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Não se brinca de reforma agrária

CB, Opinião, p. 9
Autor: PIMENTEL, Marcelo
08 de Dez de 2003

Não se brinca de reforma agrária

Marcelo Pimentel
Advogado, ex- ministro do Trabalho e ministro aposentado do TST

O presidente Lula anunciou pelo rádio o propósito de assentar no campo 400 mil famílias e regularizar 165 mil títulos ao longo do seu governo. Reduziu em muito sua ambiciosa meta, mas mostra que colocou os pés no chão, porque o assentamento de um milhão famílias, conforme promessa eleitoral, é evidentemente inatingível, como acho que o será também o agora anunciado. Porém, o presidente deu uma conotação absolutamente real ao que seja reforma agrária. Os afoitos eleitoreiros e irresponsáveis apontam que o Brasil tem milhões de alqueires de terras disponíveis, de modo que fazer reforma agrária é uma questão de penada, tinta sobre o papel e pronto: está tudo resolvido. Foi claro e consciente o presidente ao definir as dificuldades do que seja assentar uma família.

Em primeiro lugar, como disse, reforma agrária não é lançar o cidadão em cima de um terreno e pedir a Deus que o ajude. Se tal acontecesse, o assentado pegaria a estrada no dia seguinte, trocando a terra que recebeu por uma bicicleta e indo mendigar na esquina da próxima cidade. Busco a imagem em uma conversa com JK.

Certa tarde estávamos lá no rio Abacaxis, afluente do rio Madeira, onde a Petrobrás, pioneiramente, no meio da floresta densa, procurava infrutiferamente petróleo. Nas barcaças ancoradas na margem do Rio (ele se espraia por centenas de metros dentro da floresta), formávamos uma roda com os engenheiros para o bate-papo do fim de tarde.

Contava, então, o presidente sua experiência de incipiente tentativa de reforma agrária. Quando da abertura da Belém-Brasília, fora ele a uma das frentes de trabalho e, na oportunidade, fizera a distribuição de alguns terrenos. As prefeituras receberiam patrulhas agrícolas para atender aos assentados, que seriam beneficiados. Um dos beneficiados foi um matuto que chamou a atenção do presidente pela vivacidade, tanto que JK, que possuía uma memória computadorizada, guardou seu nome, etc.

Tempos depois voltou ao local. E perguntou pelo matuto. Resposta: trocou a terra por uma bicicleta e se tocou para a cidade. O presidente Lula afirmou a realidade: não adianta jogar a família lá sem apoio financeiro e técnico. É necessário dar-lhe morada, dinheiro de sustentação por um prazo, até que produza, criar escolas perto, estradas, utilização de água para uso doméstico e irrigação, providenciar luz e dar oportunidade de comercialização do que produzirem. Se não for adotado tal esquema, não há reforma agrária que se sustente. Só assim poderemos normalizar os assentamentos, redirigir os desempregados das cidades para sua origem (a maioria vem do campo) e reinstalá-los como cidadãos produtivos. É preciso retirar da marginalidade das cidades os que não têm formação profissional que os capacitem à disputa do mercado de trabalho industrial ou comercial. Haja dinheiro para isso!

A reforma agrária racional e sem violência se impõe e faz parte de qualquer plano de modernização do país mediante compromisso de retirar da desigualdade social milhões de patrícios. Contudo, a busca de um número exagerado nas pretensões de resolver o problema não pode sacrificar a racionalidade da solução.

É preferível que se faça pouco, mas de forma definitiva e plenamente, e não como veículo eleitoreiro, que só redundará em frustrações. Reforma agrária não é programa de igrejas, partidos ou quem quer que seja. É dever do Estado, embora altamente custosa e essencial para um país com nossas dimensões territoriais.

Não há desenvolvimento industrial ou comercial que possa absorver a massa hoje desempregada ou que venha para o mercado de trabalho anualmente. Por mais que cresça o Produto Interno Bruto, não há como locar toda essa mão-de-obra, porque tudo se faz com relativa lentidão. Basta ver que países com menos demanda que o nosso - França, Alemanha, Rússia, Europa Oriental - vivem o problema, sem solução. O Brasil pode recolocar ou colocar parte desse excedente ou mantendo o rural no campo ou dando oportunidade de readaptação aos que desejarem mudar de profissão.

Continuo sustentando o ponto de vista de que não se fará reforma agrária com desapropriações, que jamais chegam ao fim, além de onerosas. Os donos de terras não se conformam com os valores da desapropriação e os recursos judiciais decorrentes são intermináveis.

Penso que as áreas devolutas deveriam ser incorporadas às regiões desenvolvidas mediante estradas e infra-estrutura básica para o assentado, especialmente postos de saúde, mecanização e escolas, usando os recursos destinados à desapropriação. Seriam áreas aproveitadas mais celeremente, com a formação de núcleos rurais organizados e assistidos permanentemente pelo poder público. Com a morosidade da Justiça, não se conseguirá desapropriar nada e a reforma agrária ficará no papel, apesar dos propósitos e objetivos do presidente e, afinal, de todos nós.

O Brasil é o país dos paradoxos. Abrem-se faculdades aos montões para produzir doutores incapazes ou pouco capazes, que vão guardar seu canudo nas gavetas e vão para os classificados dos jornais. Mão-de-obra de nível médio, com boa formação, tipo mestres de ofício (aquela produzida pelo sistema S, da qual o presidente foi beneficiado, é um bom princípio), deve ser incrementada. A Europa e os Estados Unidos possuem operários altamente especializados. No Brasil, canudo (sem o recheio de conhecimento) não dá emprego, ainda mais àqueles oriundos das fornadas das universidades de fim de semana.

P.S. Agradeço ao eminente governador de Minas Gerais, dr. Aécio Neves, a minha honrosa designação como cidadão honorário de Minas Gerais, pelos serviços que prestei ao Estado. São poucos os que tiveram a oportunidade que eu tive, ao viver tantos anos lá, de adquirir a consciência do dever e do patriotismo característicos do seu povo, do qual agora, honrosamente, passo a fazer parte, honorificamente.

CB, 8/12/2003, Opinião, p. 9

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