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MST movimentou R$ 30 mi em seis anos

FSP, Brasil, p.A18
10 de Out de 2004

Papéis obtidos por CPI mostram que movimento recebeu R$ 21,2 mi do exterior e R$ 8,7 mi do governo Lula
MST movimentou R$ 30 mi em seis anos
Josias de Souza
Colunista da Folha
Documentos sigilosos manuseados pela Folha revelam: apenas em verbas públicas e doações do exterior, o MST movimentou nos últimos seis anos pelo menos R$ 29,9 milhões. O dinheiro transitou por três dezenas de contas bancárias. As operações mais valiosas foram feitas no Banco do Brasil e no Bradesco.
Quase um terço do numerário que irrigou as contas do MST -R$ 8,7 milhões (28,9% do total)- saiu dos cofres do Tesouro Nacional entre junho do ano passado e julho de 2004. Ou seja, durante a presidência de Luiz Inácio Lula da Silva.
A contabilidade do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra é um segredo bem vigiado. A barreira de mistério foi, no entanto, traspassada no último dia 15 de junho. Em sessão tensa, a CPI da Terra, inaugurada no final do ano passado, quebrou os sigilos bancário e fiscal de duas cooperativas: Anca (Associação Nacional de Cooperação Agrícola) e Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil). São os braços financeiros mais vigorosos do MST.
Receber recursos do exterior e do governo não constitui uma ilegalidade no cotidiano de cooperativas, que também são isentas de pagar tributos. A Comissão Parlamentar de Inquérito decidiu investigar a Anca e a Concrab porque suspeita que parte do dinheiro que recebem pode estar sendo desviado para custear o MST, um movimento que não é legalmente constituído.
As duas cooperativas gerem uma rede de contas bancárias. Por ora, localizaram-se 30 -21 da Concrab e nove da Anca. Em ofício ao presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, a CPI da Terra requisitou o rastreamento da movimentação bancária a partir de 1998. A encomenda começou a ser entregue em 5 de julho.
Os papéis expõem, pela primeira vez, parte expressiva dos subterrâneos financeiros do MST. Lendo-os, pode-se esboçar um mapa das doações que a Anca e a Concrab recebem do exterior. Vêm sobretudo da Europa: Bélgica, Alemanha, Itália, França, Noruega, Reino Unido e Holanda.
Entre 1998 e 2004, os donativos às duas cooperativas do MST somaram US$ 7,5 milhões -US$ 6,743 milhões rechearam as contas da Anca. O restante, US$ 772,9 mil, tonificou a contabilidade da Concrab.
Convertido em reais pela cotação da última sexta-feira, o bolo de recursos que veio do exterior para as duas cooperativas do MST alça a R$ 21,2 milhões. Injetando-se na conta os R$ 8,7 milhões que ambas amealharam por meio de convênios com o governo federal, chega-se ao montante de R$ 29,9 milhões.
Declarações à Receita
Vistas assim, pelo ângulo de suas contas bancárias, Anca e Concrab são organizações milionárias. Uma delas, no entanto, converte-se em entidade "sem-nada" quando observada a partir do Imposto de Renda. Embora tenha manuseado, sozinha, pelo menos R$ 7,1 milhões nos últimos seis anos, a Concrab vem entregando à Receita Federal, desde 1999, declarações de rendimentos sem valor.
As declarações contêm apenas os dados cadastrais da entidade. No mais, a cooperativa informa ao fisco que seu ativo e seu passivo são iguais a zero. Também nos campos reservados às aplicações financeiras e ao balanço patrimonial a entidade anota: "R$ 0,00".
A Folha submeteu o caso a dois especialistas em tributos. Disseram que, embora sejam isentas do pagamento de tributos, cooperativas como a Concrab não estão dispensadas de apresentar declarações fidedignas ao fisco.
A sonegação de dados sujeita a entidade a uma ação fiscal. Arrisca-se, de resto, a ser inabilitada para o recebimento de verbas públicas. Até a última sexta-feira, a Concrab não havia recebido a visita de nenhum auditor da Receita Federal.
A última vez que a Concrab preencheu uma declaração de IR conforme as regras do fisco foi em 1998. Declarou recebimentos de R$ 1,1 milhão. Não mencionou a posse nem de imóveis nem de automóveis. Seu patrimônio líquido compunha-se de R$ 696,75, mencionados a título de "capital social realizado". Contava com reservas de capital de R$ 12,9 mil, acrescida de R$ 347 mil apresentados na forma de outros valores do patrimônio líquido. Já as dívidas somavam R$ 442,97.
"Relatório Parcial"
Na quinta-feira, chegaram aos gabinetes dos 24 parlamentares que integram a CPI da Terra cópias de um documento chamado "Relatório Parcial". Foi redigido por técnicos que assessoram a comissão. Traz a tarja de "sigiloso". Contém um resumo analítico das informações extraídas da papelada secreta do Banco Central.
O texto não faz menção à Anca, cujos dados fiscais e bancários ainda não foram esquadrinhados. Refere-se apenas à Concrab. A Folha obteve um exemplar da exposição. Informa o seguinte:
1) entre 1998 e 2004, a Concrab operava em quatro instituições financeiras: Banco do Brasil, Bradesco, Caixa Econômica Federal, Credtar (Cooperativa de Crédito Rural do Centro-Oeste do Paraná) e Crehnor (Cooperativa de Crédito Rural Horizontes Novos de Novo Sarandi). Movimentou R$ 7,1 milhões. O grosso desse valor escoou pelo Bradesco (R$ 4,2 milhões) e pelo Banco do Brasil (R$ 2,8 milhões);
3) a Concrab recebeu 36 doações de entidades estrangeiras- 33 via Bradesco e três via Banco do Brasil. Tudo somado, obteve US$ 772,9 mil. Ou R$ 2,2 milhões, em dinheiro de hoje;
5) chama-se FDH (Frères des Hommes) o maior doador da Concrab. Responde por 43% dos recursos vindos do exterior (US$ 331 mil). Realizou 20 das 36 remessas. Vieram ora da Bélgica, ora da Alemanha;
6) no sítio que mantém na internet (www.france.fdh.org), a Frères des Hommes define assim o movimento dos sem-terra: "Num país onde 43% das terras estão concentradas nas mãos de 1% da população, o MST luta para que o acesso à terra, embora previsto pela Constituição há mais de 50 anos, seja enfim efetivado". Para a entidade, foi graças à "inércia das autoridades" brasileiras que o "MST pôs em prática uma estratégia de ocupação e recuperação de terras";
7) há entre os doadores internacionais da Concrab duas entidades religiosas: a católica Secours Catholique (França) mandou US$ 59,9 mil em três remessas. A ecumênica Kirkens Nodhjelp (Noruega) enviou US$ 54,9 mil, também em três parcelas;
8) a relação de doadores inclui ainda o Fortuna Banque. Remeteu, desde Luxemburgo, US$ 44 mil. Pode não ser um doador direto. É possível que tenha funcionado como mero intermediário;
9) a relação preparada pelo Banco Central inclui ainda um doador "identificado" com uma indecifrável seqüência numérica: "/ 210083151987". Mandou da Bélgica, em remessa única, US$ 92,3 mil;
10) uma instituição italiana chamada Consorzio CTM Altromercato doou à Concrab US$ 59,9 mil. Também da Itália vieram os US$ 71,9 mil doados por uma organização denominada Senza Terra Brasile;
11) de resto, figuram como financiadores da Concrab a britânica Intertional Agencies BKG (US$ 26,6 mil), o holandês Movimento para la Integracion (US$ 18,5 mil) e a italiana Silvestro Profico P/C Ociazione (US$ 12,8 mil).
O "Relatório Parcial" dos técnicos da CPI da Terra anota que o Banco Central ainda não enviou ao Congresso toda a documentação que lhe foi requisitada. Por ora, os dados disponíveis permitem detectar apenas a origem do dinheiro da Concrab.
Não chegaram as cópias de cheques e ordens de pagamento que permitirão refazer o caminho do dinheiro que sai das cooperativas. É o único modo de identificar os beneficiários dos saques e transferências de recursos. Faltam também documentos da Caixa Econômica Federal. Remeteu-se ao Banco Central um novo pedido de informações.

Entidades recorrem para deter apuração
Do colunista da Folha
As entidades Anca (Associação Nacional de Cooperação Agrícola) e Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil) tentam deter na Justiça a investigação parlamentar que expõe os meandros de suas contas bancárias.
Ambas recorreram ao STF (Supremo Tribunal Federal). Pedem o restabelecimento da privacidade monetária. Alegam que "não há fato concreto que possa fundamentar" a quebra de seus sigilos bancário e fiscal.
O caso deu origem a dois processos. Um para cada cooperativa. Começaram a tramitar no Supremo no último mês de julho. Foram à mesa do presidente do tribunal, Nelson Jobim. Com a Justiça em recesso, ele respondia pelo plantão.
Em 8 de julho, Jobim expediu liminar (decisão provisória) suspendendo as quebras de sigilo. O presidente do STF entendeu que a CPI da Terra baseara-se apenas "em notícias veiculadas em jornal". Pediu esclarecimentos.
A direção da Comissão Parlamentar de Inquérito levou aos autos duas manifestações. Reivindica a manutenção da quebra dos sigilos das cooperativas.
Findo o recesso do Judiciário, os processos puderam ser distribuídos. O da Concrab foi entregue a Gilmar Mendes. Como primeira providência, cassou a liminar que fora concedida por Jobim, restabelecendo a quebra de sigilo.
Liminar mantida
Já o caso da Anca foi remetido ao gabinete de Joaquim Barbosa. Ele mantém até agora a liminar de Jobim.
Assim, a CPI pôde perscrutar extratos e declarações de rendimentos da Concrab, mas não está autorizada a tocar na documentação relativa à Anca, recolhida a um cofre do Senado.
Chamado a opinar, o procurador-geral da República, Cláudio Fontelles, declarou-se favorável à suspensão da quebra de sigilo. Na opinião dele, a decisão da CPI "carece de fundamentação, perdendo-se no açodamento em que foi concluída".
Para Fontelles, antes de requisitar os dados fiscais e tributários das entidades, os parlamentares deveriam ter ouvido diretores das cooperativas. Poderiam também ter requisitado informações acerca dos convênios celebrados com o governo, sua aplicação e respectivas prestações de contas. Cabe agora ao STF a palavra final.

Lula dá alento a finanças dos sem-terra
Do colunista da Folha
A posse de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência deu novo alento à contabilidade das cooperativas vinculadas ao MST. No final de sua gestão, Fernando Henrique Cardoso havia submetido as entidades a um torniquete. Sob Lula, a situação se inverteu. Em 2003 e 2004, a administração petista repassou R$ 8,7 milhões às cooperativas Anca e Concrab, braços financeiros do MST.
Tome-se o caso da Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil). Já recebeu do governo Lula R$ 1,8 milhão. É parte dos R$ 2,5 milhões que contratou em convênios e equivale a 78% do que recebera ao longo dos oito anos de governo FHC -R$ 3,2 milhões.
A verba do Tesouro Nacional migra para as cooperativas por meio da assinatura de convênios. Possuem finalidades diversas, da "capacitação de lideranças" à "assistência técnica". Os depósitos são feitos no Banco do Brasil e na Caixa Econômica Federal.
Os repasses oficiais à Anca (Associação Nacional de Cooperação Agrícola), outra cooperativa gerida pelo MST, foram ainda mais expressivos no biênio 2003/2004: R$ 6,823 milhões.
O principal convênio do governo Lula com a Concrab é o de número 481.951. Custou à União R$ 1,187 milhão. Visou a "realização de 20 cursos, dez oficinas e cinco treinamentos" em nove Estados: Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Tocantins, Sergipe, Pernambuco, Maranhão, Alagoas e Bahia.
Um relatório sigiloso da CPI da Terra compara os custos das aulas que são ministradas pelo MST com os dos cursos do programa de alfabetização de jovens e adultos do Ministério da Educação.
Cada curso da Concrab, diz o documento, "custou, em média, R$ 34 mil aos cofres públicos". Os do MEC, saem a, no máximo, "R$ 2.360/mês por turma de 25 alunos". Assim, cada curso, treinamento ou oficina da Concrab custaria "14 vezes mais" do que as aulas de alfabetização do MEC, segundo avaliação do documento da CPI, que não dispõe de detalhes dos cursos da cooperativa.
O dinheiro do convênio firmado com a Concrab foi liberado em duas parcelas de R$ 593.826,00. A primeira foi à conta da entidade em 24 de setembro de 2003. A segunda, em 12 de janeiro de 2004.
O documento reservado da CPI da Terra aponta uma incômoda coincidência. De acordo com o mapa das invasões de terras elaborado pela Ouvidoria Agrária do Incra, havia em maio passado 230 terras invadidas no país.
"No Nordeste", anota o documento da CPI, "95% das invasões ocorreram onde houve curso da Concrab. Das cem invasões registradas nessa região, 95 ocorreram nos cinco Estados em que a Concrab se comprometeu a realizar os cursos". O texto ironiza: "É como se houvesse faltado recursos para as mobilizações do abril vermelho" nos demais Estados.
Nas Sul e Sudeste, os Estados em que houve cursos da Concrab, "responderam, respectivamente, por 82% e 68% das invasões de terra realizadas em 2004". O documento da CPI levanta a suspeita de que o dinheiro do governo tenha sido "desviado" do objetivo educacional "para outro fim".
Um dos convênios assinados com a Anca destinou-se "à prestação de assessoria jurídica aos trabalhadores rurais" de nove Estados e do Distrito Federal, em 2003. Custou ao erário R$ 300 mil.
O suporte do governo ao MST não se dá apenas por meio das inversões em cooperativas. Em novembro de 2003, o Incra gastou diretamente R$ 20.624,10 na "aquisição de 49 rolos de lonas plásticas pretas para distribuição a acampados do Estado do Rio Grande do Sul".

Outro lado
Cooperativas se julgam vítimas de arbitrariedade
Do colunista da Folha
Anca (Associação Nacional de Cooperação Agrícola) e Concrab (Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil), as duas cooperativas vinculadas ao MST, julgam que são vítimas de uma arbitrariedade.
Não há, na opinião de seus advogados, fatos que justifiquem a quebra de sigilo fiscal e bancário das entidades.
A Folha tentou, desde a última quinta-feira, ouvir as alegações de representantes da Anca e da Concrab. Em contato com a assessoria de imprensa do movimento sem terra, informou acerca do teor da reportagem que está sendo publicada na edição de hoje. Não houve interesse em falar.
A reportagem, então, foi buscar no STF (Supremo Tribunal Federal) uma cópia da contestação das cooperativas às decisões da CPI da Terra.
Os advogados das duas entidades argumentam que "os atos de investigação praticados pela CPI submetem-se à necessidade de fundamentação, sob pena de nulidade".
Invocando jurisprudência do próprio Supremo, as cooperativas sustentam em sua defesa que a "excepcionalidade" da quebra de sigilo deve estar escorada em "fato concreto [...] capaz de justificar a medida".
Nos casos da Anca e da Concrab, não há, afirmam os seus advogados, nenhum fato que as incrimine. Não foram mencionadas por depoentes ouvidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito. Não são investigadas pela Polícia Federal. Mantêm convênios regulares com o governo federal.
As duas cooperativas decidiram recorrer ao STF porque avaliaram que sua "intimidade" corria riscos. O receio está expresso nos recursos de seus advogados.
O texto afirma que a quebra de sigilos das entidades traria "graves prejuízos" a elas, "violando sua intimidade e com riscos concretos de ter sua imagem injustamente atacada pelos meios de comunicação, deturpando-se informações à opinião pública".
As cooperativas reivindicam o restabelecimento de sua intimidade fiscal e bancária. Pedem também que o Supremo determine à CPI da Terra a devolução dos papéis que expõem sua intimidade contábil aos "órgãos de origem", ou seja, o Banco Central e a Receita Federal.

FSP, 10/10/2004, p. A18

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