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Mutação cabocla: Pedro Martinelli da sequência aos seus ensaios sobre a Amazônia, desta vez mostrando a transformação da mulher na região

Isto É, p. 118-119
10 de Dez de 2003

Mutação cabocla
Pedro Martinelli dá sequência aos seus ensaios sobre a Amazônia, desta vez mostrando a transformação da mulher na região

Ivan Claudio

Por mais de três décadas o fotógrafo paulistano Pedro Martinelli vem documentando a Amazônia. Seus ensaios sobre o "inferno verde" começaram com a viagem realizada na companhia dos sertanistas Cláudio e Orlando Villas Bôas para fazer contato com os índios gigantes panarás. Desde então, ele retornou várias vezes ao Norte do País, algumas delas a bordo do barco particular Taba, com o qual costuma se embrenhar por igapós e igarapés. Nas jornadas, pegou malária dez vezes até ficar resistente a esta e a outras moléstias tropicais. "São 30 anos de andanças e não conheço nem um terço da região, façanha impossível numa vida", afirma Martinelli, que acaba de lançar o livro Mulheres da Amazônia (Editora Jaraqui, 176 págs., R$ 80), vendido exclusivamente nas lojas Fnac, terceiro momento do painel ambicioso de uma fatia do Brasil conhecida por clichês de exotismo e denúncias em variados segmentos. "Há muito tempo eu presto atenção nessa mulher. Acompanhei as transformações da cabocla que sai da cozinha e vai trabalhar na marcenaria e da índia que abandona a aldeia e vai para a cidade. Quem defende a Amazônia são os caboclos da beira dos rios, e nesse quadro a mulher tem papel fundamental", conta o fotógrafo.
Para flagrar o cotidiano de suas personagens anônimas, ele escolheu 260 fotos feitas entre 1994 e 2002. Sempre acompanhadas de legendas explicativas, as imagens ganharam uma edição bastante didática. Da índia em sua labuta com o cultivo da mandioca à mulher que empunha o ferro de solda na construção civil, das crianças na igreja evangélica à senhora enfeitada para a marujada - festa folclórica exclusivamente feminina -, o que se vê é um registro de uma realidade muito particular. "Não fui fotografar prostitutas num lugar onde a sensualidade feminina literalmente aflora. Quis mostrar como é criar um filho, construir uma casa, revelar o cotidiano dessa gente de segunda classe, esquecida por nós." Formado no fotojornalismo e "anti-artista" por opção, Martinelli tenta se desplumar dos excessos estéticos, que muitas vezes desviam o foco do assunto principal. Não raro, Martinelli alcança aquele momento em que o olhar ético encontra a forma justa, não se colocando nem abaixo nem acima do tema. Equilíbrio presente na imagem da índia kuripaco, vista de costas na proa da canoa que a traz de volta do culto evangélico, tendo à frente um céu espelhado nas águas como um abismo de fé. Ou na lenha cuidadosamente arrumada sobre a barca de ripas, atividade realizada pelas mulheres no fim do dia. "É possível sentir aí o cheiro da fêmea e o toque feminino no carinho com que se tece esse feixinho de lenha."
A opção pelo preto-e-branco da maioria das fotos se deu, segundo o fotógrafo, por questões técnicas. "A luz da Amazônia é muito dura. A quantidade é maravilhosa, mas a qualidade nem tanto. Por estar perto do Equador, a temperatura da cor é muito alta", explica. "Com o preto-e-branco consigo fotografar o dia inteiro. Além disso, não gosto de água marrom, gosto dela clara ou transparente." Tal expediente dá origem a imagens que ganham estatura solene. Caso do pequeno ensaio sobre o cotidiano de Claudia, índia baniwa, 26 anos, mãe de quatro filhos. Encurvada sob o peso de uma cesta de mandiocas e ladeada pela plantação que brancamente se irradia, a mulher parece saída de um filme de Akira Kurosawa, sensação confirmada mais adiante, quando ela reaparece numa barca que corta a água negra salpicada de reflexos prata. "A índia é uma escrava eterna do processo da mandioca", diz Martinelli, que acredita na fotografia como arma poderosíssima para melhorar a qualidade da informação sobre a Amazônia e suas mulheres guerreiras.

Isto É, 10/12/2003, p. 118-119

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