VOLTAR

Mudanças climáticas já colocam em risco produção de alimentos

O Globo, Sociedade, p. 24
09 de Ago de 2019

Mudanças climáticas já colocam em risco produção de alimentos
Mudanças climáticas colocam em risco produção de alimentos, alerta relatório inédito da ONU
Autor do documento do IPCC, especialista diz que ele 'cai como uma luva' para atual discussão das taxas de devastação da Amazônia brasileira

Flavia Martin e Johanns Eller*

RIO - Como usar a terra de uma maneira mais eficiente e sustentável e, ao mesmo tempo, produzir biocombustíveis e comida para a população do nosso planeta, que não para de crescer e deve chegar a 10 bilhões até 2050 ?

- Ou a gente descobre como fazer isso de forma sustentável ou esquece, estamos todos fritos, e já era - resume Paulo Eduardo Artaxo Netto, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo.

Artaxo é um dos 108 pesquisadores de 52 países que assinam o novo relatório que será lançado nesta quinta-feira pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), órgão da ONU para o assunto, em Genebra, na Suíça.

No extenso documento, são listadas pesquisas recentes sobre o uso da terra e suas causas e efeitos nas alterações do clima global. Pontos observados são a desertificação, a degradação do solo e seu uso sustentável, a segurança alimentar e as emissões de gases de efeito estufa em ecossistemas terrestres.

- Enquanto os outros relatórios do IPCC tratavam apenas da redução da emissão causada pelos combustíveis fósseis, este é o primeiro que coloca a questão do uso da terra na agenda da política científica de mudanças climáticas globais - explica o físico, para quem o documento deixa "claro que temos que frear o desmatamento das florestas tropicais, descobrir maneiras de produzir alimentos e carne com menor emissão de gases de efeito estufa e menor impacto ambiental, além de produzir biocombustíveis de maneira eficiente".

Na opinião de Artaxo, o relatório "caiu como uma luva" para o Brasil neste momento em que se discute o aumento nas taxas de desmatamento da Amazônia:

- O Brasil pode olhar este relatório do IPCC como uma oportunidade para o agronegócio, pra produção de biocombustíveis e recomposição florestal. E sobretudo (é uma oportunidade) para mudar a atual visão muito negativa que o Brasil está tendo internacionalmente como um total destruidor de floresta, que basta anunciar a taxa de desmatamento para causar uma crise institucional enorme. Não é um bom negócio para o Brasil, por razões óbvias.

Nesse sentido, para Suzana Kahn Ribeiro, vice-diretora da Coppe/UFRJ e membro do IPCC, o Brasil pode trilhar uma trajetória alternativa e eventualmente se tornar líder.

- Penso num modelo de desenvolvimento tropical em que a gente use bastante a nossa biodiversidade, mas sob a perspectiva das ciências biológicas, que têm um valor agregado muito alto, e não na lógica do extrativismo, que é a que vigora atualmente. Seria uma espécie de "eco-industrialização" - detalha a pesquisadora, para quem a meta de aumentar a temperatura global em apenas 1,5oC até o fim do século é pouco factível: - Temos que atuar na questão da adaptação. E aí, novamente, um país do tamanho e recursos do Brasil tem papel fundamental nessa estratégia.

Desmatamento pode ter efeito cascata
Segundo o relatório, hoje o desmatamento corresponde a cerca de 10% das emissões de gás carbono no ar. O Brasil, diz o documento, perdeu 55,3 milhões de hectares de 1990 até 2010. E essa situação pode transformar a região amazônica, por exemplo, em uma potencial emissora de gás carbono, em vez de ser o tradicional ponto de absorção de CO2.

"O desmatamento pode ter efeitos cascata e maiores que os previstos. Por exemplo, se mais de 40% da floresta amazônica for desmatada, corremos o risco de passar de pontos irreversíveis que comprometeriam toda a sua extensão", cita um trecho do relatório, que conclui que "projeções sugerem que o risco de ultrapassar esses limiares aumentam com as temperturas elevadas".

Para a oceanógrafa e pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Regina Rodrigues, também autora do documento, o relatório deixa evidente que o custo econômico de não agir contra as mudanças climáticas será muito mais alto do que os sacrifícios implicados na implementação de novas políticas.

- Quanto mais demorada for essa ação, mais caro ficará para o mundo. O custo social, que também tem o lado econômico associado, é muito alto - enfatiza a pesquisadora.

Segurança alimentar é preocupação
Alimentar uma população mundial que vai chegar a 10 bilhões de pessoas na metade do século XXI será uma missão cada vez mais desafiadora diante de um cenário de pressões sobre a terra e o clima, conclui também o estudo. Só na China, por exemplo, os campos de arroz precisarão crescer em 20% para dar de comer à população do país até 2030.

E, embora os países menos desenvolvidos, concentrados nos trópicos, na África e na Ásia, estejam cada vez mais próximos de enfrentar a diminuição na oferta de alimentos e o aumento da fome em decorrência do aumento das temperaturas, as nações mais desenvolvidas não ficarão livres de impactos negativos.

- Muitas vezes as nações mais ricas não dão muita atenção para o problema. Não passarão fome, mas os preços dos alimentos subirão, o que deve resultar em uma piora considerável na qualidade nutricional da alimentação. Consequentemente, problemas como diabetes e obesidade se tornarão recorrentes - pontua Regina, chamando a atenção para o efeito em cadeia desses desdobramentos na saúde e nos índices econômicos.

O consumo de carne é outro ponto abordado, ainda que lateralmente. Segundo Paulo Artaxo, as duas bilhões de pessoas de países africanos e do Sudoeste da Ásia que terão um incremento em suas rendas nas próximas décadas "vão começar a comer carne como aconteceu com os chineses".

- O relatório não faz recomendação explícita para a redução de consumo, mas como fazemos com o clima do planeta com essa demanda enorme que vai ter com a produção de carne? Ou a gente muda a nossa maneira de produzir carne, com redução na emissão de gases de efeito estufa, ou a gente está perdido. O recado é muito claro.

Conforme informou o UOL, durante as negociações em Genebra, o Brasil pressionou e conseguiu modificar do texto final do relatório, que não incluirá críticas contundentes à utilização de biocombustíveis como o etanol. Fruto de investimentos pesados por parte do governo federal há décadas, esses combustíveis também seriam atrelados diretamente à degradação ambiental causada pela sua produção em larga escala.

Regina Rodrigues afirma que a pressão brasileira se explica pelo caráter universal do documento, que não permite a especificação de países, o que acabaria por generalizar problemas envolvendo esses combustíveis.

- O conteúdo era muito negativo, porque o biocombustível brasileiro é mais eficiente. O problema é que a análise do IPCC é geral. O biocombustível a base de milho nos Estados Unidos gasta mais energia na produção do que a revertida. Mas, ao generalizar, seria muito ruim para o Brasil, que investiu muito em tecnologia para produzir um biocombustível eficiente - pondera.

Os ministérios de Minas e Energia, da Ciência e Tecnologia, do Meio Ambiente, da Agricultura e das Relações Exteriores chegaram a se reunir com cientistas brasileiros envolvidos no relatório para solicitar ajuda no planejamento da defesa dos biocombustíveis.
*Estagiário sob orientação de Flavia Martin

O Globo, 09/08/2019, Sociedade, p. 24

https://oglobo.globo.com/sociedade/mudancas-climaticas-colocam-em-risco…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.