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Na aldeia Bakaval, Kawe é mais que um símbolo do Pan

O Globo, Esportes, p. 49-50
24 de Jun de 2007

Na aldeia Bakaval, Kawe é mais que um símbolo do Pan
Tocha vai iluminar Jogos Indígenas na tribo liderada por uma mulher

Pedro Motta Gueiros
Enviado especial

Mãe de quatro filhos e de outros tantos agregados, que vivem sob seus cuidados, Miriam Kazaizokairo é professora e cacique da aldeia Bakaval, a 50km de Campo Novo do Parecis, a 400km de Cuiabá, em Mato Grosso. A longa estrada de terra que leva até lá é vermelha como a pele de seu povo e a carne viva exposta pelo sofrimento. Em vez do lamento e dos pedidos de ajuda, Miriam pegou o caminho no sentindo contrário. Assumiu a responsabilidade pela sobrevivência da própria cultura e inverteu conceitos. Na sua tribo, é a mulher quem manda e o homem branco obedece a suas ordens como empregado do posto de saúde, pago pelos próprios índios.
Com a zamata, uma espécie de tipóia, atravessada no peito, ela carrega o neto Kawe, de oito meses, sempre perto do coração. O mascote da aldeia ganhou o mesmo nome do solzinho que simboliza os Jogos Pan-Americanos, mas com grafia e razões diferentes. Enquanto o Cauê publicitário já brilhava em campanhas, o bebê passou seu primeiro mês de vida anônimo até que seu pai decidiu seguir a linha sonora dos sobrinhos Kayke e Kayro.
Apesar de a tia Elizabete ter tecido, em pouco mais de uma hora, uma roupa tão típica quanto luminosa, a festa do esporte não ilude a cacique.
Na quarta-feira, junto com a chegada da tocha do Pan do Rio, o fogo vai acender a pira dos Jogos Indígenas do Mato Grosso.
- A gente não dá muita importância para esse negócio de Pan. Se não é nossa luta, ninguém mais vai nos ajudar - afirmou a cacique.
Língua nativa nas aulas da tribo
Miriam começou o curso do magistério em 1992. Hoje, é formada em matemática pela Universidade Estadual de Mato Grosso e funcionária concursada do município que foi apontado como uma das 13 cidades com melhores índices no país, com base no Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem. Seu local de trabalho é a própria aldeia, onde vivem 56 pessoas. Na parede da escola, ilustrações de plantas e animais ajudam a fazer a correspondência entre as palavras em português e a língua Arauáki, dos Parecis. Na contramão do êxodo que leva seus descendentes para as cidades, ela reforça a lição do orgulho de ser índio e viver como tal apesar dos encantos do mundo do homem branco, o imuti.
Não adianta querer se camuflar, pode até se pintar de imuti, do que quiser, que a gente vai continuar sendo índio. Isso não muda - disse, a despeito de seus cabelos levemente cacheados e do corpo sempre coberto. - Não adianta, nosso sangue, nosso rosto não vai se modificar.
As tradições também se conservam junto com os espíritos ancestrais da aldeia. No momento, Miriam está refazendo sua casa, que não chama de oca, como pensam os imuti. A cada quatro anos, a estrutura de madeira e palha precisa ser refeita, mas sempre sob o mesmo chão, sob o qual a família vive eternamente unida por laços afetivos e religiosos.
- Minha mãe está enterrada aqui, junto com dois netos. Na casa antiga... - disse, apontando para outra habitação ainda em pé na aldeia.
- ...ficaram meus avós. Naquela outra, estão meus irmãos e meu tio. Minha mãe nunca vai passar, ela ainda vive junto da gente.
A naturalidade para falar da morte vem da crença de que é apenas uma passagem para outra vida em que "a gente vira criança de novo mas em outro mundo". Aos 97 anos, Ana Zoloimava ainda está na dimensão atual dos Parecis. Com a unha pintada de rosa pelas crianças, ainda tem alegria e força para pegar a enxada e limpar o terreno cheio de mato.
- Ninguém me ensinou a trabalhar. Tudo que faço, aprendi vendo. Também não preciso ensinar nada para ninguém - disse na sua língua, com tradução simultânea da professora.
Crianças sempre sob proteção
Na escola ao lado, é preciso reforçar certos conceitos. As filhas de Miriam já não dominam o idioma como a mãe.
Sabem tecer, processar a mandioca, mas também já conhecem os ídolos da TV e ficam lendo revista de fofoca deitadas na rede. Os homens ainda saem para caçar e pescar pela manhã. Com a aliança de imuti no dedo que o identifica como marido da cacique, Pedro Zonizakae já é quase um guerreiro aposentado.

- Fui caçar de moto. Quando vi uma cobra cascavel, eu me dei conta de que tinha esquecido a munição e voltei - disse, sentando à sombra depois de almoçar carne de anta frita que tinha no freezer.

A pólvora que dizimou os índios na chegada dos colonizadores hoje já está incorporada ao estilo de vida na aldeia Bakaval.
Os bichos estão muito ariscos. Se a gente for caçar com flecha, vai todo mundo morrer de fome - comentou a cacique.

As araras e outras aves que dão as penas para a confecção de saias e cocares também são abatidas a bala. Na aldeia, os tiros têm direção certa, muitas vezes indesejável. Há cerca de dois anos, um índio matou o filho após briga explosiva com cachaça e pólvora. Como as reservas estão sob jurisdição federal, a polícia local não pôde intervir e os próprios índios protegeram o assassino da prisão. O trabalho de Miriam é preventivo. Diferentemente das favelas urbanas, em que muitos pais não assumem os filhos e as mães saem para trabalhar, em Bakaval ninguém fica abandonado. Dentre as crianças, cinco não têm pai, mas a cacique já tem nome e autoridade masculina para impor os limites. E carinho de mãe para manter seu povo preso ao seio da tradição. Em sua zamata, há lugar para todos.

Kawe é apenas um símbolo dessa acolhida.

Contagem regressiva é feita em faixa de lona
Índios vivem do que recebem em pedágio

Enquanto o relógio luminoso de Copacabana faz a contagem regressiva para o início do Pan, em Campo Novo do Parecis uma faixa de lona indica quantos dias faltam para a chegada da tocha. Pelas ruas, a cidade comenta excitada sobre a possibilidade de a apresentadora Ana Maria Braga fazer seu programa ao vivo da aldeia. As telecomunicações sempre estiveram ligadas à sobrevivência dos Parecis. No início do século XX, a instalação de telégrafos na região serviu de abrigo aos índios que fugiam dos seringais. Responsável pela missão, o Marechal Rondon imaginava que a linha criaria empregos e povoados onde haveria, enfim, a integração nacional.

Vinte anos depois, com surgimento do telégrafo sem fio, já não era mais preciso usar o índio para abrir caminhos e carregar equipamentos pela mata. Voltaram a ser lembrados pelas leis de demarcação e hoje são novamente donos da terra. Dos quase 11 mil quilômetros quadrados de Campo Novo, 32% são territórios indígenas, embora a divisão populacional não tenha a mesma proporção. Dos cerca de 25 mil habitantes do município emancipado há 18 anos, há 700 índios. A população Parecis, de 1,7 mil, espalha-se por outras cidades e distritos, em 45 aldeias. Vivem do pedágio na entrada das reservas. Por cada passagem, um carro de passeio paga R$ 10, uma van, R$ 20, e um caminhão, R$ 30.

- Pela lei é proibido, mas não há outro jeito de a gente sobreviver - diz a cacique Miriam, que administra a receita de uma associação de 20 aldeias e 690 pessoas, com receita mensal de R$ 60 mil. (P.M.G. )

Pan integra esporte e natureza
Chegada da tocha vai celebrar o espírito dos Jogos entre indígenas do Mato Grosso

Pedro Motta Gueiros
Enviado especial

Quando compôs "Um Índio", Caetano Veloso deu o tom do que estava por vir em cores berrantes como urucum. Em 1976, a ecologia ainda era um tema verde, à espera do amadurecimento que hoje se anuncia justo quando o planeta já passou do ponto. Na canção, o personagem desceria dos céus depois de exterminada sua última nação, o espírito dos pássaros e as fontes de água límpida. No mesmo ponto equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, o índio virá a tempo de mostrar o que restou. Enquanto Cuiabá e Chapada dos Guimarães confrontam coordenadas geográficas para saber onde está o centro das Américas, o ponto místico vai se deslocar para a aldeia Quatro Cachoeiras, também no Mato Grosso. Ali, a integração continental em torno da natureza será celebrada com água, terra e ar quase puros, além da tocha pan-americana, que passará por lá na quarta-feira.

Em vez de surgir de uma estrela colorida e brilhante, o cacique da etnia Parecis, Narciso Kazoizokae, descerá de carro até a beira do Rio Sacre para receber o fogo, as autoridades e os compromissos de lealdade tão sazonais quanto o Pan e as campanhas de marketing. Com um sistema de gás, a chama se mantém acesa desde o início da peregrinação no México. O calor da atenção e do afeto é passageiro como a tocha. Na última quartafeira, havia um trator no local e dois carpinteiros para erguer o palanque.

Para construir suas casas, chamadas hati, na língua Aruáki, os índios levam pelo menos um mês para montar a estrutura em madeira e cobri-la com folhas de palmeira.

- Sei que o branco vai ganhar muito nas costas do índio. Para a gente, vai ser sempre tudo do jeito que era. Deviam nos favorecer, fazer parcerias - disse o cacique, numa linguagem já contaminada, como a natureza da região.

Apesar da aparência paradisíaca, com águas cristalinas em tons verde e azul, os Rios Sacre e Verde recebem dejetos de produtos químicos dos latifúndios de soja e cana.

Com o desmatamento promovido pelo agronegócio, os rebanhos chegam até as margens dos rios. Alguns índios também vão até lá para fazer necessidades. Um agente de saúde do projeto que atende a 11 etnias e a quase 10 mil pessoas diz que os níveis de coliformes fecais são alarmantes e a causa para a alta incidência de verminoses e outras doenças. Hoje, existem cerca de 25 mil índios de 42 etnias no Mato Grosso. Os Parecis são 1,7 mil divididos em 45 aldeias.

Na tribo de Narciso, onde vivem cinco famílias e 30 pessoas, o espírito dos Jogos chegou aos povos da floresta. Assim como no Rio, tudo vai ficar pronto na última hora. Enquanto o Pan é erguido como bandeira de paz e prosperidade para uma cidade em guerra, a passagem da tocha por Campo Novo serve para fazer o índio voltar a ter orgulho de viver na aldeia. Estudo do IBGE de 2000 conclui que mais da metade dos 734 mil índios brasileiros vive em áreas urbanas, expostos ao subemprego, à violência das favelas e às drogas, como grande parte de seus compatriotas.

- Até os anos 70, a gente não sabia o que era diabete, colesterol e hipertensão. Agora, está tudo contaminado - disse outro líder Parecis, Carlito Okewazokie, com óculos escuros e a chave do carro girando entre os dedos.

Apesar da confusão de valores, as ciências sociais ensinam que não se pode analisar uma cultura "estrangeira" pela ótica do "colonizador". A ironia e a surpresa diante da imagem do cacique moderno sugerem que o índio deveria viver para sempre nu no meio do mato, embora tenha sido arrancado de lá e catequizado pelos valores que naturalmente foi obrigado a adotar.

- Gosto da vida de branco, mas ela só é boa para quem tem dinheiro. Preservar a natureza é mais bonito - diz o cacique das Quatro Cacheiras.

A começar pelos nomes, como Lucineide, Elizabete e até um Blairo, homônimo do atual governador, não há mais pureza nas aldeias. Vaidoso como sugere o mito grego, Narciso é conhecido na cidade como o índio que gosta de se ver em fotografias.

No site oficial de Campo Novo, lá está ele vestido com a mesma indumentária com que espera ser visto pelo mundo todo na quarta-feira:
- Gosto de ficar famoso, de ter a imagem divulgada.

Calça jeans e novelas na aldeia
A realidade é bem diferente da fantasia. Quem chega na aldeia sem avisar, encontra um Narciso de calça jeans, mocassim coberto de poeira, cinto com fivela dourada e camisa de botão, usada como uniforme por uma empresa de fechaduras, cuja marca está estampada no bolso. A mulher Inês Nizokeiro, com quem se casou na igreja, está dentro da hati. Gosta de ver TV e novelas ali. Atendendo a pedidos, em instantes, a família troca o figurino e aparece a caráter com cocares, penas e flechas. A mistura faz parte da vida de Narciso desde seu nascimento, perdido no tempo e recuperado pelas tradições católicas.

Meu pai morreu e fui para o internato. Pela certidão de batismo, tenho 72 anos, mas sou do tempo em que índio não sabia idade.
Aos 19 anos, fugiu do internato.

Tirou latex para seringueiros, trabalhou com empregado na cidade até voltar em 1970 para as margens do Rio Verde, onde nasceu. Na beira d'água, os poderes do cacique se mostram mais fortes. Em meio a uma nuvem de insetos, um dos visitantes foi picado. Cego pelo pânico, o branco tentava tirar a abelha de dentro da manga da camisa enquanto Narciso apenas apontava o chão para mostrar que o animal já tinha caído, inerte.

Depois, usou da unha como pinça para tirar-lhe o ferrão e a dor. O alívio vem da mão do cacique que vai pegar a tocha. Em vez da exibição do exótico, o índio surpreenderá a todos por ter ficado oculto enquanto o planeta agonizava. Reverenciá-lo agora, como cantou Caetano, terá sido o óbvio

O Globo, 24/06/2007, Esportes, p. 49-50

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