as várias tentativas de transformá-lo em medicamento se mostravam frustradas, por conta do seu alto teor de toxicidade. Nenhuma ainda tinha conseguido comprovar sua segurança ou eficácia.

Até que entrou em cena o empresário do setor de bebidas Everardo Ferreira Telles, que viu um parente com câncer apresentar melhora após tomar o preparado em Teresina (PI). Oncologistas disseram que era apenas uma coincidência, mas, intrigado com o resultado, Telles resolveu investir em pesquisas com a planta.

O pesquisador Luiz Francisco Pianowski, proprietário de uma empresa de consultoria farmacêutica, foi chamado para fazer o meio de campo entre pesquisadores e indústria. "Quando ele me procurou, confesso que estava um pouco cético, mas depois percebi que os resultados eram realmente promissores", conta o farmacêutico, que coordenou os estudos junto a laboratórios e uma universidade do Brasil e do exterior, além do Einstein.

O trabalho começou há apenas cinco anos, tempo considerado curto para a média de desenvolvimento de novas drogas, que costuma ser de dez anos, mas Pianowski afirma que isso se deveu aos altos investimentos. Sem citar cifras nem mais detalhes sobre a molécula isolada, o pesquisador só conta que ela age inibindo enzimas relacionadas à multiplicação dos tumores e tem potencial antiinflamatório e analgésico.

Ele credita boa parte do avanço dos estudos também ao fato de os pesquisadores terem identificado uma espécie menos comum de avelós (família das Euphorbiaceaes) que apresenta uma concentração menor de substâncias tóxicas. Mas os pesquisadores fizeram ainda uma depuração da toxicidade para deixá-la adequada ao consumo humano.

No trabalho de desenvolvimento da molécula esteve envolvido, entre outros, o laboratório do farmacologista João Calixto, da Universidade Federal de Santa Catarina. Parcerias anteriores entre Calixto e Pianowski renderam, por exemplo, o antiinflamatório de uso tópico feito com a erva-baleeira ou maria-milagrosa (Cordia verbenacea) - um dos mais vendidos hoje no Brasil.

Além de atestar a segurança, as pesquisas farmacológicas serviram ainda para padronizar a planta, aumentando seu potencial, visto que não chegou a ser desenvolvida uma molécula sintética. "A idéia é continuar usando a planta, para não desfigurar a característica fitoterápica", explica Pianowski.

O projeto recém-iniciado no Einstein tenta agora comprovar a eficácia e a qualidade do produto. Segundo o médico Dagoberto Brandão, da empresa PHC Pharma Consulting, que coordena os testes clínicos junto com Augusto Paranhos, gerente de pesquisa clínica do Einstein, a droga está sendo avaliada originalmente para tumores de mama e próstata.

Esta primeira etapa, com 20 voluntários, busca descobrir a dose mais bem tolerada pelos pacientes. "Um possível efeito colateral é a diarréia, então tentamos ver a dose máxima que podemos dar sem que isso se torne um problema", diz Brandão, que participou do desenvolvimento do antiinflamatório à base de erva-baleeira.

Avanços da bioprospecção

A biodiversidade brasileira pode não ser a farmácia a céu aberto que muito já se alardeou - talvez esteja mais para agulha no palheiro -, mas certamente esconde riquezas que podem, sim, trazer soluções para doenças ainda sem tratamento. Para encontrá-las, porém, é preciso saber procurar. O conhecimento tradicional é de grande valia, como mostram os estudos com antimaláricos, mas ele é fonte de apenas parte dessas respostas. É preciso investigar a fundo a biologia de plantas e animais, entender seus modos de ação na natureza e aprender com eles antes mesmo de pensar em achar uma nova droga. É um processo de garimpo biológico, que, como tal, é demorado, pede paciência, muita pesquisa e investimentos pesados. Os textos abaixo mostram alguns resultados promissores obtidos em universidades e institutos do País.

Estudos focam doenças tropicais
Plantas e animais são esperança contra Chagas, leishmaniose e malária

Giovana Girardi

Plantas e sapos da caatinga e árvores da Amazônia estão se mostrando eficazes contra agentes infecciosos causadores de doenças características das regiões onde eles vivem: leishmaniose, doença de Chagas e malária. Pelo menos três pesquisas identificaram substâncias capazes de matar ou inibir a ação dos protozoários e que podem ser candidatas para novas drogas.

O trabalho mais avançado envolve uma planta encontrada no semi-árido conhecida como camapu ou mata-fome (Physalis angulata). Pesquisadores da Fiocruz-Bahia, liderados por Milena Soares, isolaram esteróides que se mostraram ativos contra o protozoário leishmânia e desenvolveram um medicamento de uso tópico que pode vir a ser utilizado contra a forma mais comum da doença, a cutânea.

Segundo Milena, a eficácia do produto já foi comprovada nos testes pré-clínicos em animais. Agora a equipe investiga sua segurança, ao mesmo tempo em que faz a propagação da molécula, para que não seja necessário extraí-la da natureza. Os pesquisadores estão empolgados porque não existem bons medicamentos contra a leishmaniose. "As drogas que temos hoje são antigas, de baixa eficácia e alta toxicidade. São necessárias várias injeções intramusculares que são muito dolorosas", diz.

Não tão adiantado, mas também promissor, é o trabalho feito por pesquisadores dos Institutos Adolfo Lutz e Butantã com o sapo cururu (Rhimella jimi). Na secreção da pele do animal, eles encontraram dois esteróides também capazes de matar a leishmânia - um deles destrói ainda o Trypanosoma cruzi (causador da doença de Chagas). Ambas não se mostraram tóxicas a células de mamíferos.

As moléculas já eram conhecidas em plantas da região, mas nunca haviam sido observadas no anfíbio ou testadas contra os dois protozoários. Provavelmente, foram incorporadas no animal pela alimentação, mas os pesquisadores ainda não sabem se o sapo faz uso desses esteróides para sua proteção.

"Mas, se pensarmos como o animal vive, é de esperar que encontremos boas soluções. O ambiente seco da caatinga vai contra a biologia do anfíbio, que pede água em parte da sua vida. As adaptações pelas quais teve de passar para poder viver fazem com que seja muito eficiente. Quanto mais inóspito o local onde vive, mais interessantes são suas moléculas", diz o biólogo Carlos Jared, do Butantã.

Segundo o pesquisador André Gustavo Tempone, do Adolfo Lutz, principal autor do estudo recém-publicado na revista Toxicon, o instituto tem como foco as chamadas doenças negligenciadas. "Não vamos parar na divulgação desses resultados. As moléculas são modelos interessantes. Agora queremos sintetizá-la, testando outros desenhos que possam ser ainda mais eficientes. Se conseguirmos, aí podemos passar para testes com animais", explica.

BUSCA DE ANTIMALÁRICO

Em outra linha, pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia estão checando a real eficácia de plantas tradicionalmente usadas por comunidades amazônicas para o alívio dos sintomas da malária. E têm encontrado uma taxa de sucesso considerável: "Cerca de um terço das plantas indicadas pela população já mostrou em laboratório alguma atividade contra o plasmódio", conta o químico Adrian Pohlit. Em buscas aleatórias, a chance de encontrar algum efeito contra uma doença costuma ser de menos de 1%.

Mas isso não quer dizer que todas essas plantas sirvam para tratar a doença. Algumas são muito fracas. Outras, muito tóxicas. As mais promissoras tiveram os princípios ativos isolados, que agora estão sendo modificados para se tornarem mais eficientes. Uma delas, que Pohlit preferiu não revelar, já gerou um composto forte, que deve seguir para testes em animais.

Para vasculhar a Amazônia, quanto mais coleta, melhor
Pesquisadores paulistas tentam investigar o maior número de espécies

Giovana Girardi

Como encontrar em meio ao universo verde da Amazônia plantas que de fato tenham algum poder terapêutico? Uma solução pode ser coletar o maior número de espécies possível e depois testá-las nos mais diferentes modelos de doenças, como vem fazendo uma equipe de pesquisadores da Universidade Paulista (Unip) e do Hospital Sírio Libanês.

Em meados da década de 90, o grupo, liderado pelos oncologistas Drauzio Varella e Riad Younes, começou a coleta botânica nas margens do Rio Negro. O objetivo era procurar substâncias que fossem capazes de combater células tumorais e bactérias resistentes a antibióticos.

Entre 1997 e 2002 e de 2006 para cá foram selecionados cerca de 2.200 extratos de plantas. Pouco mais da metade, 1.220, já foram testados in vitro para os dois grupos de células, e apenas 10% mostrou alguma atividade: 70 foram capazes de matar células de tumor (de mama, próstata, pulmão, cólon, cérebro e leucemia) e 50 destruíram bactérias ligadas a infecções hospitalares, a doenças bucais e diarréias.

A pesquisa, no entanto, ainda é inicial e ilustra bem a dificuldade de fazer bioprospecção. "Mostramos que os extratos são capazes de inibir a divisão celular dos tumores e bactérias, mas nem sabemos ainda quais são as moléculas de fato responsáveis por isso, nem se elas também pode causar danos a células humanas", explica a farmacêutica Ivana Suffredini, chefe do laboratório de extração da Unip. Só agora, com a entrada do Sírio no projeto, com laboratórios e investimento de R$ 1 milhão, é que os extratos serão purificados para a identificação dos princípios ativos.

O forte desse trabalho, até o momento, é seu tamanho. A extratoteca é provavelmente a maior do gênero no Brasil e ainda pode ser muito explorada. De acordo com Younes, que levou o projeto para o Sírio, onde é diretor clínico, novas frentes de pesquisa estão sendo abertas e os extratos serão testados para outros modelos de doenças.

"Alguns parecem ter papel anticoagulante, outros apresentaram potencial antioxidativo. Essa característica pode ser interessante para proteger pacientes que ficam muito tempo em UTI e acabam com o pulmão fragilizado pelo aumento de oxidação. E também vamos incluir outros modelos de tumores, em especial o de bexiga", diz Younes.

"É uma pesquisa gigantesca e queremos continuar coletando e testando mais e mais espécies. Se em 10 mil extratos acharmos um realmente eficiente para alguma doença, já teremos feito nossa parte", afirma.

Peixe venenoso pode render antiasmático para grávidas
Trecho de proteína do niquim apresenta propriedades antiinflamatórias

Giovana Girardi

Um veneno, que em sua ação natural provoca dor, edema e até necrose, pode se tornar um antiasmático inovador nos próximos anos. Essa é a aposta de um grupo de pesquisadores do Instituto Butantã, que trabalha com o peçonhento niquim (Thalassophryne nattereri), peixe bastante conhecido nas regiões Norte e Nordeste por seu potencial de causar acidentes.

A equipe originalmente observou que um peptídeo (trecho de proteína) presente no veneno continha propriedades antiinflamatórias.Após dois anos de desenvolvimento, os pesquisadores perceberam que a ação contra alergias respiratórias é a mais promissora, em especial contra asma. "Nossa intenção é desenvolver uma droga que possa ser consumida por outras vias que não as áreas. Visamos a aplicação para dois grupos de risco, mulheres grávidas e crianças", conta Mônica Lopes Ferreira, líder do projeto, que conta com o apoio do Centro de Toxicologia Aplicada (CAT).

Mais do que isso ela não informa, por causa do sigilo com a indústria farmacêutica - a maior parte do financiamento da pesquisa vem da empresa Cristália. Ela só adianta que foram produzidos 12 sintéticos menores do que a molécula original, a fim de baratear sua replicação. Um deles foi eleito o melhor, por ser de fácil síntese e ter demonstrado uma eficácia tão boa quanto a do peptídeo original. Agora a molécula está sendo testada em animais.

A experiência com o niquim levou o grupo a estudar outros peixes peçonhentos encontrados no Brasil: as arraias (gênero Potamotrygon), o bagre de mar (Cathorops spixii) e o de rio (gênero Psedoplatystoma) e o peixe-escorpião (Scorpaena plumieri). As pesquisas com essas toxinas, no entanto, não estão tão avançadas quanto com a do niquim. Nesse meio tempo, Mônica tenta encontrar uma forma de tratar os dolorosos acidentes provocados pelos peixes. Sua equipe está desenvolvendo um soro poliespecífico com o veneno dos quatro peixes, que pode servir para eles, mas também outra espécies dos mesmos gêneros.

Múltiplas ações na vegetação paulista
Pesquisas no cerrado e na mata atlântica indicam possíveis fármacos

Giovana Girardi

Em plantas da mata atlântica e do cerrado podem estar um novo tratamento para úlcera, um ansiolítico e dois cosméticos antienvelhecimento mais eficazes que os disponíveis no mercado, além de compostos com ações inovadoras contra mal de Alzheimer e tumores. Essa é a expectativa de pesquisadores do Núcleo de Bioensaios, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais (Nubbe), da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que há oito anos investigam o potencial da biodiversidade do Estado de São Paulo.

Inicialmente, a equipe até buscou informações junto a populações tradicionais, mas acabou adotando uma investigação mais aleatória. "O uso popular às vezes indica 20, 30 utilizações diferentes para cada planta. É preciso filtrar tudo isso", explica o pesquisador do Nubbe Alberto Cavalheiro.

Segundo ele, de 50 plantas coletadas nos dois biomas, pelo menos sete têm potencial para o desenvolvimento de novos fármacos. Após identificar as moléculas responsáveis pelas ações citadas acima, os cientistas, em colaboração com a indústria farmacêutica e cosmética, tentam, agora, eliminar eventuais propriedades tóxicas e ampliar as boas características. Entre os parceiros estão empresas como Eurofarma, Aché e Natura. Mas, como é praxe em contrato com empresas, Cavalheiro conta o milagre, mas não entrega o santo, ou melhor, as espécies responsáveis por tais efeitos.

BUSCA RACIONAL

Apesar dos resultados animadores, Cavalheiro alerta para a necessidade de uma busca mais racional, voltada para a sustentabilidade. "Acho que estamos vivendo dentro de uma visão mercantilista, de achar substâncias bioativas que possam trazer idéias de novos fármacos para o mercado, sem prestar atenção no entorno", critica.

"Mas o estudo da biodiversidade e o eventual desenvolvimento de novas drogas está associado ao entendimento da natureza e esse conhecimento deve servir para ajudar na conservação dessa mesma biodiversidade", afirma o pesquisador, ao lembrar que parte desse material já foi perdida na abertura de espaço para a agropecuária. "Muito já virou soja, boi, cana. Mas ainda temos 18 mil quilômetros quadrados de mata atlântica no Estado. A pesquisa trará dados para a conservação."

E complementa: "O papel da universidade não é fazer produto, isso é uma conseqüência, com a qual ainda estamos aprendendo a lidar", diz Cavalheiro.

O duro caminho até a indústria
Não basta só registrar o achado, é preciso avançar no desenvolvimento, mas poucos laboratórios investem nisso

Giovana Girardi

Quem olha para os estudos brasileiros divulgados em publicações científicas com novidades em bioprospecção pode ter uma falsa idéia de que tudo aquilo vai virar medicamento. Na verdade, o caminho para chegar à indústria é muito mais longo e tortuoso do que o já difícil processo de garimpagem da natureza.

A começar pelo fato de que ele perverte a velha noção da ciência de que, ao descobrir uma novidade, o pesquisador deve torná-la disponível ao seus pares. Para a indústria, a regra é outra: patentear primeiro, publicar depois. "Se não proteger a descoberta, ninguém investe", explica William Marandola, gerente executivo da Coinfar, empresa de pesquisa e desenvolvimento que une as farmacêuticas Aché, Biolab e União Química.

O problema é que patentear uma descoberta não é algo tão trivial assim. Ao menos no Brasil, o pesquisador não pode simplesmente registrar o achado de uma molécula que tem uma determinada ação. É preciso avançar no seu desenvolvimento, fazer algum melhoramento, criar um sintético etc. Mas a maior parte dos laboratórios não tem condições de fazer isso.

"É o que chamamos de vale da morte da ciência", afirma o diretor do Centro de Toxicologia Aplicada (CAT), Antonio Carlos Martins de Camargo. "Não adianta só o pesquisador encontrar uma substância interessante, um potencial anti-hipertensivo, por exemplo. A indústria não está interessada, porque tem um monte por aí. Mas, se ele faz todo o desenvolvimento inicial da molécula, mostra exatamente onde ela age, se pode ter efeito colateral, se é biodisponível, quais são suas vias de ação, se compara com os análogos, aí pode haver interesse. Mas bem poucos centros fazem tudo isso."

Empresas como a Coinfar têm assumido um pouco esse papel. Desde 2003, ela financia pesquisas conduzidas em universidades e institutos brasileiros, como o Butantã e o Núcleo de Bioensaios, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais (Nubbe), da Unesp. No momento, sete substâncias derivadas de venenos e toxinas animais estão em avaliação. Os mais promissores são um analgésico e um antitumoral (leia texto abaixo). "Nos editais que abrimos, recebemos muita coisa boa, que poderia render novas drogas, mas algumas já foram publicadas. Quando isso ocorre, o conhecimento se torna público e não temos como patentear. Aí já era. A indústria não se arrisca", diz Marandola.

FALTA DE VISÃO INOVADORA

Além da falta de infra-estrutura e de investimento para o desenvolvimento, Camargo acredita que existe um impedimento para o avanço tecnológico na própria postura dos pesquisadores. "Acho que, de certo modo, o cientista brasileiro ainda se comporta como o estudante adolescente que se contenta em tirar boas notas na escola e não em fazer uso desse conhecimento", afirma o pesquisador. "Às vezes, eles chegam a alguma coisa interessante, mas nem percebem que têm um potencial medicamentoso importante nas mãos."

Além disso, pesa o fator tempo de dedicação ao produto, comenta o farmacologista João Calixto, da Universidade Federal de Santa Catarina, um dos pais do primeiro fitomedicamento 100% brasileiro, um antiinflamatório à base de erva-baleeira.

"Entre descobrir uma substância e publicá-la, o pesquisador gasta, em média, um ou dois anos. Para fazer inovação, ele leva dez", comenta Calixto. Ele diz que dependeu da iniciativa própria para chegar até a indústria e desenvolver suas pesquisas. Atualmente, trabalha com plantas com potencial de ação para vitiligo e câncer (mais informações na página 3).

Fora a problemática dos pesquisadores, Camargo lembra que, por décadas, a indústria farmacêutica também não se preocupou com inovação. "Acostumada ao lucro fácil e rápido, as empresas apenas reproduziam os produtos criados no exterior", diz. Somente nos últimos anos é que começaram a buscar produtos locais, com base na biodiversidade. "Elas faziam apenas inovações incrementais, pequenas modificações de moléculas desenvolvidas fora do Brasil. Isso quase não pede desenvolvimento científico e tem pouco impacto na geração de riquezas. As empresas também estão aprendendo a investir em pesquisa."

Mas, para o pesquisador, também falta a contrapartida do governo brasileiro em oferecer um arcabouço legal que dê proteção suficiente para as empresas se arriscarem a fazer esse tipo de investimento.

Remédios que vêm das toxinas
Cascavel tem substância analgésica mais potente do que morfina

Giovana Girardi

Nos anos 1930, o médico Vital Brazil, fundador do Instituto Butantã, observou que pessoas picadas por cascavel não costumam sentir dor. Imaginou que a toxina podia conter alguma molécula analgésica vantajosa para a serpente - sem causar dor, ela pode passar despercebida pelo seu alvo. Brazil estava certo, mas se passaram quase 70 anos para a ciência comprovar isso. E, agora, o achado pode se transformar em um novo medicamento.

Equipe coordenada por Yara Cury, do mesmo Butantã (com apoio do CAT), extraiu do veneno da cascavel (Crotalus durissus terrificus) uma substância 600 vezes mais potente do que a morfina. O analgésico, batizado de Enpak, já foi patenteado, e uma molécula similar foi sintetizada. Esse processo é importante porque elimina a necessidade de usar o veneno para continuar os testes e torna o procedimento mais barato e viável para a indústria.

Além da potência analgésica, o produto guarda duas outras vantagens: ele apresenta ação de longa duração e não provocou dependência ou tolerância (a necessidade de aumentar a dose com o passar do tempo, como ocorre com a morfina) em testes preliminares com animais.

Os resultados atraíram a Coinfar, que encampou os testes com a droga. Após toda a fase de desenvolvimento da molécula no Butantã, o produto agora está nas mãos da indústria, passando por novas avaliações. Espera-se que, em meados de 2009, ele entre em testes pré-clínicos. De acordo com William Marandola, é a principal aposta do Coinfar.

Para Antonio Carlos Martins de Camargo, diretor do CAT, a "fórmula do sucesso" nesse caso foi a observação da natureza da cascavel. "O palpite de Vital Brazil estava certo. E, assumindo um olhar semelhante para outras coisas, podemos sempre encontrar novidades. A evolução natural é um processo de inovação constante", afirma.

Outra pesquisa iniciada no instituto e que chamou a atenção da Coinfar é com antitumorais obtidos a partir da saliva do carrapato-estrela (Amblyoma cajenfense). Equipe liderada por Ana Marisa Chudzinski-Tavassi havia observado que in vitro substâncias presentes na saliva eram capazes de matar células tumorais, sem agredir células normais. Em camundongos, a equipe conseguiu eliminar um melanoma. Na Coinfar, as linhagens da molécula foram ampliadas e estão sendo testadas em dez tipos de tumores.

OESP, 07/08/2008, Caderno Especial, p. X1-X6

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