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Mulheres quilombolas na Amazônia constroem a ancestralidade e o futuro

FSP - https://www1.folha.uol.com.br/colunas/desigualdades/2023/07
Autor: PURIFICAÇÃO, Nathalia
27 de Jul de 2023

Mulheres quilombolas na Amazônia constroem a ancestralidade e o futuro
Elas representam a melhor síntese de expressão da combinação positiva entre o contemporâneo e o ancestral

Nathalia Purificação quilombola da Bahia, jornalista e comunicóloga, é coordenadora do coletivo de comunicação da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas)

27.jul.2023 às 20h18

Andando pelo Brasil enquanto ativista do movimento nacional quilombola Conaq, tive a oportunidade de conhecer o território quilombola do Andirá, localizado no nordeste do estado do Amazonas e que reúne seis quilombos. Ali encontrei não somente diversidade cultural e culinária, mas, principalmente, diversidade nas expressões de direitos humanos quilombolas.

Nos quilombos, a relação entre ancestralidade e contemporaneidade articula-se de forma densa. Mas os valores e práticas modernas trazem exigências e formalidades que não reconhecem ou até mesmo ignoram o poder da ancestralidade. Antes mesmo da Constituição de 1988, nós habitamos e criamos o espaço que essa norma veio a reconhecer como nossa terra ancestral, à qual temos direito. Historicamente, contudo, foi somente esse escrito constitucional que nos permitiu reivindicar a legitimidade do que é nosso: os modos de organização e vidas quilombolas.

Identifico pelo menos quatro dimensões dessa tensão entre contemporaneidade e ancestralidade: a discrepância entre, de um lado, a existência de leis que nos dão direitos, e, de outro, a falta de reconhecimento do que sempre foi nosso, e a total falência na garantia do nosso acesso a direitos básicos; uma rotina de discriminação que compromete o nosso próprio direito à vida; tentativas e falhas do Estado em criar soluções para nos assegurar um nível mínimo de melhoria de vida; e ainda a invisibilidade das soluções que os quilombos vêm criando ancestralmente e que têm garantido a sobrevivência do nosso povo.

Essas dimensões são vividas como problemas com maior intensidade pelas mulheres quilombolas. A reciprocidade e o reconhecimento igual da liderança de homens e mulheres é um desafio dentro dos movimentos sociais mistos. Tenho observado que, em alguns quilombos, persiste uma masculinização que influencia o entendimento sobre o que é ser uma liderança. Nesta perspectiva, a centralidade e poder de influência das mulheres nas comunidades acabam sendo ofuscados e vistos apenas como colaborações importantes para a base do movimento, não passando de obrigações que fazem parte das tarefas de cuidado das mulheres. Funções que acabam excluídas e não se enquadram nos conceitos de intelectualidade orgânica e desenvolvimento de lideranças.

E essa situação se repete numa população particularmente negligenciada: a população negra de mulheres da Amazônia. No estado do Amazonas, apesar de as mulheres ocuparem posições significativas de liderança nos quilombos, vê-se ainda a dificuldade de reconhecimento do seu protagonismo. A liderança das mulheres é historicamente determinante para o próprio reconhecimento do quilombo, mas sua valorização é demorada e exige uma atuação árdua e permanente. Esse é o caso da atuação das mulheres do Território do Andirá, no qual a identidade quilombola ganha força pelo trabalho das mulheres.

É preciso ressaltar que as mulheres no Amazonas enfrentam ainda o desafio adicional imposto por sua total marginalização em relação aos centros de poder e de tomada de decisões do país.

Ser mulher negra, quilombola e rural no Amazonas é ser a voz de um passado que foi marcado por opressões, esquecimentos, omissões, mas também de um futuro que para existir depende da sua própria luta. É carregar consigo uma história de resistência, força e resiliência: as mulheres negras amazônicas carregam a herança ancestral de um povo historicamente esquecido, negligenciado, que insiste em afirmar a sua existência.

As mulheres quilombolas amazonenses sabem que não lutam sozinhas, tampouco apenas para o seu bem-estar individual. Elas lutam como parte do território do qual fazem parte e que defendem. Trazem e sustentam uma luta pela terra que afirma a memória e a história singular do seu povo. Vivem em espaços historicamente conquistados pelos seus antepassados, onde a cultura preta se mantém viva, respeitando saberes ancestrais, estabelecendo uma relação harmoniosa com o meio ambiente e criando um tipo de desenvolvimento que melhora as condições de vida de toda uma comunidade.

Elas representam a melhor síntese de expressão da combinação positiva entre o contemporâneo e o ancestral.

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