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Natureza e informação

Estado de S. Paulo-SP
Autor: Washington Novaes
17 de Mai de 2002

Desperta preocupação o caminho adotado pelo governo federal ao criar e instalar o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético apenas com representantes de órgãos e entidades da administração pública federal e sem nenhum representante da sociedade. O conselho tem por missão criar mecanismos para levar à prática a medida provisória sobre acesso a recursos genéticos, sua remessa para o exterior e repartição de benefícios decorrentes do seu uso, assim como evitar e punir a chamada biopirataria.

A não-inclusão da sociedade no conselho foge à trilha da democracia participativa, que a cada dia parece mais necessária aqui e em toda parte.

De qualquer forma, com o conselho se tenta avançar num dos grandes temas da Rio-92, quando a Convenção sobre a Diversidade Biológica estabeleceu que os países têm soberania sobre as espécies da biodiversidade encontradas em seu território e que a exploração dessa diversidade deve proporcionar distribuição justa e equitativa dos resultados, inclusive com detentores do conhecimento nas chamadas comunidades tradicionais, aí incluídos grupos indígenas.

Há poucas semanas, em Haia, 182 países (os Estados Unidos apenas como observadores, porque não ratificaram a convenção da diversidade biológica) chegaram a um acordo quanto a esses temas. Os resultados obtidos por empresas devem ser partilhados com os países de origem dos recursos e com aqueles grupos. O acordo exige o "consentimento prévio informado" para a utilização do saber dessas comunidades.

Aí surge o primeiro problema com o Brasil, que, ao regular o assunto por medida provisória, exige apenas "anuência prévia", e não o "consentimento prévio informado" (este está previsto no projeto da senadora Marina Silva, de 1995). E isso pode significar problemas. Como têm lembrado os grupos indígenas, quem pode dar anuência em nome deles, se não há delegação de poder no sistema em que vivem?

Na reunião de São Luís do Maranhão, em dezembro último - A Sabedoria e Ciência do Índio e a Propriedade Industrial -, os representantes de grupos indígenas lembraram que nas terras por eles ocupadas se encontram 50% da diversidade biológica brasileira. E que o conhecimento sobre ela é coletivo:

"Não se separa de nossas identidades, leis, instituições, sistemas de valores e nossa visão cosmológica como povos indígenas." Se é assim, só eles mesmos podem dizer como será o conhecimento prévio informado.

Mas eles não estão no conselho, embora nessa reunião tenham pedido expressamente para participar. Como pediram a criação de um fundo para financiar pesquisas comunitárias, programas de capacitação. E uma moratória na aprovação de novas pesquisas que os envolvam, até que se defina no Congresso o Estatuto do Índio.

Não estão sozinhos os indígenas. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência também julga incompatível que o conselho não tenha representantes sociais.

Não tem adiantado muito. Em fins de abril foi enviado pelo Ministério do Meio Ambiente à Casa Civil da Presidência projeto para incluir na Lei de Crimes Ambientais penas para a biopirataria (até 30 anos) e a proibição de usar a biodiversidade para produzir armas químicas e de guerra, assim como penas de até seis anos para a remessa clandestina de material genético para o exterior.

Um episódio de que foi protagonista o norueguês Thor Heyerdahl, que morreu no mês passado aos 87 anos, mostra como é decisivo o conhecimento tradicional.

Heyerdahl ficou famoso em 1947, quando - para provar sua tese de que a Polinésia poderia ter sido povoada séculos antes por navegadores peruanos -, foi com cinco companheiros às partes mais altas da Amazônia peruana, cortou árvores, construiu uma balsa e com ela desceu pelos rios até o litoral. Ali artesãos teceram uma vela para a jangada, uma pequena cabana sobre esta, e os seis aventureiros se meteram pelo Oceano Pacífico. Depois de vencerem o cerco de cardumes de tubarões e outras ameaças, só com a força dos ventos chegaram meses depois à Polinésia, quase 7 mil quilômetros distante.

Mais tarde, Heyerdahl fez uma viagem da África ao Caribe, numa jangada de junco, porque vira ser essa a madeira usada há milênios pelos grandes navegadores. Mas quase não chegou, porque o junco se encharcou.

Como queria fazer a travessia Ásia-África em outra jangada da mesma madeira, Heyerdahl meteu-se pela Mesopotâmia, paraíso do junco, à procura de um velho de mais de 100 anos que diziam ser o maior conhecedor da espécie. O homem serviu-lhe, em sua modestíssima casa, iguarias espantosas e, ao ser interrogado sobre a razão do encharcamento do junco, respondeu com poucas palavras: "É porque você não cortou em agosto." A história da navegação no mundo dependera desse conhecimento, que já se perdia.

É preciso estar perto da natureza para saber, escreveu Heyerdahl em suas memórias (Na Trilha de Adão): "Julgamos ter feito o mundo menor porque somos capazes de viajar mais rápido em decorrência do pouco tempo de que dispomos.

No entanto, no passado os homens tinham condições para poder viajar lentamente. Eles eram ricos de tempo (...). Quanto mais nos distanciamos da natureza, mais complicada vem a ser nossa existência e mais difícil se torna trazer o peixe e os vegetais da natureza para a nossa mesa de jantar.

Conseguimos complicar tudo o que um dia foi fácil na nossa vida e agora tentamos compensar nossos erros com leis de trânsito e programas de computador, com médicos que pagamos para reparar o prejuízo causado por uma dieta incorreta e pela ausência de atividades físicas, com juristas a guiar-nos por um labirinto de leis (...). A única excitação que sentimos é a do sexo a que assistimos na TV. Vivemos nossa vida pela observação da vida de outras pessoas. Medimos nossa riqueza pelo dinheiro que acumulamos no banco."

Não é só para a utilização da biodiversidade que o conhecimento tradicional é decisivo. É para a nossa visão de mundo.

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