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Na natureza não existe o milagre das águas

O Globo, Amanhã, p. 29
Autor: ABRANCHES, Sergio
19 de Mar de 2013

Na natureza não existe o milagre das águas
Países abundantes no recurso agem como se ele fosse inesgotável. É o caso do Brasil, onde apenas 6% das águas estão em ótimas condições

SERGIO ABRANCHES/ COLUNISTA CONVIDADO
Editor do site EcoPolític

O mundo vive um verdadeiro paradoxo em relação à água. Os países que perderam suas águas por poluição, mau uso e, agora, mudança climática, só se dão conta de seu valor, quando reavê-las é praticamente impossível ou caríssimo. As nações ricas em água fazem de tudo para perdê-la, agindo como se ela fosse inesgotável ou facilmente renovável.
A China é o paradigma do primeiro caso. O Brasil, do segundo. Na China, 80% dos rios estão praticamente mortos, sem vida alguma, por causa da poluição. O governo estima que dois terços das cidades chinesas sofrem escassez de água com qualidade mínima para consumo humano. Perto de 300 milhões de habitantes da área rural não têm acesso a água potável. Dois terços dos lagos do país estão gravemente poluídos; 15% deles já desapareceram.
No Brasil, a maioria da população pensa que temos água em abundância e que, por isso, não precisamos nos preocupar, porque jamais chegaremos a uma situação de escassez. É por causa disso que não olhamos para o avanço da destruição de nossas águas, do mau uso e do desperdício. Poucos sabem e menos ainda dão importância ao fato de que o Rio dos Sinos, no Rio Grande do Sul, responsável pelo abastecimento de 32 municípios e 1,5 milhão de pessoas, está praticamente morto, por causa da poluição por efluentes químicos, agravada pela poluição por lixo doméstico.
Ou que, apesar de todos os investimentos e da campanha diuturna e firme do projeto Manuelzão, o Rio das Velhas, em Minas Gerais, continua semimorto. Em Barra do Guaicuí, Várzea da Palma, Norte de Minas Gerais, onde encontra o São Francisco, biólogos detectaram grande volume de microrganismos tóxicos nos dois rios. O "Velho Chico", como é carinhosamente chamado o São Francisco, maltratado e crivado de barragens, tem dificuldade para chegar ao mar. Corre o risco de se tornar um rio intermitente. Ameaçado pelos esgotos nele lançados, pelo assoreamento e pela descuidada transposição de suas águas, pode morrer. Esse perigo também ameaça o Rio Doce, estratégico para Minas Gerais e Espírito Santo. Outros rios que podem morrer são o Tietê, o Tamanduateí e o Pinheiros, em São Paulo; o Iguaçu, no Paraná; o Ipojuca e o Capiberibe, em Pernambuco; e o Paraíba do Sul, no Rio de Janeiro. A lista não acaba nestes.
O principal uso da água no Brasil é para irrigação.
A agricultura é importante fator de poluição dos mananciais cuja água consome, por causa do uso excessivo de fertilizantes químicos e defensivos agrícolas, que mais agridem que defendem. Ou seja, a agricultura usa abundantemente esse recurso coletivo valioso, que permite a produção de outro recurso, econômico, de alto valor que é o alimento. Mas, ao fazer isso, causa graves danos ao estoque de recursos hídricos que é de todos, quando deveria contribuir para manter sua integridade e valor.
Outra fonte de degradação e desvalorização da água como bem coletivo é o déficit de saneamento básico: 54% da população urbana do país não estão ligados à rede de esgotos. Os resíduos domésticos, os efluentes industriais e os agrícolas são os principais inimigos de nossos rios, lagos e lagoas.
A Agência Nacional de Águas (ANA), em seu mais recente Informe de Conjuntura dos recursos hídricos do Brasil, mostra o uso intensivo dos mananciais para abastecimento urbano. Quase metade das áreas urbanas utilizam mananciais superficiais como fonte exclusiva de abastecimento. Eles são os mais vulneráveis à falta de saneamento e à poluição agrícola. A carga orgânica (lixo) lançada nos rios é maior nas bacias onde há maior concentração urbana. Em outras palavras, queremos as águas dos rios limpas para podermos consumi-las sem riscos, mas despejamos nelas todo o tipo de resíduos. Resultado: apenas 6% de nossas águas estão em ótimas condições, de acordo com a Agência Nacional de Águas (ANA), e 19% recebem classificações de regular a péssima. Na natureza não tem milagre. O que jogamos nela, retorna para nós. O que tiramos sem permitir reposição adequada se esgota. Se a intoxicamos, ela se torna tóxica para nós. Se queremos água limpa, temos que nos tornar uma sociedade limpa.

O Globo, 19/03/2013, Amanhã, p. 29

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