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Na terra de Mad Maria

JT, Turismo, p. E1, E4-E5
10 de Fev de 2005

Na terra de Mad Maria
Desde que a minissérie 'Mad Maria' estreou, as atenções se voltaram para um Estado quase desconhecido: Rondônia. Nesta edição, mostramos um pouco de sua beleza.

Ana Carolina Sacoman

O turismo nunca foi uma força ou motivo de investimento em Rondônia, na Região Norte. Relegadas a segundo plano, as belezas do Estado - que faz parte da Amazônia - e sua história protagonizada por brasileiros e estrangeiros são desconhecidas por grande parte do País.
Ou, melhor, eram. Desde que a minissérie Mad Maria, sobre a epopéica construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, estreou na Rede Globo, a curiosidade aumentou. Todo mundo quer saber o que é que Rondônia tem. E, acredite, uma viagem para lá pode ser uma experiência, no mínimo, interessante.
Quem se dispõe a enfrentar o calor sem trégua de pelo menos 30 graus é recompensado com paisagens espetaculares, como o encontro das águas dos Rios Mamoré e Pacaás Novos. Vai conhecer gente simpática e disposta a jogar conversa fora. E entenderá por que dificilmente uma ferrovia no meio da selva daria certo. Vai lamentar o estado de abandono de suas construções históricas. E visitará comunidades indígenas que ainda vivem como há 50 anos. Vai querer voltar. Para ver tudo de novo.
Apesar de reunir boa parte do espólio da Madeira-Mamoré, a capital, Porto Velho, merece pouca atenção. Quer uma dica? Siga direto para o Museu da Ferrovia, às margens do Rio Madeira. Só para conferir o descaso com o maquinário da obra que desafiou a selva. Três marias-fumaça estão ao relento. Carcomidas pela ferrugem, sem utilidade.
Dentro do museu, ao lado de curiosidades como liteiras e postes de telégrafo originais, está a Coronel Church, ou baronesa, a maria-fumaça número 12, de história interessante. A máquina funcionou no primeiro período de construção da Madeira-Mamoré, entre 1878 e 1879, quando apenas sete quilômetros de trilhos foram concluídos. Voltou ao trabalho na inauguração, em 1912, para ser aposentada logo depois.
Desativada, serviu de forno de padaria, depósito de água e até de galinheiro! Hoje, é uma das poucas locomotivas conservadas, das mais de 20 que circularam pela estrada de ferro até 1972, quando a Madeira-Mamoré deixou de operar.
Visitado o museu, siga imediatamente para Guajará-Mirim, cidade na fronteira com a Bolívia, ponto final dos 366 quilômetros da Madeira-Mamoré - e a cerca de quatro horas de carro, numa estrada ruim e sem nenhum tipo de conservação, a partir de Porto Velho. O lugar de aproximadamente 35 mil habitantes também expõe sua história com pouco cuidado.
Na frente da antiga estação de trens - transformada num museu que exibe coisas como gatos siameses e porcos de três pernas, além de pouquíssimo material sobre a ferrovia - está outra locomotiva, de número 17. Pare, tire suas fotos e só. É hora de desvendar a vida às margens do Rio Mamoré - e de conhecer um hotel de selva surpreendente.

Uma viagem pelas belezas de Rondônia
Ir a uma comunidade indígena e conhecer um seringal são alguns dos passeios na região de Guajará-Mirim. Já na Bolívia, Guayaramerin é uma opção interessante.
Ana Carolina Sacoman
O forte calor e a chuva teimosa em Rondônia nessa época do ano - chamada de inverno amazônico - podem até desanimar. Mas nem pense em deixar de lado alguns passeios obrigatórios em Guajará-Mirim. O ideal, para quem tem pouco tempo, é fazer dois tours diários. Que tal, então, conhecer uma comunidade indígena, só para começar? Siga para a cajueiro, habitada pelos oro'nao, 26 ao todo, às margens do Rio Mamoré e acessível de barco.
Assim que os visitantes começam a desembarcar, crianças correm para montar a "lojinha". Sim, eles esperam que você compre algum artesanato. O que, digamos, não é difícil. São fruteiras, cestos, porta-trecos e bijuterias, confeccionados pelas mulheres com a palha do tucumã, um tipo de palmeira. Os preços começam em R$ 5 e dá para levar lembrancinha para todo mundo. Feitas as compras, passe um tempo com os índios.
A comunidade tomou contato com a civilização há 50 anos, aproximadamente. Pouca coisa mudou desde então. Eles se comunicam em txapakura, a língua original, mas entendem e falam português. "Demorei três anos para aprender a língua deles", conta a simpática Jucélia, 21 anos, da tribo parintintin, do Amazonas. Espécie de porta-voz da comunidade, ela se apaixonou por um oro'nao durante um curso em Porto Velho. E ficou por lá.
Na comunidade há também uma espécie de matriarca. Aos 54 anos, dona Alda tem 12 filhos e 36 netos. De pouca conversa, logo percebe-se que adora fotos. E gosta ainda mais de mostrar seu artesanato.
Com sorte, o turista pode acompanhar o processo de produção de farinha, cada vez mais raro ali. "Dá muito trabalho e o preço no mercado não compensa", diz Jucélia.
De volta ao rio, que tal conhecer um seringal? O anfitrião é Franciscleudo Ferreira da Silva, o Pilim, 30 anos e piloto oficial do barco do hotel Pakaas Palafitas Lodge. Nascido numa pequena comunidade ribeirinha, foi seringueiro dos 12 aos 15 anos. Hoje, maneja as ferramentas de extração do látex para as lentes dos turistas. E explica o processo de fabricação da borracha com sua simplicidade cativante. "No inverno, o pessoal quebra castanha e, no verão, vem para o seringal. Vida difícil essa. Não vale a pena, não." Os turistas ainda podem percorrer uma pequena trilha para observar plantas e animais no meio da mata.
Se tiver um tempinho - e curiosidade -, conheça Guayaramerin, a cidade-irmã de Guajará, na Bolívia. Área de livre comércio, tem lojas de todo tipo, com mercadorias das mais impensáveis. Se for o caso, aproveite para fazer suas comprinhas. Vá ao mercado central, onde há de tudo - de carne e leite sem refrigeração a grãos e verduras.
Depois, tome um mototáxi com bancos para três pessoas (a corrida custa R$ 2,50) e escolha um barzinho perto da praça central para sentar e observar a vida, que parece ter um ritmo muito mais lento por lá. Para fechar o dia, peça uma salteña, tipo de empanada de frango um tantinho apimentada, e uma Paceña gelada, a cerveja boliviana.
A viagem foi feita a convite da Ambiental Expedições, do Pakaas Palafitas Lodge e da Gol

Hospedado diante do encontro dos rios
Quem acredita que a primeira impressão é a que fica pode se preparar para um caso de amor duradouro com o Pakaas Palafitas Lodge, chiquérrimo hotel de selva a 15 minutos de Guajará-Mirim. Para isso, é essencial que o hóspede chegue de barco, pois à inesquecível imagem do encontro dos Rios Mamoré e Pacaás Novos - bem na frente do empreendimento - some a cuidadosa arquitetura do hotel, com piscina suspensa e charmosos bangalôs. Tudo sobre palafitas.
"Isso aqui é totalmente diferente de tudo que eu conheço", conta a estudante potiguar Joisa Priscila de Souza Caldas, 22 anos. "Fiquei encantada quando vi as cabanas. Parecem aquelas casinhas na árvore."
Deixar tudo de lado é das tarefas mais fáceis. Não há TV nos 28 apartamentos. Nem telefone. Mas os maníacos por celular podem sossegar. Os telefones móveis costumam ter sinal. Vá lá, quem é viciado em TV também não fica a ver navios. Há uma sala coletiva de TV. Uma bobagem. Afinal, quem pensa em grudar na telinha quando um mundo amazônico passa na sua janela? Só se estiver chovendo.
A decoração cuidadosa, com elementos locais, como palha de tucumã, e objetos feitos por índios de comunidades próximas também impressiona. Todos os quartos - enormes, diga-se - têm sacadas para o encontro dos rios ou para a floresta. Os que quiserem dar uma voltinha dentro do hotel mesmo têm à disposição 2,5 quilômetros de passarelas suspensas no meio da mata - dizem que se avista até onça!

Percorra a Madeira-Mamoré de trólei
É o único passeio hoje existente naquela que um dia foi conhecida como a Ferrovia do Diabo. O desengonçado veículo é movido a gasolina
Movido a gasolina, o veículo desengonçado leva quase uma hora e meia para percorrer míseros 28 quilômetros. Comporta até dez pessoas, em banquinhos de madeira. Desviar de galhos de árvores no caminho é inevitável. Parece pavoroso, mas é o criativo e divertido passeio de trólei pela Madeira-Mamoré. O único em toda a extensão da que um dia foi conhecida como a Ferrovia do Diabo.
Conhecer algumas lendas e histórias da estrada de ferro pode ser um fator decisivo no grau de emoção do passeio. É impossível deixar de pensar, por exemplo, no que se ouve em cada esquina de Guajará-Mirim: haveria um dormente para cada vida perdida na construção da ferrovia. Esse número, aliás, nunca será conhecido. A disparidade vai de 6 mil a 30 mil mortos.
Outra lenda diz que os trilhos custaram seu peso em ouro. Alguns moradores contam que os fantasmas dos operários costumam aparecer a qualquer hora do dia, sentados sobre os trilhos. E essas histórias passam pela cabeça a cada quilômetro. "Adorei, é uma coisa totalmente nova. Você lembra de tudo o que foi dito sobre a ferrovia e fica ainda mais impressionado. Se der, farei de novo", diz a funcionária pública de Cuiabá Cristina Catafesta, 27 anos.
Maquinista quer ir mais longe
O responsável pela aventura é o maquinista aposentado José Máximo Lemos, 47 anos, o Zé do Apito. Ele trabalhou na tentativa de reativação para turismo da ferrovia, nos anos 80, entre Porto Velho e Santo Antônio. Comandava a máquina 20, que ficou famosa após virar a número 5, em Mad Maria. Zé do Apito espera percorrer os 25 quilômetros de Guajará-Mirim ao Iata com seu estranho veículo. "Faz muito tempo que ninguém vai até lá. Está tudo abandonado." Por enquanto, o passeio sai do matadouro de Guajará-Mirim e segue 14 quilômetros adiante.

As lembranças de 35 anos na estrada de ferro
De 1934 e 1969, Dionísio Shockness atuou em várias funções na construção da Madeira-Mamoré. Hoje, guarda na memória histórias daquela epopéia
Dionísio Shockness jura não sentir saudades do tempo em que locomotivas cortavam a selva numa jornada que durava intermináveis horas entre as cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim. Mas guarda tudo o que diz respeito à Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Em álbuns de fotografia e, principalmente, na memória.
É incrível como esse descendente de barbadianos de 83 anos sabe datas, fatos e nomes com muita precisão. Não é para menos: ele acompanhou a maior parte do auge da estrada de ferro e também exerceu várias funções na Madeira-Mamoré Railway Company entre os anos de 1934 e 1969, quando se aposentou.
Voltou em 1980, para mostrar aos turistas que a velha ferrovia, já havia quase uma década totalmente abandonada, ainda tinha fôlego. Ficou até 1991, quando o projeto de reativação para o turismo do trecho entre Porto Velho e a Cachoeira do Teotônio acabou.
Hoje, seu Dionísio conta suas histórias - e também a de seu pai, Charles, que chegou ao Brasil em 1910 e participou dos dois últimos anos de construção da ferrovia - para quem se interessar. Mostra fotos preciosas da obra. Faz piada de imagens em que, entre mais de dez homens, ele é o único ainda vivo. Cita nomes e histórias de, por exemplo, gente como Percival Farquhar, o famoso empreiteiro que assumiu as obras da estrada de ferro em 1907.
"Guardo tudo isso porque não ficou história. Preservo para mostrar aos meus netos", afirma seu Dionísio. E tem saudade do tempo em que passou de aprendiz a foguista, maquinista e fiscal de tração? "Nem um pouco", diz. "Tudo se acaba. E a ferrovia foi mal administrada quando passou para o governo, em 1931", acredita o historiador, que mantém intacto também o senso crítico.

Para conhecer a lenda do mapinguary
A lenda do mapinguary é uma das mais famosas de Rondônia. Os moradores contam que um bicho gigante, de mais de cinco metros de altura e com uma boca no lugar da barriga, ataca sem piedade quem se perde na selva. O tal bicho é atraído pelos gritos de socorro da vítima e costuma devorá-la inteira. A lenda é comum em outros Estados das Regiões Norte e Centro-Oeste do País. Alguns pesquisadores acham que a história pode ser mais do que uma simples lenda. Eles acreditam que o mapinguary é uma preguiça ou um macaco pré-histórico. Alguns sites dos Estados Unidos comparam o mapinguary ao Pé Grande ou ao Abominável Homem das Neves. E detalham o que teria sido um ataque do monstro, em 1937, em Barra do Garças, em Mato Grosso: ele teria devorado vários rebanhos em fazendas distantes centenas de quilômetros, numa única noite. Na dúvida, é melhor nem tentar conferir se o bicho existe mesmo...

JT, 10/02/2005, Turismo, p. E1, E4-E5

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