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Nas asas do CAN

Isto É, Brasil, p. 34-37
07 de Abr de 2004

Nas asas do CAN
Governo reinaugura o Correio Aéreo Nacional e pretende levar, mensalmente, equipes de médicos às populações carentes e isoladas da floresta no Acre

Eduardo Hollanda e Ichiro Guerra (fotos) - Rio Branco (AC)

O monomotor Caravan da Força Aérea Brasileira sobrevoa a pequena cidade de Marechal Thaumaturgo, localizada no encontro entre os rios Juruá e Amônia, no Acre. A pista de pouso asfaltada, rasgada no meio da selva, está à vista, mas a cidade de menos de nove mil habitantes - com apenas mil na área urbana - situa-se na outra margem do rio, na única área plana da região. Uma caminhada de quase um quilômetro leva à beira do Amônia, onde uma canoa a motor, construída à moda indígena com o tronco de uma única árvore, espera a equipe de médicos e oficiais da FAB. A travessia ainda não é o último obstáculo. Um barranco escorregadio precisa ser vencido para que a equipe finalmente chegue à cidade e dê início às atividades da quarta escala da nova rota do Correio Aéreo Nacional (CAN), previsto para ser reinaugurado pelo presidente Lula em 5 de abril. Setenta e três anos após ter sido implantado no País e se tornado um fator de integração nacional no século passado, o CAN volta a funcionar, desta vez com um aspecto social ainda mais forte. As missões serão basicamente de atendimento médico a populações de cidades que, por força da natureza, estão praticamente isoladas. Em missões mensais, o CAN levará um clínico, um obstetra, um pediatra e um dentista, podendo ser incluídos especialistas de acordo com solicitação das cidades integrantes da rota.

A equipe de ISTOÉ acompanhou, com exclusividade, a última missão preparatória do novo CAN e percorreu, em cinco dias, a bordo de um Caravan, monomotor para 12 pessoas e uma tonelada de carga, a rota que sai de Rio Branco, passa por Manoel Urbano, Feijó, Tarauacá e Marechal Thaumaturgo, e termina em Cruzeiro do Sul. E constatou que, desde os primeiros pousos de hidroaviões na capital do Acre, no início dos anos 30 - passando pela rota regular do CAN, a partir de 1947, que pousava nas mesmas cidades previstas para a retomada do serviço -, pouca coisa mudou. É verdade que, depois dos radares do Sivam, o vôo não é mais baseado na visão dos pilotos, como nos tempos heróicos do brigadeiro Eduardo Gomes. Mas a Amazônia sempre reserva surpresas e riscos. "A natureza é a mesma, as dificuldades de locomoção e integração também. O CAN foi parte integrante da vida de todo acreano com mais de 25 anos. Sua volta, mais do que uma viagem ao passado, é um passo para o futuro", afirma o governador do Acre, Jorge Viana (PT).
Filas - A realidade comprova esta análise. Em Manoel Urbano, município com sete mil habitantes à margem do Purus, por onde Lula vai passar, a obra mais recente é a pista de asfalto feita para o CAN. A cidade tem um hospital vazio onde só trabalham dois médicos. A simples menção da presença do major-médico da FAB Marcus Vinícius Bergo faz com que se formem filas de pacientes em busca de uma consulta, como a menina Leidiane de Morais, oito anos. Trazida de um seringal distante mais de 25 quilômetros, pelo pai, num cavalo e depois numa canoa, ela é examinada. Tem um berne enterrado na pálpebra esquerda, que quase lhe fecha o olho. O médico tenta extrair o inseto, mas o local está muito inflamado. Ele trata da ferida e aplica uma compressa de acetona para matar o animal. O organismo da menina vai expulsá-lo depois. Para o gerente de Saúde da prefeitura, José Lima dos Santos, a visita mensal de uma equipe de pelo menos quatro médicos da FAB vai finalmente dar bom uso ao hospital.
Cenas semelhantes se repetem ao longo da rota do CAN. Em Feijó, cidade de 30 mil habitantes - mais de 60% deles na área rural e nada menos que três aldeias indígenas -, a surpresa é um bem montado hospital com 80 leitos. O problema é o de sempre: a falta de médicos. São somente quatro, e dois passam a maior parte do tempo no interior, tentando atender quase 18 mil habitantes da área rural. Para o prefeito Francismar de Albuquerque (PT), o mais importante na volta do CAN é a presença de especialistas na equipe. "Vamos convocar a população pelo rádio. Acho que teremos umas 300 pessoas na fila para as consultas", calcula. Os pacientes deverão enfrentar jornadas de dois dias, como Elizário Lopes, seringueiro de 49 anos que chegou à cidade com fraturas nos braços e cortes profundos no corpo e na cabeça, fruto de um "duelo de facões". Ele quase foi o primeiro paciente transportado pelo novo CAN, mas acabou seguindo direto para Rio Branco em avião fretado pela prefeitura. "Transportar doentes será uma das atividades do CAN", explica o brigadeiro Cleonilson Nicácio da Silva, comandante do 7o Comando Aéreo Regional em Manaus. Junto com o comandante da Aeronáutica, brigadeiro Luiz Carlos Bueno, e o governador Jorge Viana, ele é um dos responsáveis pela volta do CAN, encampada com entusiasmo por Lula. O brigadeiro Nicácio antecipa que outra linha será ativada no Acre, nos próximos meses, assim que terminar a temporada de chuvas. A linha sairá de Rio Branco, passando por Santa Rosa do Purus (fronteira com o Peru), Jordão, Foz do Breu, Porto Walter e Cruzeiro do Sul. "Nessas cidades, que têm pistas de terra, é praticamente impossível pousar com chuva", afirma.

Integração
Inauguração - Marechal Thaumaturgo, a 15 quilômetros da fronteira com o Peru, lugar onde só se chega pelo rio ou de avião, espera com satisfação a volta do CAN. Para isso, o prefeito Itamar Pereira de Sá (PT) e a secretária de Saúde, Flávia Zampieri, montaram um consultório odontológico completo em um posto de saúde e se preparam para fazer uma lista dos casos mais graves a serem tratados pelos especialistas da FAB e do governo estadual, que deverão se integrar ao projeto. Flávia, uma paranaense de 25 anos, enfermeira e parteira, está há dois na cidade e, com mais três enfermeiros, todos vindos do Sul, garante o mínimo de atendimento de saúde aos moradores. E foi de Marechal Thaumaturgo a paciente que inaugurou, antes da hora, o CAN: Vangela Pereira da Silva, de 25 anos, que espera o quinto filho. Na gravidez anterior, o bebê nasceu morto. Dessa vez, Flávia convenceu a paciente a ter o filho em Cruzeiro do Sul. "Não vou fazer o parto, que pode ser de risco, apenas para mostrar que sei", afirma a dublê de secretária de Saúde e enfermeira. A chegada do avião da FAB facilitou as coisas.

A última escala do roteiro da volta do CAN é Santa Luzia, uma agrovila, resquício de um megalômano projeto de reforma agrária dos governos militares a mais de 20 quilômetros de Rio Branco. Moram na região quase cinco mil pessoas, em condições dramáticas de saúde.

A equipe da FAB terá seu problema reduzido por causa da presença dos médicos do navio-hospital da Marinha, "Doutor Montenegro". O navio, construído durante o governo de Orleir Cameli, foi doado por Jorge Viana por causa dos altos custos de manutenção e por um detalhe que deve ter sido "esquecido" na hora da construção: com 2,8 metros de calado, é tão grande que passa por poucos rios do Acre. Mas ele está na região levando mais de dez médicos, num programa anual da Marinha na Amazônia. Depois de atender os moradores de Santa Luzia, se o nível de água do Juruá for suficiente o navio-hospital irá até Marechal Thaumaturgo, na mesma época do vôo do CAN. "Será uma boa soma de esforços", comemora o major Bergo.

Para Jorge Viana, todos esses problemas dos municípios do Acre refletem as condições físicas do Estado, cortado transversalmente por rios de grande porte e um sem-número de afluentes. "A natureza tem que ser respeitada", diz. Ele pretende reativar a navegação fluvial como ponto de desenvolvimento e escoamento da produção estadual, rumo ao rio Amazonas. A aviação, especialmente através do CAN e de rotas alternativas percorridas por aviões pequenos subsidiados pelo governo estadual, fará a integração entre as duas principais regiões econômicas, nos vales dos rios Purus e Juruá. A rodovia BR-364, idealizada pelos governos militares e que, na teoria, cortaria o Acre de leste a oeste, está sendo adequada à natureza. Seu trecho central, entre Sena Madureira e Feijó, onde o solo sedimentar não dá sustentação ao asfalto, deve ficar como está. O esforço do governo local é para concluir os extremos da rodovia, fazendo a ligação entre as cidades dos dois pólos regionais e criando duas fortes zonas econômicas de desenvolvimento sustentado, sem destruir o meio ambiente.

Isto É, 07/04/2004, Brasil, p. 34-37

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